Capim de Planta sediou a IX Assembléia do Povo Xukuru de Ororubá, tendo como como eixo condutor o tema da criminalização da luta indígena no nordeste. Por Cássio Brancaleone
“Nenhum ser humano é objeto para estar à venda!”
Agnaldo Xukuru, durante a IX Assembléia do Povo Xukuru
Aldeia de Capim de Planta. Uma das 23 aldeias situadas no território Xukuru de Ororubá, dimensionado em aproximados 27 mil hectares dentro da área rural do município de Pesqueira, outrora pertencente ao patrimônio de latifundiários e membros da oligarquia pernambucana. Capim de Planta sediou a IX Assembléia do Povo Xukuru de Ororubá [1], prática que já alcança nove anos, e a cada oportunidade, transfere sua sede para uma diferente aldeia. As assembléias Xukuru começaram poucos anos após o assassinato do Cacique Xicão, expressiva liderança cujo trabalho e atuação política foi um verdadeiro parte-águas na história da luta pela retomada das terras Xukuru, bem como um marco da (re)organização do movimento indígena no nordeste.
Foram três dias de assembléia, lamentavelmente com poucos representantes dos 10 mil índios Xukuru que povoam essa área. Os fatores que explicam a “baixa participação” na assembléia podem ser encontrados tanto na escolha da data (período em que muitos indígenas estão envolvidos na alocação de sua produção para a comercialização em feiras nas cidades), como na existência de uma suposta fase de desmobilização interna (associadas talvez a um período de saturação relacionado com a própria conquista definitiva da terra, além da rivalidade existente entre grupos políticos endógenos que invariavelmente se formam, e que muitas vezes são utilizados pelo próprio Estado ou grupos políticos externos para controlar a situação de “politização excessiva” do movimento). Todavia, entre os indígenas habitantes da aldeia de Capim de Planta, estavam as lideranças mais expressivas da maioria das 23 aldeias pertencentes ao território Xukuru, inclusive uma que exercia mandato de vereador pelo PT na cidade de Pesqueira, e outros indígenas que atuavam como agentes de saúde e educadores, vinculados a algumas agências estatais.
A IX Assembléia teve como eixo condutor o tema da criminalização da luta indígena no nordeste. No caso do povo Xukuru, hoje existem 43 indígenas sendo processados pelo Estado, dos quais 26 foram condenados, e dois já são mantidos prisioneiros. Acusações forjadas, como se pode constatar no trabalho de investigação e acompanhamento de ativistas indigenistas e de núcleos de defesa de direitos humanos, como o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) http://www.cimi.org.br e o Centro Luiz Freire http://www.cclf.org.br , computando crimes que vão desde roubos, depredação de patrimônio privado, incitação à desordem até homicídio. A chamada “criminalização” da luta indígena passa pela manipulação de fatos e fabricação de denúncias veiculadas pela grande mídia corporativa, e articuladas com ações legais como processos e ordens de apreensão. A estratégia da oligarquia local implica em produzir e difundir uma imagem do “índio bandido” e neutralizar a capacidade organizativa dos Xukuru mediante o aprisionamento dos seus mais ativos quadros e lideranças. Para agravar a situação, no dia 21 de maio, dois dias após o término da IX Assembléia, foi divulgada a sentença de prisão preventiva do Cacique Marquinhos Xukuru [2], filho de Xicão, condenado a cumprir pena de 9 anos. O mais curioso desse processo é que ele seguiu andamento sem instalação de júri, antes mesmo de se ouvir uma importante testemunha de defesa solicitada e agendada pelas próprias autoridades judiciais.
Na assembléia havia também representantes da sociedade civil, organizados em entidades ou não, além de representantes de instâncias do governo. Porém, o mais impressionante foi a constatação de povos indígenas provenientes de outras regiões do estado, e mesmo de fora de Pernambuco. Apesar de tudo, e naquilo que lhe confere existência, a impressão é que o movimento Xukuru é indígena, e de que o movimento indígena é Xukuru, tendo em conta o grau de reflexividade e consciência de si manifestos entre indivíduos e povos presentes, unificando ambas as dimensões (luta Xukuru/luta indígena) em um mesmo e objetivo movimento social. A participação de outros indígenas em um fórum interno de uma comunidade específica, neste caso, me parece essencial para se compreender o modo como o movimento indígena gestado no nordeste pode significar mais do que uma reinvindicação isolada por terras de aldeia a aldeia, e está cada vez mais se convertendo em um processo muito mais amplo que passa sim pela retomada do território, ao mesmo tempo em que promove um processo de constituição de algo próximo àquilo que alguns analistas preferem denominar por “cidadania indígena”, culminando com a consolidação desses povos em atores políticos coletivos com grande capacidade de mobilização para potencialmente debater em pés de igualdade com outros elementos da sociedade os rumos da política nacional e internacional.
Por outro lado o tema da interlocução com aliados da sociedade civil e do governo é mais controverso. A primeira vista, a impressão é de que os povos indígenas servem como atores depositários dos projetos de sociedade desses agentes, a maioria vindo das classes médias brancas universitárias. Mas resumir os povos indígenas como fantoches dos elementos mais ativos e radicais da sociedade civil ou do governo implica em atribuir o estatuto de “ente passível de tutela” aos povos indígenas, algo que gradativamente vem sendo rechaçado pelos próprios indígenas. Se é verdade que muitas vezes esses povos, como muitas frações do movimento popular, são usados e manipulados por organizações que lhe são alheias, ainda que reivindiquem com alguma justeza a autenticidade das suas “causas”, e com isso, da representação de todos aqueles que se constituem como substrato “da referida causa”, reduzir os indígenas a seres passivos é fechar os olhos a uma realidade que é mais complexa e contraditória que nossos modelos de julgamento e análise. Primeiro porque os projetos em jogo são muitos, e alguns em conflito velado ou oposição entre si. As lideranças indígenas muitas vezes parecem aproveitar a existência dessas disputas entre esses atores aliados para projetar suas reais demandas, ou estabelecer “vínculos estratégicos” que lhe garantam algum tipo de relativa autonomia para legitimar suas propostas. Segundo, porque os indígenas aprenderam a se apropriar das técnicas de organização e mobilização veiculada por esses atores, e vivenciam um processo de incorporação de determinados elementos técnicos, simbólicos e discursivos que são ordenados sob sua própria cosmovisão, ou de acordo com uma cosmovisão (re)construída a partir de sua própria dinâmica interna de reconhecimento como coletividade cada vez mais autodeterminada.
Entretanto, vale a pena retomar algumas reflexões sobre a dinâmica da IX Assembléia. Dirigida pela preocupação maior e mais evidente de combater o processo de criminalização em curso, em certos aspectos, muito similar com a criminalização das lutas sociais e os correspondentes processos penais sofridos por ativistas indígenas chiapanecos e oaxaqueños, no caso do México, a assembléia Xukuru durante os três dias de sua instalação também realizou uma profunda avaliação sobre os programas, atividades e projetos existentes em suas aldeias. Divididos em grupos de trabalho orbitando em temas como saúde, educação, produção e formação de lideranças, para citar os mais expressivos, os xukuru discutiam abertamente, com a participação de todos os presentes (ou seja, indígenas e não indígenas, xukuru e não-xukuru, jovens e anciãos, homens e mulheres) os principais obstáculos existentes em cada um desses temas, recolhendo propostas de todos para a elaboração de alternativas, construídas e consolidadas nas sessões finais de cada dia de assembléia.
A disposição em encontrar soluções consensuadas era evidente, e talvez constitua uma das propriedades mais operantes na organização comunitária do modo de vida indígena. De outro modo, não se pode ocultar o protagonismo que alguns representantes das organizações da sociedade civil aliadas possuíam na formulação e apresentação de determinadas propostas, e ascendência que também possuíam sobre algumas lideranças indígenas. Contradição constatável, mas de avaliação complexa, como apontei anteriormente. De todo modo, a construção de algo como uma pedagogia política da autonomia possui alguns dos seus gérmens em experimentos sociais como o desta IX Assembléia, e é em espaços como esses que muitos indígenas encontram uma oportunidade para sua constituição como sujeitos políticos capazes de avaliarem sua própria conversão em movimento social, a ponto de poderem escolher cada vez com maior clareza o modelo de relação que desejarão estabelecer com seus aliados, da sociedade civil ou do governo. A meu ver, o caso dos zapatistas em Chiapas é o mais expressivo, dentro do movimento indígena contemporâneo, que logrou conquistar um tipo de relação mais “soberana” e “independente” frente a sua rede de apoiadores e interlocutores.
Para encerrar, outro aspecto que me parece fundamental para nossa reflexão é o do lugar do pensamento e da prática anticapitalista no movimento indígena. Nesse ponto, creio que podemos encontrar elementos que convergem entre as diferentes lutas e movimentos indígenas da América Latina, e estão inexoravelmente relacionados ao estatuto da terra para os povos indígenas. Longe de buscar uma generalização baseada em uma idéia romântica e essencializada do indígena como o “homem natural” do “comunismo primitivo”, me remeto unicamente ao fato de que a grande maioria do ativismo e do associativismo de corte indígena na América Latina, pelo menos quando organizado em sua dimensão mais coletiva, reivindica basicamente duas coisas: 1) o acesso à “terra original” e a garantia legal de seu usufruto como patrimônio coletivo; 2) os direitos de se organizar socialmente sobre estes territórios segundo seus usos e costumes.
Tradição inventada ou não, “original” ou não, a simples defesa do usufruto coletivo da terra implica em ir na contramão da lógica de organização dos territórios em uma sociedade capitalista, baseada na constituição da propriedade privada. Mais, vai na contramão de todo o processo de reforma agrária, também de inspiração capitalista, baseado na divisão das terras em pequenas propriedades para serem convertidas em granjas produtivas para o atendimento do mercado interno e garantir a manutenção e o custeio da mão de obra assalariada urbana.
Lembremo-nos que o processo inicial da acumulação primitiva se dá com a mercantilização da terra, e a expulsão dos camponeses para transformá-los em proletários urbanos. A luta pela retomada de terras realizada pelo movimento indígena não só desafia a mercantilização da terra, como freia o próprio processo de constituição desses seres sociais tão fundamentais para a reprodução do capitalismo, a força de trabalho desprovida dos meios de produção (obviamente, considerando as devidas especificidades do capitalismo contemporâneo). A terra, meio de produção socializado na maioria das experiências de retomada de terra por parte das populações indígenas, geralmente é possuída por famílias, em faixas que podem ser individuais ou coletivas. No entanto, o mais importante é que, como patrimônio do povo indígena, ela é inalienável, e paradoxalmente, essa inalienabilidade é protegida pelos próprios mecanismos legais do “Estado de Direito” moderno, muitas vezes constitucionalmente.
O segundo elemento importante a se destacar é o relativo aos “usos e costumes”, ou tradições indígenas. Isso implica em reconhecer que, levando em conta as garantias individuais presentes em cada constituição de cada país onde se processe uma luta indígena organizada e situada territorialmente, admite-se que os povos indígenas possuem um sistema normativo próprio e pré-existente à ordem legal, donde se atribui a eles a capacidade de se organizarem política, econômica, social e culturalmente segundo suas tradições. A partir daí, e esse ponto já assumiu tamanha prioridade que até a OIT (Organização Internacional do Trabalho) já firmou resoluções buscando o comprometimento de vários países para regulamentar a questão, abrem-se não somente precedentes morais, mas garantias legais para que cada população indígena possa reivindicar seu direito à autonomia, ou seja, a organizar-se no interior dos Estados-Nação como parte diferenciada dos mesmos.
O mais interessante desse processo de autonomização territorial das lutas indígenas é a opção radicalmente democrática que tem emergido como nova configuração dos espaços públicos criados nos processos de retomada de terras. Toda uma herança política socialista, anarquista e comunista, aparentemente fora de cena com a tragédia das experiências da esquerda estatista do século XX, encontrou no terreno fértil da luta indígena pontos de germinação e floração, e seu resultado ou atual estágio, ainda que não nomeado, ou nomeado por palavras aparentemente neutras e socialmente consensuadas como justiça, liberdade e democracia, ultrapassam suas configurações mais pedestres tal como disciplinadas pelo Estado e pelo direito liberal.
Talvez pecando pelo exagero, interpreto que a democracia, nesse exato momento em que escrevo essas linhas, está sendo reinventada nos territórios indígenas, ciente de que reinventar a democracia é muito mais difícil e delicado do que reinventar a roda. Uma democracia de consistência, e não somente de formalismos e procedimentos, porque exige um forte grau de isonomia entre os sujeitos políticos, isonomia essa paradoxalmente reivindicada a partir da alteridade. Mais dialético, impossível. É mais que urgente repensar nossos modelos de análise, naquilo que ainda conservam de colonizadores, ou para dizer como Aníbal Quijano, naquilo em que estão comprometidos e submetidos com a colonialidade do poder, para vislumbrar quais lições e aprendizados são possíveis, agora que um certo Marx, um certo Mao Tse-Tung, um certo Bakunin e um certo Kropotkin, sob essas alcunhas ou sob outras, chegaram nas aldeias.
[1] Conferir, aqui, em Movimentos em Luta, o Documento Final da IX Assembléia.
[2] Conferir, aqui, no Em Directo, o áudio da entrevista com o Cacique Marquinhos, realizada por Cassio Brancaleone e Eliana Monteiro durante a IX Assembléia.
Caros,
A etnia xukuru é um modelo referencial de organização sócio-política-cultural, vivenciada democratimente, que nos faz acreditar na possibilidade de um mundo mais justo e fraterno.
Este povo precisa do todo apoio da sociedade, pois vive um momento de perseguição e condenação de suas lideranças, inclusive do grande líder “Cacique Marquinhos”. Precisamos manifestar nossa solidariedade e clamarmos por justiça.
“Liberdade às lideranças xukuru, já!
Aleida Araújo
Caro,
Belíssimo seu texto.
ESpero que nossa matéria – que será publicada na edição de agosto – possa ser tão completa e tão fiel quanto o relato que foi feito aqui.
Um grande abraço,
Adriano De Lavor
Querido Cassio,
Adorei o texto. Muito claro, com grande comprometimento e muito bem escrito.
Amor y revuelta! María