“Quando eu morrer, deverão dizer de mim: «Esse nunca pertenceu a nenhuma escola, a nenhuma igreja, a nenhuma instituição, a nenhuma academia, sobretudo a nenhum regime que não seja o regime da liberdade»” (Gustave Courbet). Por Passa Palavra
No artigo que publicámos em Março, Será que o mundo em Braga tem outra origem?, demos conta de que a polícia tinha apreendido alguns exemplares de um livro cuja capa é o quadro A Origem do Mundo de Courbet, considerando-o pornográfico. Em meados do século XIX, ao representar as coxas e o sexo de uma mulher, Courbet também enfrentou a moral da época e abalou profundamente o meio artístico. Encomendado por um diplomata turco, o quadro foi mudando de proprietário até que, já no século XX, ficou na posse do psicanalista Jacques Lacan, cuja família, depois da sua morte em 1981, o doou ao Estado francês. Está exposto, desde então, no Museu d’Orsay em Paris.
Gustave Courbet nasceu a 10 de Junho de 1819, em Ornans, França. Depois de frequentar um colégio e de ter aulas de pintura, transferiu-se para Paris a fim de estudar direito mas acabou por estudar desenho e pintura por iniciativa própria, copiando no Louvre os mestres espanhóis, holandeses e franceses do século XVII.
A partir de 1844 começou a ser exposto regularmente no Salon, a grande mostra anual que marcava então os pontos culminantes da produção dos artistas plásticos, e a que afluía não só a elite parisiense mas também os meios populares. Mas em 1855, quando onze dos seus quadros foram rejeitados, promoveu uma exposição alternativa de quarenta e quatro obras, num pavilhão que construiu perto do Salon, sem a interferência de instituições oficiais. E assim passou a exibir a sua obra. Apesar dos conflitos com autoridades e público, conheceu algumas vitórias, mas manteve a sua coerência artística e ideológica.
Rejeitava o academismo que não representava o mundo mas as convenções acerca do mundo. Demarcava-se também dos românticos, como Delacroix e outros, que pretendiam rasgar essas convenções através do irracionalismo, entendido numa acepção ampla que incluía o furor e a fúria. Courbet e os realistas valorizavam o real e o quotidiano. Recusavam as convenções do academismo em nome da necessidade de uma observação do mundo exterior. Em linhas gerais, para os românticos tratava-se de uma projecção do eu íntimo, para os realistas de uma observação daquilo que estava fora do indivíduo. No entanto, em casos particulares, havia sobreposições entre as duas correntes. Goya, por exemplo, está tanto na origem do romantismo como do realismo.
Courbet, tido como fundador do realismo em pintura, demonstrou total adesão ideológica e política ao movimento. Pintou cenas da vida dos camponeses e do mundo do trabalho longe das normas da arte oficial.
Por volta de 1850, enfrentando a moral dominante, pintou uma série de nus femininos de que faz parte A Origem do Mundo, considerado um manifesto contra o academismo e a falsidade vigente na arte e na sociedade e que havia de ser uma das suas obras mais célebres.
Marcado pela revolução operária de 1848, influenciado por Proudhon, por Baudelaire e pelo caricaturista e pintor Daumier, ele era um socialista convicto, fazendo da pintura uma arma política e social. Em 1871, participou activamente na Comuna de Paris, de que foi membro e que o elegeu Presidente da Federação dos Artistas, delegado à Câmara Municipal e delegado à Instrução Pública. Demitiu-se da Comuna por discordar da execução de um político.
Depois da derrota da Comuna, foi preso durante seis meses e mais tarde, em 1877, acusado de ser responsável pela destruição da Coluna Vendôme, monumento símbolo do imperialismo napoleónico. O Estado francês obrigou-o a pagar uma nova Coluna, no montante de mais de 320 mil francos, em prestações, durante 33 anos. Com todos os seus bens confiscados, o ateliê leiloado e os quadros confiscados, Courbet exilou-se na Suíça, onde morreu em 31 de Dezembro desse ano, um dia antes de pagar a primeira prestação.
A sua postura artística e intelectual é evidenciada na carta (referida no nosso artigo A criação artística – compromisso e liberdade) que escreveu ao Ministro das Artes quando, em 1870, recusou a Legião de Honra com que Napoleão III o quis agraciar:
Senhor Ministro,
(…) Tomei conhecimento da publicação, no Journal Officiel, de um decreto que me nomeia cavaleiro da Legião de Honra. Esse decreto, que as minhas opiniões bem conhecidas acerca de recompensas artísticas e de títulos nobiliárquicos me deveriam ter poupado, foi emitido sem o meu consentimento e foi o senhor ministro, que achou dever tomar essa iniciativa. Não receie que eu desconheça os sentimentos que o guiaram. Chegado ao Ministério das Belas-Artes após uma administração funesta que pareceu dedicada a matar a arte no nosso país, e que o teria conseguido através da corrupção ou da violência, se não tivesse havido aqui e ali alguns homens corajosos para o impedirem, o senhor fez questão de marcar a sua nomeação com uma medida que contrastasse com o estilo do seu antecessor.
Esses processos honram-no muito, senhor ministro, mas permita-me dizer-lhe que não são susceptíveis de mudarem nem a minha atitude nem as minhas determinações.
As minhas opiniões enquanto cidadão opõem-se a que eu aceite uma distinção que decorre essencialmente da ordem monárquica. Essa condecoração da Legião de Honra que me conferiu à minha revelia, os meus princípios recusam-na.
Em tempo algum, em caso algum, por razão alguma eu poderia aceitá-la. Menos ainda nestes dias, em que as traições se multiplicam por todo o lado e a consciência humana entristece com tantas palinódias [retratações] interesseiras. A honra não é um título nem uma faixa, está nos actos e naquilo que os move. O respeito por si mesmo e pelas ideias próprias é o essencial dela. Sinto-me honrado porque permaneço fiel aos princípios de toda a minha vida; se os abandonasse, abandonaria a honra pelo seu símbolo.
O meu sentimento de artista opõe-se, igualmente, a que eu aceite uma recompensa que me é concedida pela mão do Estado. O Estado é incompetente em matéria de arte. Quando se resolve a recompensar, está a usurpar o gosto público. A sua intervenção é em todo desmoralizante, funesta para o artista de cujo valor se serve, funesta para a arte que confina nas conveniências oficiais e que condena à mais estéril mediocridade. Seria mais sensato que o Estado se abstivesse. No dia em que nos deixar livres, terá cumprido o seu dever para connosco.
Saiba pois, senhor ministro, que declino a honra que julgou prestar-me. Tenho cinquenta anos e sempre vivi livre. Deixe-me terminar a minha existência sendo livre: quando eu morrer, deverão dizer de mim: “Esse nunca pertenceu a nenhuma escola, a nenhuma igreja, a nenhuma instituição, a nenhuma academia, sobretudo a nenhum regime que não seja o regime da liberdade”.
(…)
Gustave Courbet, publicado no jornal Le Siècle em 23 de Junho de 1870.
[Na ilustração do destaque do artigo, pormenor do quadro Portrait de l’artiste à Sainte-Pélagie (cerca de 1872).]