Por Luis Branco

 

A greve do primeiro semestre de 2009 na USP [Universidade de São Paulo] ficará marcada pela latência da crise das instituições de poder e representatividade da universidade. Seu fim, sem a conquista das pautas [reivindicações] mais evidenciadas, embora nos dê um gosto amargo, parece dessa vez não significar um momento alto de desgaste, sucedido por um período de “ressaca”. Pelo contrário, a simultânea saída das três categorias [1], articuladas no sentido de não só questionar, mas concretamente alterar a estrutura de poder na USP, significa que, para além das pautas específicas de cada categoria e a despeito de seus posicionamentos e ações políticas diferentes, a USP não ficará tal como está: chegamos ao limite.

A tensão será a tônica do próximo semestre. É bom lembrar que haverá eleição para reitor. A mobilização estudantil no curso de História certamente continuará forte nesse segundo semestre; ainda que com algumas limitações, uma profunda reflexão sobre o momento pelo qual estamos passando e a real possibilidade de intervenção efetiva nele foram construídas nesse mês de junho. A idéia aqui é dividir com todos o que foi, então, esse processo na História, sua mobilização e suas perspectivas.

A negação do diálogo e a (in)conseqüente opção da reitoria pela entrada do aparato militar para repressão propiciaram uma rápida resposta de parte da comunidade universitária, indignada com a presença da Polícia Militar no campus para “mediar” as relações entre as categorias. Os estudantes do curso de História deliberaram por greve no mesmo dia, como reação imediata a essa atitude.

Durante os dois dias seguintes, a mobilização no curso se deu por passagem nas salas no sentido de paralisá-las, conversando com os colegas e docentes sobre os motivos da greve. A partir do terceiro dia, barricadas, para impedir os fura-greves e forçar o diálogo e o posicionamento de professores e estudante, que se colocavam como indiferentes à grave situação presente da USP, completamente fora de sua normalidade.

A conseqüência das barricadas foi o tensionamento no departamento. A direita dos alunos se organizou para desmontar as cadeiras que bloqueavam os corredores na surdina, para jogá-las nos grevistas, chamar a polícia para garantir o tão propalado “direito de ir e vir” e o “direito de ter aula“. A chefia do departamento, compreendendo o grave momento que se colocava, convocou uma plenária departamental para discutir os acontecimentos. Com boa presença de discentes e docentes, a plenária girou em torno do fato de estudantes e professores desrespeitarem os fóruns das categorias e as suas decisões. A maioria dos presentes se colocou como preocupada em relação a isso: é evidente que os fóruns de deliberação possuem problemas, porém eles são os espaços coletivos, públicos, de discussão. Se existem problemas, cabe a todos tentar melhorar esses fóruns, quem sabe até transformá-los, para que eles recuperem sua legitimidade. Decisões e posicionamentos individualistas foram amplamente lamentados, rejeitados.

A constatação de que o nível de hostilidades era crescente entre os estudantes, e que alguns professores não iriam respeitar a decisão do movimento estudantil da História de paralisar as aulas por completo, passou pela questão de que esse tensionamento se dava muito pela inexistência de um canal de diálogo, de um debate franco entre os indivíduos que compõem o departamento.

A partir disso, estudantes e professores buscaram criar esse espaço de diálogo. O resultado foram os chamados «bate-papo [conversas] semanais», às quartas-feiras, em que professores e estudantes expõem, da maneira mais livre possível, suas visões sobre a greve, os problemas do departamento, análises e propostas sobre a USP. Foram até agora quatro encontros muito interessantes. Se o primeiro começou com uma série de desabafos pessoais sobre o que significava a universidade, a greve, o curso de História para cada um (o que demonstra realmente a falta de espaço para se debater publicamente uma série de questões), a última terminou com idéias sobre qual é o papel da Faculdade de Filosofia na universidade, na sociedade; sobre a estrutura de poder no departamento e na USP; o que significa uma greve; que tipo de estudante entra na História, que tipo de historiador, de cidadão estamos formando, que tipo de professor entra no departamento; o caráter político das aulas ministradas, o papel do professor, a estrutura curricular do curso, o caráter das pesquisas, o peso do CNPQ e da FAPESP [instituições de financiamento à pesquisa], as condições de pesquisa oferecidas na graduação e na pós-graduação, a falta de relação entre elas… Enfim, uma série de reflexões há tanto tempo acumuladas individualmente ou guardada por poucos grupos e que agora se abrem para o esforço de pensar coletivo, um esforço de elaborar projetos coletivos de transformação. Garantido esse espaço e que as decisões tomadas coletivamente seriam respeitadas, as barricadas deixaram de cumprir o seu papel, fundamental, aliás, para que ocorresse efetivamente uma mobilização ativa e complexa no curso.

As plenárias dos estudantes de História durante o período em que a greve esteve vigente sempre giraram em torno de 100 alunos – um número muito significativo. Diferentemente das assembléias gerais, com seus vícios, conchavos, manobras e marcações de posições intransigentes de certos grupos partidários, as plenárias da História, embora cansativas como toda plenária, correram num clima de respeito às posições, discussões intensas e complexas sobre as pautas da greve – superando, inclusive, essas. A penúltima, nem mesa tinha – e funcionou muito bem! Isso se deve ao grande e intenso envolvimento dos estudantes autônomos, militantes independentes – a atuação destes permite que as diferenças possam coexistir e serem discutidas, proporcionando uma radicalização do debate e das tomadas de posição. Assim, os partidos políticos são impossibilitados de se tornarem “a vanguarda do movimento” (argh!): não conseguem pautá-lo e delimitá-lo politicamente. Não engessam [congelam] o processo de reflexão e radicalização, o que esvazia o próprio movimento. Foram obrigados de fato a dialogar e a construir verdadeiramente com seus colegas.

Durante o processo de mobilização, nos bate-papos de quarta-feira, nas plenárias estudantis e nos comandos de greve, uma das coisas mais colocadas foi a necessidade de se aprofundar os temas que geraram maior discussão no departamento. Surgiu a idéia, por exemplo, de se ocupar as salas de aula, no período de greve e também quando esta acabar – com grupos de estudos e trabalho. Quatro já foram formados, sendo que dois já estão funcionando. São eles:

*Ensino de História;
*Universidade: Projetos;
*História Recente do Movimento Estudantil;
*Estado, Violência e Autoridade.

Assim, o que se busca é pensar, estimular um outro projeto não só para o departamento de História, mas para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, resgatando o seu espírito crítico na universidade e também na sociedade, pois é evidente que esse está se desmilinguindo [desmanchando], sendo massacrado pelo produtivismo acadêmico e pela noção, tosca, de que a Universidade é uma mera prestadora de serviços, formadora de profissionais.

É preciso, sim, reafirmar a história da FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas] e as suas lutas. É preciso fazer a história do departamento de História, ainda inexistente, para que a gente não ouça mais absurdos como os ouvidos no último mês, de que “greve não serve para nada”, “sou contra a greve política (????)”, “o meu direito de assistir (ou dar) aula tem que ser respeitado”, “quero me formar e ponto” ou atitudes de franca ridicularização por parte de alguns professores e estudantes frente àqueles que buscavam dialogar com seus colegas. Isso sem contar as manifestações de cunho classista contra os funcionários e o seu direito de greve. Essas frases e atitudes foram, sobretudo, realizadas por gente que está cursando o seu primeiro ano, segundo ano. Pois é evidente que a greve desse semestre é um divisor de águas no que diz respeito à mobilização, em vários sentidos. Aponto aquele que nos interessa nesse texto: o conservadorismo, a tecnocracia e a ação reacionária que se encontram de maneira bem mais organizada na Faculdade de Filosofia – e não se restringe aos professores e a um pequeno grupo de estudantes.

A disputa está dada e não basta apenas nos defendermos contra o processo de desmantelamento, de esvaziamento das chamadas Ciências Humanas. Reafirmo: é preciso atacar – o que significa irmos além do urgente resgate político e acadêmico da FFLCH, mas elaboramos um novo projeto, um novo sentido para a sua existência, que a coloque em relação com as questões, a problemática da nossa sociedade, com os movimentos que visem a sua transformação.

O que houve no curso de História foi um salto de qualidade no que tange a organização do movimento e no embasamento das discussões. A saída da greve se tornou inevitável, e a sua escolha, dentro de um contexto maior, preserva os ganhos que essa mobilização teve. Não, não falo em vitórias e derrotas – a idéia aqui não é vender os resultados da greve. É constatar que, ainda que as pautas que encabeçam o movimento geral não tenham sido alcançadas – Fora PM, Fora Reitora, Fora Univesp (o que aponta para os limites do movimento, que devem ser discutidos criticamente) – na História houve um real aprofundamento do que significa a Univesp, o que é o ensino à distância; a entrada e permanência da PM, o papel, aliás, da PM na sociedade (defendemos o FORA PM DO MUNDO!), o que significa o exercício de poder na USP, que aliás tem muito a ver com a periodicidade em que ocorrem as greves.

Em agosto, a volta às aulas, com garantia de reposição efetiva, se apresenta com uma perspectiva de empenho, para estudantes e professores, de continuar fortemente a mobilização a partir, então, de um patamar de debate mais qualificado e com muitas ações já em mente, visando a articulação de todo o departamento – funcionários inclusive, uma vez que, sem dúvida, não conseguimos aproximá-los das discussões, um problema grave. Logicamente que julho não passará batido. Os grupos de estudo e trabalho continuarão na ativa, bem como reuniões visando a organização do semestre no que tange as lutas.

Ficou claro que posicionamentos individualistas não serão mais tolerados no departamento e sim atacados. Cabe aos estudantes continuar puxando e tensionando. O fim da greve não deve ser encarado como a volta à normalidade. E isso é um grande desafio: é difícil nos mobilizarmos realmente, concretamente, com as aulas de volta (até quando estamos em greve as dificuldades são grandes!). Por isso, mais do que alterar a estrutura de poder, necessária mesmo num departamento conhecido como um dos mais democráticos da USP, a questão é exercer de fato o poder (tomá-lo ou destruí-lo…) exercer de fato a democracia. É agir no sentido de que não serão mais as aulas ordinárias, as atividades acadêmicas que ditarão o ritmo do departamento.

A mobilização na História tem um peso muito grande no movimento. Não é à toa que as bombas da polícia estouraram no prédio que nos abriga, além de outro curso bem mobilizado, o da Geografia. Nossas posições e ações influenciam, certamente, os outros cursos da FFLCH. Para que esses debates de fato possam vislumbrar um maior alcance é preciso articularmos com os nossos vizinhos, aprofundando as discussões e a radicalidade a partir do acúmulo já construído, para a Faculdade de Filosofia tomar uma posição clara na disputa pela universidade e na sociedade.

[*] Bonde [carro eléctrico] da História é como alguns alunos do curso, muito ativos na mobilização e notadamente conhecidos por sua criatividade na composição de músicas e ações para as manifestações, se denominam.

[1] A assembléia geral dos estudantes ainda não deliberou o seu fim, mas a tendência é a saída da greve, seguindo o posicionamento das assembléias de curso, que definiram por sua suspensão – casos da História, Geografia e Filosofia.

Fotos por Daniela Alarcon.

4 COMENTÁRIOS

  1. Só esqueceu de falar:

    – Como vocês são mobilizados, vocês são de um partido ?
    – Não, somos um Bonde. O Bonde da História.
    – E vocês lideram a mobilização da história ?
    – Não, a gente não lidera. A gente comanda geral!

  2. ao ler este artigo fico muito feliz, mas ao mesmo tempo percebo quanto estou isolado em meu recanto, pois faço história também em uma federal a qual o movimento estudantil e controvérsia, destaco a atuação do curso de História desta UF.

  3. Muito bom o texto Luis! Me ajudou a compreender melhor algumas coisas, já que, apesar de ser do curso, tive que acompanhar a greve meio de longe.

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