Lutar pelo direito ao transporte significa lutar pela liberdade, pelo direito à cidade em oposição ao controle do espaço público. Por Passa Palavra
Nos últimos anos, especialmente a partir de 2003 (ano da histórica Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador), intensas lutas têm sido travadas em torno da questão do transporte coletivo em diversas cidades do Brasil e também em muitas outras partes do mundo. Tais lutas refletem especialmente dois aspectos: o caráter de classe do serviço de transporte dentro da sociedade capitalista e a crise de seu modelo atual de exploração.
Iniciando nossa breve análise, partiremos do seguinte pressuposto: se existem lutas sociais, é porque existem conflitos sociais; e se existem conflitos sociais é porque as diferentes classes estão em permanente antagonismo umas em relação às outras. Dito isso, fica a dúvida: quais são então os atores (conseqüentemente as classes) em disputa?
De forma simplificada podemos dizer que são os usuários e trabalhadores do sistema, os empresários, e os gestores estatais. Pela dinâmica contraditória e complexa da questão, em determinados momentos os interesses de cada setor podem se aproximar e em alguns momentos até mesmo se conjugar, mas isso sempre de forma efêmera e transitória, pois são incompatíveis.
O caráter de classe reflete-se na forma como o transporte coletivo é organizado e ofertado na sociedade capitalista. Transformado em mercadoria, sua lógica não pode ser outra senão a lógica do lucro, que rege as relações entre usuários (consumidores) e empresários (vendedores), e empresários (patrões) e trabalhadores do sistema (empregados). Assim, o deslocamento dentro das cidades transforma-se em produto e a (i)mobilidade urbana reflete essas relações socialmente determinadas.
Mais do que uma questão de ordem técnica, como é apresentada pelos gestores e pela tecnocracia dominantes, também de acordo com seus próprios interesses, o transporte coletivo e seu atual quadro de crise têm um caráter eminentemente político e é só por meio desse prisma que o problema pode ser solucionado.
A mobilidade, o direito de ir e vir, enfim, a liberdade de transitar pelas cidades são fundamentalmente mediados de acordo com a estrutura de classes presente em nossa sociedade. Dessa forma, quem tem mais dinheiro movimenta-se mais e melhor, enquanto aqueles que têm menos, pouco se movimentam e fazem isso da pior forma possível – quando não estão completamente imóveis, presos nas periferias das cidades por não conseguirem pagar os altos custos das tarifas ou nem mesmo encontrarem pontos de ônibus próximos de onde vivem. Além de garantir a natureza mercantil do transporte no capitalismo, a tarifa do transporte público constitui uma barreira, simbolicamente demonstrada pela catraca, que impede e exclui aqueles que não possuem recursos financeiros para transitarem pela cidade. Por isso a tarifa e a forma como o transporte público é organizado hoje constituem mecanismos bastante avançados de controle social, privando o grosso da população de transitar em determinados locais, dias e horários e oferecendo à elite mais uma forma de controlar o espaço das cidades.
Sem transporte coletivo não existe vida nas cidades, não existe circulação de pessoas, de consumidores, nem o deslocamento dos trabalhadores aos seus postos de trabalho; sem transporte público, portanto, as cidades não funcionariam. Nessas condições, nada mais óbvio do que transformar o transporte em negócio, reproduzindo a lógica do sistema e fazê-lo funcionar para a produção e comercialização de serviços e mercadorias. O “direito” à mobilidade e à cidade transforma-se em um produto comercializado no mercado capitalista, que organiza esse “serviço público”, beneficiando a estrutura produtiva da sociedade e marginalizando os interesses populares. Basta pensar no preço da tarifa, na disposição das linhas e trajetos e comparar a oferta de transporte nos horários reservados ao trabalho e ao estudo (etapa de qualificação e formação da futura mão-de-obra) com a oferta desse mesmo serviço nos finais de semana e demais horários que não são os de entrada e saída dos trabalhadores em seus locais de trabalho e dos estudantes nos seus locais de ensino.
Fica evidente que são os interesses das classes capitalistas que determinam o transporte nas cidades, e que são eles que se beneficiam de seu funcionamento. Nesse quadro, lutar pelo direito ao transporte – o que pode configurar-se em lutas pela redução da tarifa, ou mesmo contra a existência dela, mas também por melhorias na qualidade do serviço – significa lutar pela liberdade, pelo direito à cidade em oposição ao controle do espaço público.
Feitas essas curtas e sintéticas colocações, cabe-nos agora falar da crise do atual modelo de exploração do transporte coletivo. Trataremos desse tema de forma bastante genérica e esquemática, simplificando propositalmente seu vasto conteúdo.
Como dissemos no início do texto, especialmente a partir de 2003, intensas lutas em torno da questão do transporte têm sido travadas. Mas, ao contrário do que se pode pensar, não é de hoje que o problema do transporte tem gerado grandes revoltas populares.
Entre 28 de dezembro de 1879 e 1º de janeiro de 1880, a cidade do Rio de Janeiro foi palco da chamada Revolta do Vintém, protesto popular de imensa radicalidade contra a cobrança de vinte réis (ou seja, um vintém) nas passagens dos bondes da cidade, que somente após virar os bondes e arrancar os trilhos da Rua Uruguaiana conseguiu conquistar a revogação do tributo. Em Salvador, em 1930, em protesto contra os maus serviços e tarifas altas, o povo tocou fogo em 60 bondes da Cia. Circular de Carris da Bahia, e em agosto de 1981 ocorreu o “quebra-quebra” contra o aumento da tarifa, deixando um saldo de três mortos, dezenas de feridos e 600 ônibus danificados. Exemplos como esses não faltam na história de outras cidades do país, como Recife, São Paulo e Florianópolis.
Entretanto, nos últimos anos o desgaste do atual modelo tem gerado grandes revoltas e manifestações em várias cidades, todos os anos, a cada aumento de tarifa. Seria muito difícil realizar um levantamento de todas essas revoltas, mas não seria justo deixar de citar a histórica Revolta da Catraca, um evento que sem dúvida nenhuma marcou a história de Florianópolis.
Foi a partir da vitória do povo organizado de Florianópolis em 2004 – ano da primeira revolta da catraca, quando milhares de pessoas saíram às ruas para impor pela ação direta popular a revogação do aumento das tarifas decretado naquele ano – que as bases para a formação do Movimento Passe Livre (MPL), um movimento social de luta pelo transporte de âmbito nacional, foram lançadas. E se foi na esteira desse processo que o MPL se formou, foi no ano seguinte, após a segunda revolta da catraca – igualmente grandiosa, impondo uma vergonhosa derrota à elite da cidade, que teve que recuar por dois anos seguidos em relação ao aumento da tarifa – que ele se consolidou. O exemplo vitorioso de Florianópolis ecoou pelo país, dando fôlego e animando a luta por todo Brasil, demonstrando a importância de dois elementos: a espontaneidade das massas e a necessidade da (auto)organização popular, que se combinam e complementam uma à outra.
Sem vontade, iniciativa e participação ativa e espontânea das massas, não há luta vitoriosa; mas sem projeto, organização e um trabalho cotidiano e contínuo, a chance de uma vitória real é quase nula. Por isso, espontaneidade e organização são elementos essenciais e de naturezas convergentes.
Após um curto processo de discussão e amadurecimento, a bandeira inicial do movimento (o passe livre estudantil) foi secundarizada – e mesmo abandonada em muitas cidades – dando lugar ao projeto de Tarifa Zero no transporte coletivo para toda a população.
De um lado, os técnicos do transporte se debruçam sobre o que chamam de crise de financiamento e explicam uma crise que é estrutural dizendo que a mesma se dá pelos altos custos do setor e a insuficiência da tarifa para bancá-los, criando soluções mirabolantes que vão da renúncia fiscal à “eliminação das gratuidades socialmente desnecessárias”, mantendo o modelo de exploração e a mercantilização do direito de ir e vir das pessoas. Do outro lado, preocupado em resolver a crise de mobilidade da população, alijada do direito à cidade, a proposta do MPL é inverter essa lógica com o fim da tarifa e o custeio indireto do serviço, que seria financiado por toda a sociedade (e não mais apenas pelos usuários) onerando os setores mais ricos [1].
Ao tratarmos a crise de mobilidade como produto da crise de financiamento não enxergamos a chave do problema: o controle privado e a lógica mercantil sobre o direito de ir e vir das pessoas. Enquanto essa realidade não for transformada, continuaremos a ver o transporte em crise e as lutas sociais pelo transporte não tardarão em crescer.
Nota:
[1] Para entender melhor a oposição entre “crise de financiamento” e “crise de mobilidade”, ver o artigo de Manolo “Transporte coletivo urbano: crise de financiamento vs. crise de mobilidade”, disponível aqui.
O país do nada social
Não achei muito completo,porque não fala bem claramente sobre as lutas sociais em São Saulo….acho que poderia ser bem mais específico.
bjussss