As condições materiais da gravação de canções em disco determinam decisões estéticas, técnicas e éticas. É um tripé que cai fatalmente se lhe faltar um dos pés. O produtor (“producer”) decide, através do ‘como’, ‘o quê’ passa para o lado de lá. Por José Mário Branco
Começar a fazer canções, e a cantá-las, como uma necessidade profunda de exprimir a vida e de lhe buscar um sentido – eis como me tornei “cantautor”. Nunca pegara numa guitarra [violão]; estudara um pouco outros instrumentos, mas não esse. Um dia alguém esqueceu uma velha guitarra na minha casa, em Paris; a urgência de cantar trouxe a urgência de aprender, e aprendi de ouvido; comprei livros, estudei acordes, pratiquei muito, sozinho. Situação comum dada a portabilidade e a grande eficácia harmónico-rítmica de uma guitarra.
A estreita relação entre as canções e os problemas da sociedade teve um efeito decisivo quando se tratou de registá-las em disco.
Uma coisa é estar em casa, de viola na mão com uma folha de papel à frente, a “ouvir” uma melodia com umas palavras na cabeça, a experimentá-la, cantando-a sozinho – uma criação não partilhada, em que a obra parece “acontecer”, nascer e produzir-se como se já existisse desde o fundo dos tempos, mas que não existe senão como um projecto de que somos portadores. Depois, o primeiro teste que é cantá-la para os amigos e em que sempre canto mal… “Aqui não é bem assim”, a voz foge, não se afirma, os dedos não acertam nas cordas.
Outra coisa é ir para um palco e cantar uma canção com o público na sala. Nova ou antiga, nesse momento, inicia-se um processo. Dependendo do tema e do género de canção, das condições espaciais, técnicas e sociais da actuação, após um tempo de maturação (minha e do público), é palpável o processo de vai-vem de emoções, de olhares e de não sei mais o quê que vai fazendo crescer (ou mirrar) uma canção. Há uma apropriação do lado de lá e uma reapropriação do lado de cá. Se cantei bem, o retorno da sala diz-me que cantei bem e a canção cresce. Se cantei menos bem, o retorno da sala manda o sinal e em poucos segundos – às vezes fracções de segundo – a canção perde-se no vazio de uma exibição. No teatro chamamos “companheiro seguro”, a esse plano mental autonomizado com que o intérprete vai controlando e (auto-)criticando a sua interpretação. Essa auto-observação da minha interpretação, que não pode ser impeditiva de uma entrega total, é a condição para que a canção possa acontecer. Só assim a obra é recriada – e não é recriada só por mim. Se o público não estivesse ali, nada acontecia. O intérprete nunca “acontece” sozinho. Por isso digo que este tipo de criação – a que geralmente chamamos interpretação – é uma criação partilhada.
Andava eu a cantar por toda a Europa onde havia portugueses emigrados ou exilados, até que, pela mão de José Afonso, alguém telefona e diz: “Queres gravar um disco?”. “Sim!”. O convite é de Lisboa; eu estou em Paris, com 1.800 km e uma península fascista pelo meio; não posso ir a Lisboa. Tenho de gravar em França – com estúdios cinco ou seis vezes mais caros que os portugueses, e os músicos-instrumentistas também. As condições materiais da produção implicam que tenho de preparar tudo ao pormenor para gravar em poucas horas e com poucos músicos. Quando se estava em estúdio (falo no pretérito porque os processos técnicos mudaram muito) a gravar com a responsabilidade simultânea da produção executiva quase se ouviam os números a pingar na factura!
Como resolver este problema? Nada tem a ver com as histórias dos Beatles e do George Martin, que ocupavam os melhores estúdios do mundo durante um ano e gravavam quando gravavam, divertiam-se, iam passear e voltavam. Eu, músico marginal que acabava de ser convidado a desmarginalizar-se, antes de entrar em estúdio, tinha de pensar em tudo, planificar tudo, organizar tudo ao mais ínfimo pormenor. Mapas de controlo, esquemas, minutagem de takes, aproveitamento do flautista para tocar numa só sessão tudo o que escrevi para a flauta, tabelas de ocupação das pistas (o álbum de José Afonso, Cantigas do Maio [1971], foi gravado em seis dias com oito pistas analógicas e sem os ainda inexistentes automatismos de mistura). Saber antecipadamente as características dos microfones e das máquinas, visitar o estúdio para “ouvir” e “cheirar” o espaço, conhecer o técnico. Tenho de o conquistar para o meu lado – porque são os técnicos que fazem o som, não sou eu; o que as pessoas ouvem foi ele que o fez – e habituei-me a que a primeira sessão (paga) de três horas seja só para conversar com o técnico, explicar-lhe o projecto, em França traduzir as letras, em suma, torná-lo meu cúmplice.
Se tenho de levar tudo pensado, tudo previsto, tudo escrito nas partituras que eles vão tocar e gravar, tenho de ser capaz de ouvir o disco antes de ele existir… (Haendel dizia: “o compositor é aquele que ouve a música antes dos outros”.) Só assim vou poder dizer exactamente aos técnicos e aos músicos o que quero que eles façam. Como um encenador de teatro que, durante os ensaios, é o representante do público que vai haver um dia; ou como um realizador de cinema que tem de “ver” todas as cenas do filme antes de as filmar – eu tenho de ser o ouvinte que vai haver um dia.
Que escrevo na partitura para o pianista tocar? Será mesmo um piano que eu quero ouvir aqui? Tantas decisões em representação do futuro público ouvinte! Como escolher? como decidir? como quero ouvir esta canção, e aquela, e aquela? Com alguma prática de rádio e de teatro, percebi que não conseguia resolver esta questão com meios puramente musicais. Um amigo disse-me, há mais de 20 anos: “Já não se faz música, faz-se som.” Então a noção de “orquestração” ou “arranjo” está ultrapassada. Para o meu primeiro álbum, em 1970, percebi que estava a fazer encenações sonoras, a partir de conceitos de teatro (arte da presença) e de sonoplastia (estética do sinal acústico). E que são os músicos, afinal, senão sonoplastas? A base desse trabalho é musical: os mil e um instrumentos possíveis, a paleta dos timbres, as máquinas periféricas que permitem tratar o sinal, colori-lo, redimensioná-lo, fundi-lo ou destacá-lo. No fim do Cantigas do Maio, o editor de José Afonso telefonou-me do Porto para Paris: “Ó JMB, francamente! O álbum tem nove ou dez canções. A maior parte tem vários instrumentos. Mas há três, pelo menos, que quase só têm a voz do José Afonso! E você leva-me o mesmo cachet por todas as canções?” Respondi: “Há milhares de instrumentos. Tive de escolher. Você não paga os instrumentos que eu ponho, você paga os que eu tiro! Essas três canções deviam ser muito mais caras do que as outras.”
Trata-se pois de conseguir ouvir antes dos futuros ouvintes. Mas como posso defini-los?! Não sei quem eles são, onde estão, como vão ouvir, se ouvem em casa ou na rua ou no táxi, se ouvem sozinhos ou acompanhados, se o aparelho leitor é bom ou é mau, se estão doentes ou de saúde, se estão tristes ou alegres. O teatro e a rádio. Voltemos atrás.
Quando canto uma cantiga no palco, para as pessoas que estão ali olhando para mim, o que é que eu faço? Dou-lhes emoções, exponho emoções – estéticas, poéticas, dramáticas, sensuais, pessoais… E elas devolvem-me emoções. Como posso fazer isso em um registo, num disco, se elas não estão aqui ouvindo e se todo o processo de apresentação é desconstruído (por necessidade material de rentabilizar o tempo de ocupação do estúdio)? A média do ser humano a que me dirijo… quem é? O teatro diz: se fores verdadeiro para ti, sê-lo-ás para toda a humanidade. E mostra, como nenhuma outra arte, que há uma oposição insanável entre exprimir-se e exibir-se. O que tenho de fazer – ao ouvir as canções em disco antes dos outros – é ser verdadeiro, ser pessoanamente verdadeiro, implacavelmente verdadeiro. As emoções gravadas só atingirão esses outros todos se o resultado sonoro do que eu gravar me atingir a mim. Fecho os olhos e ouço; o que me emociona? – aqui é um quarteto de cordas, ali é um coral heróico, além é apenas uma voz, ou um tambor. Ouço na minha cabeça e escrevo no papel. E corrijo, e opto por outro instrumento, altero a pulsação, experimento outro registo; e recomeço a ouvir; trabalho aturadamente na minha oficina.
Deste modo, as canções gravadas são como garrafas de náufragos atiradas ao mar… Ou como filhos que crescem e saem de casa para irem viver a sua vida. Quem as vai ouvir? não sei. Quem vai sentir o que eu senti? não faço a mínima ideia. As canções passam a existir fora de mim. Deixa de haver coincidência entre sujeito e objecto. Tal como no palco, elas também são apropriadas e recriadas do lado de lá – só que, no caso da canção gravada, eu não sei por quem. As canções não são “minhas”. Não há pertença, só há origem. Foi assim no distanciamento insuperável do exílio. Presumi que as pessoas que ouviriam a Ronda do Soldadinho ou a Queixa das Almas Jovens Censuradas ou os Perfilados de Medo, lá nesse Portugal longínquo, cinzento e sofredor de uma ditadura jesuítica, provavelmente sentiriam o que eu senti, que era o que eu queria que elas sentissem.
E, porque atinge coisas tão fundas e essenciais, teve de continuar sendo assim até hoje, ao longo de quarenta anos. Nos meus discos e nos discos dos outros que dirijo.
Cheguei à conclusão de que, apesar da solidão das quatro paredes do estúdio, apesar da tecnicidade quase cinematográfica do processo de produção, este é – também – um processo de criação partilhada. Partilhada com uma comunidade de pessoas que não conheço, mas que existe. Partilhada em diferido.
Esta partilha em diferido que teve origem num choque de estatutos sociais opostos – a marginalidade e a inserção no sistema –, tem muitas consequências, e não apenas teóricas. Uma consequência prática é a necessidade que senti, ao longo dos anos, de gravar de novo – reinterpretar – certas canções, uma segunda vez, uma terceira até. Porque nós evoluímos, a sociedade e o mundo também, e as canções revivescem em diferentes contextos. Outra consequência prática é uma linha de trabalho que venho procurando ao longo dos anos, quanto às canções gravadas. Ouvindo muita música, a minha e sobretudo a dos outros, percebe-se que não há, no fluxo de uma canção ou de uma peça musical registada, qualquer espaço-tempo para a neutralidade emocional. Ao gravar, o criador-intérprete tem de se assegurar de que conduz as emoções do criador-ouvinte na direcção desejada. Não existe um milissegundo de neutralidade, de “tempo morto”, de indiferença – porque tempo-morto e indiferença são também factores emocionais. Então o que procuro – e ainda não consegui – é definir e controlar esse fluxo emocional à micro-escala, segundo a segundo, nota a nota, pausa a pausa. A partir do conceito de aproximação à realidade a que os fotógrafos chamam “definição” (resolution), eu gostaria de conseguir apurar o que – agora – chamo definição emocional de uma peça musical gravada.
Este artigo é dividido em quatro partes que podem ser acessadas aqui.
olá fiquei surpreendida por ver uma foto minha tirada por mim aqui…
Parabens tambem amo a musica…
Que bonito. Esta oposição entre exibir-se e exprimir-se conseguiu sintetizar muita coisa.
Onde está o primeiro artigo? Lamento não ter conhecido antes a música de José Mário Branco, estou procurando corrigir isto agora mesmo. Obrigada.
Talitha,
Encontra aqui o 1º artigo:
http://passapalavra.info/?p=10420
O 3º artigo:
http://passapalavra.info/?p=11470
E o 4º artigo:
http://passapalavra.info/?p=29443
Quanto às canções e músicas de José Mário Branco, ao longo de toda a sua carreira, encontra-as sem dificuldade no YouTube.
Sim, sim, já ouvi várias ontem. Muito obrigada.