Por Leo Vinicius

 

No encontro do Earth First! em 1997, em Glasgow, era consensual aos ativistas que a construção de estradas não forneceria mais tantos pontos de resistência pelo Reino Unido. Sendo assim, a luta contra campos de teste de Organismos Geneticamente Modificados foi abraçada como um novo terreno de ação. Sentia-se contudo que, embora os anos 1990 tivessem visto um rápido crescimento do movimento de ação direta, com milhares se engajando, o movimento não havia tido a infra-estrutura para sustentar uma participação continuada, ao longo do tempo. Aqueles que haviam participado das lutas antiestradas, mas que não integraram nenhuma rede específica, acabariam se afastando de alguma forma com o fim dessas lutas – seja para irem para uma política tradicional, se envolverem com drogas, irem trabalhar ou acabarem em casas psiquiátricas. (A ausência de um suporte psicológico e o fato de não poucos ativistas acabarem se envolvendo com drogas ou terem problemas psíquicos era uma preocupação que aparecia com alguma freqüência em publicações e textos produzidos por ativistas britânicos envolvidos com ação direta, como no número 10 da revista Do or Die. Os problemas existenciais apareciam assim como algo que o movimento ainda não estaria preparado para lidar, embora fossem bastante presentes entre esses ativistas).

O ano de 1998 viu uma proliferação de squats na Inglaterra, que serviriam como espaços onde pessoas envolvidas com ação direta poderiam se encontrar, discutir e se organizar. Mas aquele ano seria também o do primeiro Dia de Ação Global, que na Inglaterra seria convocado como Carnaval contra o Capitalismo. Com o envolvimento do Reclaim The Streets de Londres na formação e articulação da rede Ação Global dos Povos, e na convocação mundial dos Dias de Ação Global – que se tornariam uma espécie de “marca registrada” do movimento antiglobalização –, em 16 de maio de 1998 ocorreria durante o encontro do G8 em Birmingham as primeiras ações de rua dos ativistas britânicos que fariam parte do que posteriormente ficaria conhecido como movimento antiglobalização.

Nos 20 meses seguintes a maio de 1998 houve 34 acampamentos de resistência a diversos projetos e construções. Mas após o primeiro Dia de Ação Global, e após 65 festas de rua registradas no país, o RTS colocaria praticamente todas as suas energias no J18, como ficou conhecido o Dia de Ação Global de 18 de junho de 1999, simultâneo ao encontro do G8 que se realizava em Colônia, Alemanha. Mas antes, no 1º de maio de 1999 o RTS ainda organizou uma festa em que cerca de mil pessoas ocuparam um trem do metrô em apoio aos metroviários e contra a privatização do setor.

O J18 marcaria a convergência de várias campanhas específicas e grupos libertários e de ação direta em um evento com uma crítica explicitamente anticapitalista. Durante um ano foram preparados um carnaval no centro financeiro de Londres e ações descentralizadas pela cidade. O J18 em Londres foi considerado um sucesso, em linhas gerais, e inspirou os eventos que aconteceriam naquele mesmo ano em Seattle. Mais de 10 mil pessoas participaram do J18 em Londres. As autoridades foram pegas de surpresa. Uma manifestação onde não eram identificadas lideranças, que fugia aos padrões tradicionais de eventos em que se identificava uma estrutura hierárquica ou organização formal por trás – e portanto controláveis de alguma forma –, que era ao mesmo tempo inesperada e que teve um impacto que nenhuma outra manifestação teve na Inglaterra desde 1990. Houve distúrbios e destruição de propriedade, principalmente no centro financeiro. Os prejuízos foram avaliados em mais de 1 milhão de libras. Reclaim The Streets e a palavra “anarquista” iriam povoar os jornais ingleses nos meses e anos seguintes ao J18 – o jornal The Guardian publicaria 126 artigos envolvendo o Reclaim The Streets entre 1999 e 2003.

Muitos ativistas que trabalharam incessantemente durante um ano inteiro para que o J18 acontecesse – um único dia de manifestação – se viram exaustos depois desse dia. Mas o principal saldo negativo teria sido a repressão e perseguição política que foi desencadeada. Quanto a isso também é interessante mencionar que na seqüência do J18 foi lançada uma lei que ficou conhecida como Terror Bill, enquadrando como terrorismo práticas usadas por grupos de ação direta contra empresas, e criminalizando a dissidência social e política de variadas formas. Seria mais uma lei, a qual se seguiriam outras nos anos seguintes, como o Public Order Act, na tentativa de criminalizar essa dissidência política e social, além de formas de protesto e de ação direta.

O J18 foi ao mesmo tempo o auge de impacto e o início do fim do RTS londrino. O RTS viraria a partir de então quase um sinônimo de enorme policiamento e de distúrbio de rua. Uma escalada que tornaria inviável a continuação do RTS como nome e para seus membros nos anos seguintes. Segundo John Jordan, o RTS não conseguiria se recuperar da campanha de criminalização lançada contra ele pela mídia e pelo Estado. Ele próprio passara a ser seguido por policiais quando levava seu filho à escola e teve seu apartamento vasculhado pela polícia. Outras pessoas envolvidas com o RTS receberiam telefonemas e intimidações do tipo.

Para o N30, o Dia de Ação Global seguinte, no dia 30 de novembro de 1999, o RTS organizaria uma manifestação com o nome Reclaim The Railways (Retome as Estradas de Ferro), numa estação de metrô central de Londres. Pretendia-se que fosse apenas um protesto contra a privatização do metrô, com discursos e palco, mas a manifestação, que atraiu alguns milhares de pessoas, acabou em confronto com a polícia, um carro de polícia virado e incendiado, e manifestantes presos. O N30 em Londres confirmara a impressão de alguns ativistas de que após o J18 o nome Reclaim The Streets ao mesmo tempo em que atraía uma multidão, atraía distúrbios de rua que levariam a uma relativamente fácil criminalização e isolamento do movimento.

Mais um exemplo da enorme sombra criada em torno do RTS ocorreu em abril de 2000. Uma manifestação em frente à multinacional Fidelity Investments, contra o investimento da companhia na petrolífera Oxy (que disputa terras com os povos originários Uwa na Colômbia), teve grande presença policial. Mas havia apenas 25 manifestantes, do RTS e de uma ONG, que estavam protestando calmamente diante da empresa. O conhecimento de que o RTS faria um protesto na Fidelity Investments trouxe não só um grande aparato policial – uma vez que o RTS ficara associado às manifestações do J18, com tudo que ela teve de quantidade de pessoas, de imprevisível e de distúrbio –, mas também um certo desespero por parte da empresa. Os funcionários da Fidelity Investments foram dispensados de ir ao trabalho naquele dia. O nome da empresa foi apagado da frente da sede e o departamento de relações públicas se apressou em negar qualquer envolvimento da empresa com a disputa por terra na Colômbia e que nenhum dinheiro de investidores britânicos havia ido para a Oxy, e que mesmo assim reveriam cuidadosamente seus investimentos!

No mês seguinte ocorreria o próximo Dia de Ação Global chamado pela AGP: o 1º de maio de 2000. Há muito algumas pessoas envolvidas com o RTS queriam se afastar da fórmula das festas de rua, que pelo seu sucesso acabavam prendendo o RTS a essa forma de ação. Ao lado disso havia a preocupação de que o dia 1º de maio não se tornasse em um confronto entre polícia e manifestantes. Uma espécie de temor das próprias forças que o RTS teria despertado, e o sentimento de estar num círculo vicioso em que qualquer coisa que fosse programada se tornava um distúrbio de rua com destruição de vidros e confronto com polícia. Por esses e outros motivos o RTS resolveu convocar uma “guerrilha de jardineiros” para o dia. A ação consistia em plantar, principalmente alimentos, em espaços públicos. Aquele 1º de maio foi palco da maior operação policial em 30 anos na Inglaterra. Os distúrbios aconteceram de qualquer modo. A idéia de guerrilha de jardineiros nunca mais seria repetida, sinal de que foi frustrante para boa parte dos participantes.

Para ativistas do movimento de ação direta o 1º de maio de 2000 foi ao mesmo tempo uma expressão de um processo vivido e um ponto ao qual esse processo os teria levado. Na relativa curta história do movimento de ação direta teria havido um aumento de militância (em termos de táticas em que estavam preparados para usar) e de radicalidade (em termos de idéias) do movimento. Teria havido um afastamento de temas e campanhas restritas a temas específicos e de posições reformistas e liberais em benefício de uma política mais radical e revolucionária. Essa mudança era vista também como parte da trajetória geral que os movimentos de contracultura juvenil politicamente orientados pareceriam seguir. Tal mudança se expressava na própria definição que o RTS de Londres dava a si próprio. Por volta dessa época o RTS já se definia essencialmente como um grupo ou projeto anticapitalista: “uma rede de ação direta pela(s) revolução(ões) social-ecológica global e local para transcender a sociedade hierárquica e autoritária, (capitalismo incluído), e ainda estar em casa para o chá”. E o Earth First! britânico, que havia nascido como um movimento de defesa da natureza virgem num lugar sem natureza virgem, evoluíra se tornando uma rede de revolucionários em tempos não-revolucionários, como diriam alguns de seus integrantes.

Entre 1999 e 2002 houve uma sensível redução do número de acampamentos ecológicos de ação direta na Inglaterra. Mas eles voltaram a crescer em 2003 com o retorno de projetos de construção de estradas. E embora em 2002/2003 houvesse muito menos grupos EF! do que em meados dos anos 1990 e a contracultura traveller tivesse sido em parte destruída, o movimento de ação direta continuava com vigor. Essa generalização ou aumento da ação direta foi assim vista pelos ativistas como uma das importantes vitórias do movimento.

Em setembro de 2001 o RTS organizaria uma manifestação que visava obstruir uma feira de produtos bélicos (Arm Fair). Tentando conseguir com que a mensagem dos manifestantes não fosse ocultada por distúrbios e confrontos com a polícia, os panfletos e convocações para a manifestação não usaram o nome Reclaim The Streets. Uma banda de samba animava a carnavalesca e pacífica manifestação, que atraiu cerca de mil pessoas – número considerado bastante aquém do que se conseguiria caso a identidade Reclaim The Streets tivesse sido utilizada. O RTS de Londres, como resultado de um processo de criminalização e em parte como resultado do seu próprio sucesso, fazendo sair os eventos do seu próprio controle e, em parte, do seu objetivo, foi aos poucos deixando de existir. Seus principais ativistas foram abraçar outros projetos, sem se desconectarem da Ação Global dos Povos em nível global.

O Centro de Mídia Independente do Reino Unido (Indymedia UK) foi formado a partir do grupo de mídia do RTS. John Jordan formou o Exército Clandestino Insurgente de Palhaços Rebeldes. Mark Brown, um dos mais envolvidos com o RTS, participaria do Rising Tide – um coletivo focado nas mudanças climáticas – e do London Action Resource Center – um centro social criado em um imóvel alugado. Outras pessoas bastante envolvidas com o RTS abraçariam outros projetos. Em 2004 alguns criariam a rede Dissent!, que organizaria ações diretas durante a cúpula do G8 em Gleneagles em 2005, na Escócia.

Leia as partes I, II, III e V.

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Referências usadas

Revista Do or Die: http://www.eco-action.org/dod;

JORDAN, John. The Art of Desertion. Apresentado em Live Culture – Live Art at the Tate Modern, Londres, 2003. Disponível em http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0304/msg00016.html

1 COMENTÁRIO

  1. Ótimo artigo!
    Vale ressaltar que esse formato de ação direta influenciou muito os movimentos espalhados pelo mundo todo. Ninguém aguentava mais os figurões dos partidos polítcos e sindicatos formais falarem, literal e figuradamente, de cima, trepados em seus barulhentos e irritantes carros-de-som, bradando ‘companheiros e companheiras’.
    Muito bom mesmo o artigo, aguardo a continuação.

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