O pacote habitacional lançado em abril de 2009 tem sido apresentado como uma das principais ações do governo Lula em reação à crise econômica internacional. A seguir pretendemos apresentar uma avaliação do pacote, por meio de algumas questões que nos auxiliam a compreendê-lo melhor. Por Pedro Arantes e Mariana Fix [1]

O pacote habitacional lançado em abril de 2009, com a meta de construção de um milhão de moradias, tem sido apresentado como uma das principais ações do governo Lula em reação à crise econômica internacional – ao estimular a criação de empregos e de investimentos no setor da construção –, e também como uma política social em grande escala. O volume de subsídios que mobiliza, 34 bilhões de reais (o equivalente a três anos de Bolsa-Família), para atender a população de 0 a 10 salários mínimos de rendimento familiar, é, de fato, inédito na história do país – nem mesmo o antigo BNH dirigiu tantos recursos à baixa renda em uma única operação. Por isso, o governo Lula tem destacado que o investimento, apesar de focado na geração de empregos e no efeito econômico anticíclico, tem um perfil distributivista, ao contrário do que faria a oposição – que provavelmente executaria obras diretamente de interesse do capital.

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Grandes conjuntos – o modelo do Regime Militar (BNH)

O objetivo declarado do governo federal é dirigir o setor imobiliário para atender à demanda habitacional de baixa renda, que o mercado por si só não alcança. Ou seja, é fazer o mercado habitacional finalmente incorporar setores que até então não tiveram como adquirir a mercadoria moradia de modo regular e formal. Se as “classes C e D” foram descobertas como “mercado” por quase todas as empresas nos últimos anos, ainda havia limites, numa sociedade desigual e de baixos salários, para a expansão no acesso a mercadorias caras e complexas, como a moradia e a terra urbanizada. Com o pacote habitacional e o novo padrão de financiamento que ele pretende instaurar, esses limites pretendem ser, se não superados, alargados por meio do apoio decisivo dos fundos públicos e semipúblicos, de modo que a imensa demanda por moradia comece a ser regularmente atendida pelo mercado.

Para os mais pobres, o subsídio é alto (entre 60% a 90% do valor do imóvel) e o risco de despejo, no caso de inadimplência, é zero (a única penalidade é não receber o título da moradia enquanto não forem quitadas as prestações). Para os demais, que entram em financiamentos convencionais, mas também subsidiados, o governo estabeleceu um “fundo garantidor” para fornecer um colchão público no caso de inadimplência dos nossos mutuários subprime. Isso quer dizer que o “pacote de bondades” é generoso para todos os que conseguirem nele entrar, empresários ou famílias que necessitam de moradia. Para as construtoras, a promessa é que “haverá para todos, grandes e pequenos”, como se manifestou um empresário da construção em seminário da categoria. Entretanto, para os sem-teto, o atendimento previsto é para apenas 14% da demanda habitacional reprimida, do nosso déficit habitacional de ao menos 7,2 milhões de casas. Mas parece claro que, no caso de “sucesso” desse novo sistema produtor da mercadoria-habitação colocado em marcha, o programa poderá deixar de ser conjuntural para se tornar estrutural e prolongado no tempo.

A seguir pretendemos apresentar uma avaliação do pacote, a partir das informações, medidas e instruções normativas que foram divulgadas até o momento (julho de 2009), por meio de algumas questões que nos auxiliam a compreendê-lo melhor.

1) Qual é o modelo de provisão habitacional que o pacote favorece?

97% do subsídio público disponibilizado pelo pacote habitacional, com recursos da União e do FGTS, são destinados à oferta e produção direta por construtoras privadas, e apenas 3% a entidades sem fins lucrativos, cooperativas e movimentos sociais, para produção de habitação urbana e rural por autogestão. O pacote não contempla a promoção estatal (projetos e licitações comandados por órgãos públicos), que deve seguir pleiteando recursos através das linhas existentes, com fundos menores (apesar do aumento recente), muito mais concorridos, com restrições de modalidades de acesso e de nível de endividamento – além de depender por vezes de intermediários que agenciem a solicitação dos municípios junto ao governo federal.

Esse perfil de investimento já indica qual o modelo claramente dominante no pacote habitacional e a aposta na iniciativa privada como agente motora do processo. A justificativa é a dificuldade do poder público (sobretudo municipal) na aplicação de recursos e a lentidão na execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o que acabou induzindo o Governo Federal e a Casa Civil a optarem por uma produção diretamente de mercado, que dispensa em grande medida a gestão pública. Ineficiência, falta de quadros, burocratismo, restrições legais e fiscais, licitações demoradas, órgãos de fiscalização (tribunais de contas e controladorias) são, efetivamente, fatores que contribuem para a lentidão e a baixa efetividade da administração pública, que sucumbe diante da solicitação de rapidez operacional exigida pela situação emergencial de reversão da crise (e das eleições no ano que vem). De outro lado, os movimentos populares e seus mutirões [trabalho colectivo, voluntário e gratuito para fins de ajuda recíproca] ou cooperativas teriam pouca capacidade de resposta a uma demanda em grande escala, além de apresentarem dificuldades e atrasos na execução das suas obras. Desse modo, o governo federal ao invés de atuar para reverter esse quadro de entraves à gestão pública e de fragilidade do associativismo popular, reconhece que a eficiência, enfim, está mesmo do lado das empresas privadas.

moradia_2A produção por construtoras, para a faixa de mais baixa renda, entre 0 e 3 salários mínimos por família (até 1.394 reais), é por oferta privada ao poder público, com valores entre 41 e 52 mil reais por unidade, dependendo do tipo de município (acima de 50 mil habitantes) e da modalidade de provisão (casas ou apartamentos). Estão previstas, para esta faixa, denominada de “interesse social”, 350 mil unidades habitacionais urbanas mais 50 mil unidades para habitação rural por autoconstrução, sempre com subsídio orçamentário da União. Uma produção “por oferta” significa que a construtora define o terreno e o projeto, aprova junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que produzir para a Caixa Econômica Federal, sem gastos de incorporação imobiliária e comercialização, sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades. A Caixa define o acesso às unidades a partir de listas de demanda, cadastradas pelas prefeituras. Assim, os projetos não são formulados a partir do poder público ou da demanda organizada, não são licitados, não são definidos como parte da estratégia municipal de desenvolvimento urbano e podem inclusive contrariá-la. São estritamente concebidos como mercadorias, rentáveis a seus proponentes. Mesmo que submetidas à aprovação dos órgãos competentes, estes estão pressionados em todas as instâncias a obter resultados quantitativos para cumprir as metas do programa.

Nas faixas imediatamente superiores, de 3 a 10 salários por família, ou de “mercado popular”, são previstas 600 mil unidades. Os recursos são do FGTS e contemplam subsídios diretos de até 20 mil reais, mais redução nos juros, em montante inversamente proporcional ao rendimento familiar. Os valores ficam entre 73 a 130 mil reais, faixa que interessa às construtoras que já atuam nos chamados mercados “econômico” e “super-eco” para a classe média baixa. Nesse caso a comercialização é feita diretamente pelas empresas e o interessado vai diretamente aos estandes de vendas ou aos cada vez mais concorridos “feirões da casa própria” patrocinados pela Caixa Econômica Federal.

2) O pacote irá mesmo beneficiar as famílias que mais precisam?

A história do subsídio habitacional no Brasil é conhecida pela constante captura da subvenção pelas classes médias e agentes privados da produção imobiliária, ao invés de atender, na escala necessária, os trabalhadores que mais precisam. Embora essa tendência deva novamente prevalecer, há que se considerar o interesse político e eleitoral do governo em atingir a base da pirâmide. Ao contrário do regime militar, no qual a sustentação era dada sobretudo pelas classes médias, o governo Lula precisa fazer chegar a casa a uma parcela do seu eleitorado, como fez com o ProUni no caso das bolsas do ensino superior.

moradia_4Existem algumas diferenças entre as prioridades do governo e do mercado imobiliário que precisam ser avaliadas, mesmo que a dependência recíproca proporcione a convergência de interesses e de ganhos, tanto eleitorais quanto econômicos. De um lado, o governo quer que o subsídio favoreça o deslocamento do mercado imobiliário para faixas de baixa renda, onde obtém maiores dividendos políticos, enquanto o mercado quer aproveitar o pacote para subsidiar a produção para classe média e média-baixa, onde obtém maiores ganhos econômicos. Em ambos os casos, o mercado depende do governo para expandir a oferta e não do sistema privado de crédito, como nos países centrais, ou seja, é um mercado que não é plenamente capitalista e acaba alimentado pelos fundos públicos. De outro lado, o governo depende do mercado para implementar uma política social, pois o sucateamento dos órgãos públicos, das secretarias de habitação e das Cohabs, além de questões ideológicas, impedem uma ação dirigida predominantemente pelo Estado. Há, assim, um amálgama de interesses econômicos e políticos que exige de ambas as partes, governo e empresas, que atuem em unidade – em uma aliança muito mais instrumental do que propriamente programática (no sentido de um “capitalismo popular”, por exemplo).

O perfil de atendimento previsto pelo pacote revela, por sua vez, o enorme poder do setor imobiliário, pois favorece claramente uma faixa estreita da demanda que mais lhe interessa, conforme demonstram os Quadros apresentados a seguir. O déficit habitacional urbano de famílias entre 3 e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total (dados da Fundação João Pinheiro para o ano 2000), mas receberá 60% das unidades e 53% do subsídio público. Como mostramos no Quadro 2, essa faixa poderá ser atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo o mercado imobiliário, que a considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se abaixo dos 3 salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do déficit para esta faixa. No caso do déficit rural, como discutiremos adiante, a porcentagem de atendimento é pífia, 3% do total necessário.

Quadro 1– Descolamento entre atendimento do pacote e perfil do déficit
O gráfico abaixo revela a disparidade entre o perfil do déficit e do atendimento proposto pelo pacote.

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Fonte: elaboração própria a partir de dados da Fundação João Pinheiro para o déficit calculado com base no IBGE para o ano 2000.

Quadro 2 – A faixa de 3 a 10 SM é a maior beneficiada, graças ao interesse do mercado
A enorme diferença entre as porcentagens de atendimento demonstra que as construtoras conseguiram dirigir o pacote para atender o filão que mais lhe interessa.

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Fonte: elaboração própria a partir de dados da Fundação João Pinheiro para o déficit calculado com base no IBGE para o ano 2000.

Tais dados evidenciam que o atendimento aos que mais necessitam se restringirá, sobretudo, ao marketing e à mobilização do imaginário popular. Mesmo para alcançar os 8% do déficit de 0 a 3 salários a empreitada será difícil, pois as construtoras irão privilegiar a faixa acima de 3 salários, que irá capturar atenções e as iniciativas do setor. A entrada na faixa inferior só ocorrerá de forma maciça se as empresas conseguirem torná-la igualmente lucrativa – por uma simples regra de mercado. Para tanto, estão fazendo pleitos junto ao governo para que amplie os valores da produção “por oferta”, até alcançar o ponto ótimo da viabilização do negócio, pois é disso que estamos falando.

3) Como o pacote mobiliza a ideologia da casa própria?

O pacote habitacional e sua imensa operação de marketing retomam a “ideologia da casa própria” que foi estrategicamente difundida no Brasil durante o regime militar, como compensação em relação à perda de direitos políticos e ao arrocho salarial. Em diversas pesquisas de desejo de consumo dos brasileiros, em todas as faixas de rendimento, a casa própria aparece em primeiro lugar. Ao mesmo tempo, a casa própria, sobretudo para os trabalhadores que não têm como adquiri-la pelo salário, ao ser entregue pelo governo aparece como uma dádiva (ou um fetiche), um benefício que promove dividendos para todos os seus intermediários, dos empresários aos políticos.

As similaridades e diferenças entre o padrão de dominação social atual e do regime militar estão para além dos objetivos deste artigo, mas o paralelo imediato que se pode traçar é a promessa de casa própria como substitutiva da emergência histórica do trabalhador como sujeito que controla a mudança social (seu sentido, alcance, padrão de integração etc). Seja por coerção, cooptação ou consentimento, a casa própria é inserida num contexto de apaziguamento das lutas sociais e de conformismo em relação às estruturas do sistema. A casa talvez seja o marco mais poderoso da chamada “integração” social.

Evidentemente que não se trata apenas de um fenômeno ideológico. A casa própria é percebida e vivida pelas camadas populares como verdadeiro bastião da sobrevivência familiar, ainda mais em tempos de crise e de instabilidade crescente no mundo do trabalho. A casa própria, no Brasil, representa a garantia de uma velhice “com-teto”, na ausência ou insuficiência da previdência social, ou seja, é vista como a única garantia para um fim de vida com o mínimo de segurança e dignidade. Para os jovens casais com filhos ou mães chefes-de-família, a casa própria é a garantia de uma estabilidade em vários níveis, em relação à escola dos filhos, aos laços de solidariedade de bairro, à segurança real e simbólica de não ser ameaçados ou vitimados pelo despejo em caso de desemprego. Nesse sentido, a casa própria cumpre um papel de amortecedor diante da incompletude dos sistemas de proteção social e da ausência de uma industrialização com pleno emprego e é, por isso, o “sonho número um dos brasileiros”. Para os políticos, a operação de marketing se faz necessária para amplificar os dividendos eleitorais, pois grande parte do pacote ocorre no plano do imaginário, dada a disparidade entre a promessa e o atendimento previsto, como indicamos anteriormente. Para o capital imobiliário, que ganha a parcela substantiva dos dividendos econômicos da operação, a mobilização do imaginário e da expectativa popular é um excelente negócio, pois ela colabora ativamente para garantir a continuidade do pacote, independente de quem esteja no governo, e dos valores que reafirma, entre eles o da propriedade privada individual. Como ressalva o dono de uma incorporadora: “impossível acabar com um pacote como o ‘Minha Casa, Minha Vida’. Tal como o ‘Bolsa-Família’, um presidente que fizer isso será derrubado”.

A mobilização da ideologia da casa própria tem como outro paralelo – guardadas as diferenças – a “homeonwership society” norte-americana, particularmente como foi estimulada no governo Bush. Essa ideologia esteve por trás da mobilização do sistema de crédito de segunda linha (subprime) e do estímulo ao endividamento das famílias, posteriormente apontado como um dos estopins da crise mundial.

4) O pacote favorece a desmercantilização da habitação, enquanto política de bem-estar social?

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Projetos feitos pelos movimentos populares: prevalência do valor de uso

O volume de recursos públicos ou do FGTS destinados a subsidiar a operação dá a entender que se trata de uma imensa operação de distribuição de renda e de “salário indireto”. A taxa de subsídio é alta, variando entre 60% a 90% para a faixa de 0 a 3 salários de rendimento familiar. As famílias devem pagar 10% de seu rendimento ou o mínimo de 50 reais por mês, com juros zero, por um período de 10 anos. Mesmo que o desenho da transferência de renda seja positivo, é preciso compreender quais as intermediações sobre o recurso e seu resultado qualitativo, pois não se trata de uma transferência direta, como no caso do cartão do Bolsa-Família. Enquanto o trabalhador recebe uma casa com apenas 32 m2 de área útil, como discutiremos adiante, provavelmente em um condomínio nas periferias extremas, a empreiteira pode receber por essa casa-mercadoria até 48 mil reais, um valor cujo preço do m2 (1,4 mil reais) chega a ser 2 a 3 vezes superior ao custo do m2 dos mutirões autogeridos dos movimentos populares de São Paulo – que obtém ganhos não apenas graças ao trabalho gratuito dos futuros moradores (o que representa ao fim entre 10 a 20% da redução no custo), mas sobretudo graças à gestão direta e sem lucro dos projetos e obras e à participação de assessorias técnicas, pequenas empreiteiras e cooperativas de trabalho.

Tal como é desenhado pelo pacote, o subsídio, neste caso, tem a família sem-teto como “álibi social” para que o Estado favoreça, na partição da mais-valia, uma fração do capital, o circuito imobiliário (construtoras, incorporadoras e proprietários de terra). Na verdade, o subsídio está sendo dirigido ao setor imobiliário tendo como justificativa a “chancela social” dada pela habitação popular.

Como efeito de comparação, uma política de “desmercantilização da habitação”, como ocorreu no Estado Social europeu, quando na sua melhor forma (porque lá também foi feita uma política de segregação em grandes conjuntos periféricos), deveria ser baseada em alguns princípios que estão muito distantes do pacote habitacional e do contexto brasileiro em questão: o entendimento da moradia como direito e não como propriedade mercantil; a existência de uma forte política de taxação urbana para forçar a ocupação e combater a retenção especulativa da terra e de imóveis; estoques de terras públicas que funcionam como reguladoras do mercado e suporte para um parque de habitações públicas; a prevalência do modelo de habitação de aluguel subsidiado, de modo a desvincular o uso da propriedade privada e permitir mobilidade do trabalhador em função do trabalho e do estudo; a política habitacional pensada nacionalmente como forma de (re)ordenar o crescimento das cidades, promover alguma mistura social e fortalecer o equilíbrio demográfico regional e entre cidades grandes, médias e pequenas.

5) O pacote colabora para a qualificação arquitetônica e a sustentabilidade ambiental dos projetos de habitação popular?

Mesmo não superando a condição da forma-mercadoria, o pacote poderia pretender qualificar minimamente os projetos de habitação popular, inclusive obtendo os dividendos eleitorais favorecidos por casas mais funcionais, bonitas e sustentáveis. Para tanto deveria mobilizar arquitetos, engenheiros e suas agremiações profissionais, universidades e laboratórios de pesquisa, avaliar referências internacionais e nacionais premiadas, favorecer critérios de sustentabilidade ambiental das edificações e dos sistemas de saneamento, etc. Do ponto de vista do processo produtivo, poderia promover apoio a estudos sérios de pré-fabricação com qualidade, já aproveitando o conhecimento acumulado, por exemplo, pelas fábricas públicas de produção de escolas, hospitais e mobiliário urbano, coordenadas pelo arquiteto João Filgueiras Lima (o Lelé) – atual inimigo número um das empreiteiras e combatido por elas, graças ao seu método de produção de equipamentos públicos econômicos e de altíssima qualidade.

Mas não se encontra no pacote qualquer preocupação com a qualidade do produto e seu impacto ambiental, a não ser a que é posta pelo próprio capital da construção e suas pífias certificações de qualidade, que garantem na verdade sua viabilidade como mercadoria, ou seja, a ratificação da prevalência do valor de troca sobre o valor de uso. A despreocupação, sobretudo na faixa de 0 a 3 salários, é também decorrente do fato de que a demanda é tão grande, que não pode sequer fazer escolhas e exigências mínimas, ou seja, exercer a chamada “liberdade” de consumidor.

O amplo repertório nacional e internacional de soluções para a habitação social é sumariamente ignorado na formulação do pacote e nas moradias padrão apresentadas pela Caixa Econômica. As duas tipologias propostas pela Caixa foram divulgadas pela instituição como solução padrão para todo o território nacional, desconsiderando as condições climáticas, culturais e geográficas diferenciadas do Brasil. Elas já estão pré-aprovadas (o que agiliza prazos e diminui o tempo de análise de projetos) e se tornaram referência para incorporadores imobiliários como parâmetro para os estudos de viabilidade e rentabilidade dos empreendimentos – evidentemente que os empresários não pretendem fazer nada melhor ou maior para a faixa de 0 a 3 salários, sob pena de reduzirem seus lucros, e até já estudam a supressão de paredes internas das unidades habitacionais.

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Projeto de movimento de moradia em São Paulo

A casinha térrea apresentada como exemplo pela Caixa no manual de orientação do pacote tem 32 m2 de área útil, paredes em bloco baiano rebocado, janelas de ferro, quartos de 7m2, cozinha mínima, sem área de serviço, com tanque e varais ao relento. Pode-se argumentar que a família vai fazer a casa crescer por autoconstrução e poupança própria, de modo a melhorar sua qualidade, mas esse é um pressuposto perverso da política. Já o apartamento tem 37 m2 de área útil e adota o tradicional modelo de prédio em H, que possui baixa qualidade urbanística. No caso dos apartamentos, a área construída não pode ser ampliada pelo morador. Para famílias com mais de 4 pessoas (nos cadastros de um movimento de sem-teto de São Paulo, elas chegam a 40% da demanda), a área por habitante é claramente insuficiente, cerca de 7 m2 por pessoa, o que produz sobrelotação, problemas de salubridade, falta de espaço para as crianças estudarem e brincarem, além de favorecer a violência doméstica e sexual. As condições materiais e simbólicas de conjuntos habitacionais desse tipo, como se sabe, promovem a segregação dos trabalhadores e a falta de qualidades mínimas de vida urbana e serviços públicos. Quem visita conjuntos habitacionais desse tipo reconhece neles o mesmo arquétipo dos presídios, inclusive similaridades no tipo de fachadas, janelas e muros. Evidentemente que, em um milhão de casas, por exceção à regra podem surgir alguns projetos melhores, que certamente serão estampados nas campanhas de marketing. Além disso, as moradias produzidas para atender às famílias de rendimento superior a 3 salários poderão mais facilmente proporcionar imagens mais animadoras para as peças publicitárias.

[1] Agradecemos às sugestões e comentários realizados a partir de versões preliminares deste texto de Leda Paulani, Plínio de Arruda Sampaio Jr., Ermínia Maricato, Paulo e Otília Arantes, Jorge Grespan e Iná Camargo Costa. Este texto também recebeu a contribuição das discussões do grupo de estudos interdisciplinar do qual participamos, formado por pesquisadores de pós-graduação, que debate, no momento, a política habitacional brasileira.

Leia aqui a 2ª Parte deste artigo.

4 COMENTÁRIOS

  1. Excelentes argumentos – nessa seara rarefeita de debates sobre a questão urbana que apenas apontam deficiências dos programas governamentais, mas não explcitam as motivações e lógicas estruturais que impedem a construção popular do direito à cidade.

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