Por Ronan Gonçalves [1]

 

Derrota dos Ativistas de Base
educacao_eadA forma que assume a condução dos processos formativos não pode ser separada do modelo que assume o Estado, a organização do trabalho e as lutas sociais. Para entendermos o significado atual da corrente reforma do ensino paulista é necessário que tenhamos em conta mudanças que vêm se procedendo dentro da universidade, que fornece os gestores dos sistemas educacionais e a sua mão-de-obra, os professores, assim como ter em conta o impacto que modelos de organização empresarial têm procedido sobre outras instituições somando-se ainda as formas de luta que têm se desenvolvido e a ação de órgãos transnacionais da educação sobre os estados e países.

Lutas sociais no meio educacional, tanto em nível universitário quanto na educação básica, são o necessário ponto de partida para o entendimento da corrente reforma. De nada adiantaria a universidade formar tecnocratas se os trabalhadores não estivessem suficientemente derrotados ou dispersos para que pudessem obedecê-los. E a própria universidade não conseguiria produzir tecnocratas se os movimentos de luta que buscam a construção de uma universidade inclusiva, controlada pela base e comprometida com a questão social, não fossem também derrotados ou isolados. As lutas de estudantes e funcionários nas universidades e as lutas de professores do ensino básico são o necessário ponto de partida para o entendimento da reforma educacional paulista, assim como a falta de organizações de luta transnacionais de trabalhadores em educação explica o ativismo fácil de tecnocracias transnacionais do mesmo setor. Da mesma forma, as exigências postuladas por gestores empresariais têm tido enorme impacto na organização educacional, quando não são eles próprios a fundarem escolas e universidades corporativas ou se apossarem de parte da educação por meio de fundações e grupos de pesquisa por eles controlados.

Enganam-se aqueles acompanhadores de jornais que vêem em cada novo ato do dia uma novidade exclusiva. A reforma do ensino paulista remonta aos anos da década de 1990 e, assim como em outras áreas, trata-se de uma reforma com coesão de sentido transnacional que, no entanto, é aplicada aos poucos. Procurando evitar revoltas e protestos, os governos submetidos, integrados ou ocupados por tecnocracias transnacionais têm conduzido a reformas no sistema penitenciário, de saúde, de educação e outros mais com a eficaz estratégia de não apresentá-las em bloco, mas paulatinamente, o que acaba dando a impressão de que se trata de mudanças pontuais necessárias, emergenciais e locais.

Unindo uma dupla estratégia de repressão com recuperação, os setores locais da tecnocracia transnacional conseguiram no decorrer dos últimos 15/20 anos amortecer, silenciar ou eliminar os importantes movimentos de base que se gestaram no meio educacional tanto universitário quanto básico. Na universidade, a criação de uma rede de inclusão social para atender às exigências materiais dos lutadores serviu para contentar a maioria e deixar isolada a minoria persistente, ao ponto de se poder trabalhar somente com a tropa de choque como forma de resposta. O mesmo se deu no meio do professorado da educação básica, para os quais se criou bonificações e garantias de emprego mínimo como forma de se evitar que o descontentamento da massa não fosse contaminado pelo radicalismo de uma minoria de professores mais combativos, cuja luta passava não só pelo atendimento de exigências materiais mas, também, por uma reforma no modelo educacional que desse à base a primazia, democratizando um sistema localmente clientelista e excludente de ensino e possibilitando a transformação da escola em local de realização de demandas sociais. Sucintamente, a parcela que lutava por uma escola democrática e não excludente ficou isolada quando concessões materiais fizeram com que o restante do professorado aceitasse a autoridade das tecnocracias locais sobre a educação.

sindicato1O ano de 2000, e a forte atuação da base que se verificou na greve deste período, precisa ser posto definitivamente como marco para o que sucede hoje. A cooptação da estrutura sindical para fins empresariais e parlamentares tinha levado os professores a perderem o controle sobre suas próprias lutas, como correntemente. Interessados em ascensão social, os gestores sindicais, ao passo que reivindicavam algumas demandas de melhoria material da categoria, contribuíam explicitamente para a manutenção de um professorado obediente, docilizado e apático, no entanto útil no sustento financeiro e na promoção eleitoral desses dirigentes. Daí evitarem de todo modo que as lutas se direcionassem para alterações na forma de organização interna, afastando as manifestações do interior dos prédios escolares, evitando a participação de alunos nas lutas e a aliança com os pais, membros da comunidade e outros órgãos de mobilização e organizações de base. No sentido contrário, desde muito antes de 2000, um setor minoritário do professorado vinha a desenvolver um verdadeiro trabalho de formiga chamando reuniões/discussões de base entre os professores, evitando a particularização por escola e abrindo-se à participação dos alunos e demais membros por meio de atividades político-culturais que se desenvolviam nas escolas durante ou nos finais de semana. Grupos culturais de alunos – bandas etc – uniam-se com estes professores na realização de eventos que permitiam uma discussão ampla. A derrota desta alternativa de base, inclusive com a exoneração de 4 professores, pavimentou a necessária apatia para a atuação tecnocrática.

Fracasso Educacional
Não é o caso para encher o texto de informações sobre o explícito fracasso educacional das escolas estatais. Mesmo no Estado mais rico da federação a situação é alarmante e quase não há dia em que não surjam novos dados na imprensa que comprovem o sabido por todos: a educação paulista patina numa situação em que pode ser considerada o mais degradado dos serviços públicos.

precariedadeA virada dos anos 90 documentou a entrada de uma significativa parcela da população nos prédios escolares, mas a expansão das vagas não foi acompanhada pela garantia da qualidade. Como o título do filme francês, a juventude paulista ficou entre os muros da escola, mas muito longe de qualquer formação, uma vez que se depararam com prédios sujos, sem papel higiênico e sabonetes, sem alimentação ou alimentação de qualidade, sem livros, bibliotecas, aparelhos eletrônicos, prédios adequados, turmas com quantidades adequadas e, por fim, sem professores adequadamente formados. A expansão do acesso ao diploma nos anos 1990 significou a oferta de cursos com muito baixa qualidade ou explicitamente estelionatários.

Se a qualidade da escola estatal era quase zero, ela serviu para incluir entre muros mais de 5 milhões de jovens de todas as idades, contribuindo para a melhora nos índices de segurança pública, que ainda são horrorosos, dos dias atuais. Ao lado de uma escola que não qualificava somava-se a existência de um vasto setor econômico informal que ainda absorve uma quantidade enorme de trabalhadores pouco qualificados, servindo de meio de existência para uma geração de jovens trabalhadores que mal sabe ler/escrever, contar, lidar com tecnologias. Em sentido complementar, o fato de esses jovens vislumbrarem no horizonte somente trabalhos majoritariamente braçais e rudes desestimulava os mais dedicados, fazendo virar pó os velhos sonhos cantados pela televisão de serem doutores os filhos de pais pedreiros, marceneiros, faxineiras.

O mundo não permanece estático e mudanças na geopolítica fizeram com que essa útil mão-de-obra barata e incapaz de trabalhos mais qualificados se deparasse com a concorrência direta dos produtos e mercado de trabalho chineses, como é bem sabido pelos setores têxtil e calçadista nacionais, que viram desaparecer inúmeras empresas aparentemente consolidadas. O Brasil deparou-se com o dilema China, que é o de ter uma vasta mão-de-obra desqualificada que não é tão barata quanto a chinesa e, por outro lado, não ter um amplo exército de trabalhadores qualificados que sirvam de base ao desenvolvimento de uma economia altamente produtiva. Os desqualificados são caros e os qualificados são poucos. O dilema está na necessidade posta aos empresários de ou se conseguir ampliar a exploração do trabalhador brasileiro a uma brutalidade que permita que ele seja competitivo com o escravo chinês ou se qualificar massivamente a mão-de-obra para que se dê sequência a uma economia alavancada pelos setores mais ou medianamente qualificados. Por ora, os governos nacionais têm auxiliado os setores mais diretamente atingidos do meio empresarial com vultosos investimentos e salvamento de setores inteiros que se encontram à bancarrota. Tem-se pagado com dinheiro público a incapacidade de dados setores de serem competitivos diante da China.

Foi nesse quadro que vimos pipocar uma forte pressão do empresariado quanto à necessidade de se melhorar a produtividade dos processos formativos, surgindo posteriormente um grande movimento de origem empresarial intitulado Todos Pela Educação. Essa pressão somou-se com o investimento empresarial em formação, tendo fundado suas escolas e universidades, de que é exemplo o Bradesco e a Vale do Rio Doce. Obviamente trata-se de um tipo de pressão similar ao que se faz quando eles reivindicam mais segurança nos portos, melhor qualidade das estradas, mais agilidade do judiciário, melhor qualidade da malha ferroviária, contando-se a formação educacional como um dos elementos das condições necessárias ao funcionamento das empresas. Pesquisas e dados apontados por tecnocracias transnacionais em educação apontavam insistentemente a má formação do trabalhador brasileiro comparativamente ao de outros países em desenvolvimento – perdemos para Chile, Argentina etc – e o empresariado começou a se mobilizar contra o que eles chamam de custo Brasil.

O professor é o culpado: Taylorização do trabalho docente:

Enquanto tecnocracias outras – Ministério da Educação – iniciaram o combate à má qualidade do ensino superior com vista a melhorar a formação do professorado, a tecnocracia do governo paulista elegeu diretamente o professorado como principal responsável pela improdutividade do ensino estatal. Alterações na forma de gestão – choque de meritocracia – e responsabilização dos docentes foram o norte apontado de ações a serem feitas. Parte-se da constatação de que o professorado é muito mal qualificado e que, mesmo quando possui boa formação, ela é demasiadamente teórica, não servindo adequadamente à tarefa de ensinar.

A estratégia adotada caminha por várias vias: segmentação, padronização, controle, vigilância, pressão. No decorrer dos anos o governo conseguiu ir dividindo a categoria em subcategorias. Hoje existe o professor aposentado, o professor readaptado, o professor efetivo, o professor estável, o professor temporário (que trabalha por contrato a tempo determinado) e o professor eventual, que é uma espécie de taxista da educação: fica fazendo ponto na escola o dia todo e atende quando é chamado. Uma mesma categoria foi dividida em 6 segmentos diante das quais a tecnocracia educacional local desenvolve estratégias diferentes para aplicar a mesma política.

Ao passo que segmentou a categoria, o governo padronizou o trabalho docente a partir da adoção de um currículo oficial obrigatório. São entregues apostilas para os professores e para os alunos, determinando aula a aula o que deve ser feito em sala. Importante observar que embora existam há muito os Parâmetros Curriculares Nacionais, que prescrevem o que deve ser ensinado em cada matéria no país inteiro, até por conta do caráter federativo do estado brasileiro, as orientações nacionais não eram seguidas e cada professor desfrutava de uma autonomia enorme quanto à escolha dos conteúdos, métodos de ensino e avaliações. Não tinha o controle do seu tempo, mas controlava sua atividade de trabalho. Decerto, acabavam seguindo os livros de conteúdo existentes nas escolas, mas determinavam o seu ritmo e forma de ação. As apostilas retiraram essa autonomia, padronizando o ritmo e as formas de trabalho, tal como já ocorria nos colégios privados. A introdução de avaliações padronizadas, como o Saresp, para os alunos e avaliações específicas para professores servem não só para matematizar quanto os alunos aprenderam mas também a produtividade dos professores, medindo o quanto estão seguindo as ordens prescritas e fazendo aprender o alunado.

Como havia predominado as formas de luta passivas e individuais diante da derrota da alternativa coletiva e de base, a tecnocracia educacional implementou sistemas de bonificação individuais e coletivos, através do que se buscou combater o forte absenteísmo da categoria. Numa tacada só as faltas diminuíram pela metade, pois se passou a dificultar o aceite de licenças médicas e quase todo tipo de ausência conta negativamente para as premiações.

Indispondo-se com o professorado, que passou a ter toda a sua atividade determinada pela tecnologia educacional que a tecnocracia criou para controlar e matematizar suas ações, as altas tecnocracias apoiaram-se nas chefias locais para lhes servirem como base. Embora sejam concursados, os diretores de escola gozam de uma liberdade mais ampla, partilham da gestão e possuem incentivos monetários para aplicarem o que determina a alta tecnocracia, além de possibilidades de ascensão na estrutura interna, por cooptação. Os vice-diretores e os coordenadores pedagógicos são escolhidos pessoalmente pelos diretores, onde se prima por critérios filiais e de empatia pessoal. Os altos tecnocratas têm se utilizado dessas chefias locais, que podem perder o cargo ou incentivos, como base de aplicação de suas políticas, transformando-os em aplicadores autômatos e fiscais das linhas decididas. São eles que fazem o corpo-a-corpo com um esfacelado professorado, cobrando aumento do trabalho, vigiando e requerendo relatórios.

Cursos on-line e orientações foram criadas para instruir o professorado sobre o conteúdo e as formas de ensinar, além do que já vem prescrito nas apostilas. Assim como corporações possuem seus centros formativos, a tecnocracia educacional paulista criou um centro de formação do professorado para ministrar cursos on-line a toda a rede e alterou a legislação quanto à forma de ingresso dos professores, fazendo com que seja obrigatória a aprovação nesse centro de formação. Todo novo professor concursado, além do diploma, terá que se submeter a um curso de 4 meses no centro de formação e só ingressará em sala de aula após aprovação no mesmo. Instituiu-se a exigência legal de um período de 3 anos de estágio probatório, durante o qual o novo professor será avaliado e dependerá de confirmação ou não das chefias locais para continuar no cargo. Tal alteração dá um poder enorme aos diretores escolares na medida em que permite a eles demitir quem já é concursado, coisa que ocorre na polícia militar e na contratação de carcereiros e guardas de muralha.

Essa mesma padronização ocorre quanto ao ensino do primeiro ao quinto ano que, embora esteja a cargo não da tecnocracia estadual mas das secretarias dos 645 municípios do estado, terão que trabalhar com tecnologias, metodologias, currículos e modelos de avaliação criados e fiscalizados pela tecnocracia estadual. Criou-se um modelo de franquia em que há 645 redes municipais de ensino dentro do estado mas seguindo, em sua maioria, o sistema de ensino do estado. Todos trabalharão conforme determina a tecnocracia estadual, pois centralizou-se a gestão, embora permaneça descentralizada a contratação e a fiscalização, estas feitas por cada um dos 645 municípios.

Toyotismo Educacional

logo-gestoresTambém se desenvolveu uma espécie de toyotismo suplementar à taylorização, uma vez que há índices coletivos por unidade escolar. Como as bonificações também dependem de uma nota coletiva dada a toda a escola, cria-se uma pressão de todos com todos, posto que um mau professor pode prejudicar o índice coletivo que rende bonificações a todos.

Essa exploração do professorado como coletivo escolar serve para que a alta tecnocracia se desvencilhe de questões que não deseja enfrentar, remetendo para o coletivo local a solução de problemas estruturais como violência interna, indisciplina, falta de verba, adaptação de atividades, prédios. O professorado tem que aplicar individualmente o que é estabelecido e resolver enquanto coletivo os vários dilemas práticos que vão surgindo para o qual não há indicativos.

Com o discurso da motivação e do desempenho o governo chegou ao ponto de financiar computadores pessoais para o professorado, ou seja, faz com que o professor pague em prestações um instrumento de trabalho que as tecnocracias desejam que ele utilize em seu labor. Incentiva o estudo suplementar, tanto obrigatoriamente das apostilas quanto pela freqüência em cursos on-line que são ofertados. O professor é coagido a maximizar seu trabalho em sala de aula, ficando um número enorme de atividades para serem feitas nos períodos que seriam de descanso. Com um salário que paga 1.600 reais líquidos por 40 horas semanais, o professor trabalha 33 em sala de aula, fica mais 3 em reuniões, 10 ou mais cumprindo janelas nas escolas, outras 10 ou até 25 se deslocando de uma escola para outra, outras 10 preparando aula, outras 10 ou mais corrigindo provas, preenchendo relatórios, fazendo cursos. Enfim, pode chegar a trabalhar 80 horas semanais sem que um único centavo lhe seja acrescentado ao salário. Além das clássicas cobranças para contribuir monetariamente com dinheiro para o café, materiais escolares, festas da escola etc.

As tecnologias eletrônicas e os meios de comunicação têm sido utilizados para incentivar os pais e alunos a correta cobrança por uma educação de melhor qualidade, no entanto sem que se dê o suporte necessário para o trabalho docente. É nessa linha de maior fiscalização que o governo paulista criou uma corregedoria para vigiar a educação, tal como é feito com a administração penitenciária e das polícias estaduais. Complementarmente, há consultas aos professores tentando identificar o que eles possam levantar acerca de incorreções no sistema e indicações para uma maior produtividade. Explora-se o conhecimento coletivo prático para aperfeiçoamentos do sistema.

Sentido para o alunado

quais-as-causas-do-fracasso-esEmbora as considerações sobre a necessidade de se construir uma escola democrática que existe na LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – e não deixa de ser citada em qualquer documento sobre o sentido geral da educação, a presente reforma não têm significado um maior envolvimento do aluno e uma maior abertura à sua participação. Assembléias escolares, grêmios estudantis e Conselho de Escola sequer são realizados, e quando o são ficam esvaziados de sentido, tranformados em meros executores de demandas dadas pelas chefias locais. Isso fica evidente na desconsideração dos espaços dos pátios e corredores – soberania dos alunos – pelo currículo implantado.

Ao contrário, ao estipular os conteúdos aula a aula a serem trabalhados obrigatoriamente, se determina previamente todas as ações tanto do docente quanto do aluno, sem espaço para mudanças. As aberturas possíveis – seminários, trabalhos em grupo – surgem somente como mecanismos de motivação para uma melhor imersão do alunado no currículo obrigatório. É assim que não há um espaço sequer para discussão e um pensar sobre a escola. O professor de história, geografia, sociologia e filosofia fica na situação curiosa de ter que levar o discente a pensar sobre a construção da memória, do espaço, da sociedade e das idéias sem que se aborde a própria escola como local de memória, espaço construído, organização social e materialização de idéias e valores.

garoto1A falta de uma politização mais ampla na sociedade faz com que prevaleça entre os alunos a clássica sabotagem ao processo educacional, tanto mais quanto se tem no país uma escola sem sentido, que não consegue ofertar uma qualificação profissional nem levar o alunado ao ensino superior, nem muito menos, num sentido popular, constituir espaço de politização e organização para lutas por demandas sociais. Acaba a escola materializando durante anos valores de individualização, concorrência, inculcação da ordem dada e muitas vezes surge como local de inferiorização, transformando o aluno socialmente excluído em ser moralmente inferior, loser, fracassado social, na medida em que o sadismo pedagógico pretende apresentá-lo como responsável último pelo sucesso num mundo em que já adentra perdendo.

É nesse contexto que a sabotagem educacional atinge patamar tal que pesquisas indicam a perda média em cada aula de 20 dos 50 minutos de aula com indisciplina. Em dadas escolas a perda é maior e se atinge 80 ou mesmo 90%, saindo alunos analfabetos depois de 11 anos de escolarização.

Algumas palavras mais

Certo é que as mudanças realizadas têm sido acompanhadas de um muito tímido aumento de dinheiro investido na educação. Mas a pobreza das escolas públicas permanece, como fica explícito no fato de os alunos terem que repartir um livro durante 3 longos anos passando de uma turma à outra, ou a falta de sabonetes e papel higiênico nas escolas. Permanece uma precariedade que em muitos pontos é brutal, ficando 40 ou 50 alunos amontoados em cubículos, comendo alimentos de má qualidade e muitos tendo que se deslocar até 10 km para estudar.

Também não ocorre a aplicação homogênea dos fatos descritos. A rede estadual de ensino é muito vasta e em seu interior são não menos vastas as forças que acabam se apoderando dela, buscando transformá-la de acordo com suas linhas. Encontramos desde escolas que foram hegemonizadas pela criminalidade popular até estruturas administrativas inteiras que estão sobre controle ou influência do Rotary Club, da Maçonaria, de igrejas. Há um loteamento interno da educação, de forma que há casos em que ocorre tráfico dentro das unidades e outras onde há canto coletivo do hino nacional, rezas, cultos, missas, assim como, aplicação de regras as mais disparatadas, como a que proíbe mascar chicletes, namorar, usar bonés e outras mais.

Aí se encontra um certo valor das mudanças efetuadas. Na ausência de uma alternativa de base e comprometida com a luta social, o apossamento da educação paulista por uma tecnocracia uspiana tem ao menos servido para se diminuir o avanço de clientelas locais e forças clericais, além de ter havido alguma melhora no serviço ofertado ao aluno. No presente momento, há uma forte atuação do Vaticano para se introduzir o ensino católico no funcionamento normal das escolas e somente entre tecnocracias educacionais laicas é que se viu reação contrária. Também tem sido útil ao forçar uma parcela significativa do professorado, aliado a interesses de pequenos proprietários ou cargos médios do funcionalismo público, que vinham há muito tratando com total desprezo o futuro educacional do alunado. Mas é uma derrota que os aspectos positivos não tenham se processado a partir da auto-organização dos alunos ou professores.

A situação atual não teria jamais se configurado se a grossa maioria dos professores não tivesse deixado suas lutas na mão das direções sindicais e, principalmente, resumido estas a questões monetárias. A luta por um currículo de base e modelos outros de organização escolar ficou resumida a atuação de uma parcela muito pequena do professorado que foi sendo abandonada pela categoria no decorrer dos anos. Deixando ser eliminada essa parcela mais radical dos professores e alunos, a categoria ficou sem o principal batalhão de enfrentamento diante da tecnocracia estadual e foi sendo dominada aos poucos. Nesse trajeto, o governo pôde se utilizar do esfacelameno interno e desunião que existe dentro da categoria.

A configuração agora é outra, e a categoria tem pela frente um governo que está disposto a aumentar salários, mas somente para uma pequena parcela do professorado que se destacar em exames que pretendem selecionar a cada vez somente os 20% mais qualificados que forem aprovados, as exigências serão cada vez maiores. Diante das exigências meritocráticas para aumentos salariais será necessário se colocar em discussão a quantidade enorme de trabalho não pago e se buscar formas de organização por área de saber para se discutir modelos de currículo alternativo. Nesse processo, o professorado carece de um grupo que qualifique o debate e chame as discussões, uma vez que a desinformação é geral.

Tudo isso será muito mais difícil enquanto permaneça a falta de uma solidariedade mínima. O fato de a educação permitir vastas oportunidades de se ascender às chefias dilacera a união interna, para além da existente segmentação, e o fato de o professorado ser majoritariamente feminino permite que, unindo o salário da mulher ao do marido, surjam núcleos familiares de consumo médio. Nesta situação, boa parte do professorado recusa a se ver como trabalhador, confluindo ideológica e estéticamente com pequenos comerciantes, lojistas e outros mais.

aulascuolaDuas coisas a se observar. Numa situação em que o professor já não é mais totalmente a fonte do saber, mas somente um mediador, quase fiscal, da relação do alunado com a tecnologia educacional padrão, essa perda de virtude e autoridade pode levar ao reforço do papel do professor somente como ente moralizador, carcereiro e disciplinador. Conseguir manter os alunos em sala de aula é um dos critérios – pasmem – pelo qual se define o que seja um bom docente. Em segundo lugar, a padronização que dá origem a um sistema de ensino estadual permite que o governo possa contratar escolas particulares que aceitem aplicar o sistema desenvolvido. Tal como ocorreu na municipalização, pode se avançar na fragmentação da mão-de-obra uma vez que a gestão está centralizada. A essa luz deve-se ler a resistência do governo em abrir concursos, mesmo com as críticas constantes dos órgãos de imprensa e ONGs, como a Ação Educativa, muito mais impactantes que o próprio sindicato. A ser assim, a presente reforma será mais um elemento da precarização do trabalho.

[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.

2 COMENTÁRIOS

  1. Olá,

    Excelente descrição e análise crítica dos fatores que, hoje, pautam a dinâmica e ação dos professores e estudantes nas escolas públicas.

    A leitura sobre o papel da tecnocracia das Universidades Públicas – nesse caso, a USP – também é fundamental para entendermos qual a inserção dos universitários recém-formados – que, na maior parte das vezes, exercem postos de chefia (que concepção horrível de educação…) de forma irrefletida.

    Enviei esse texto para as listas da Geografia – e recebi como respostas, além de elogios para a qualidade do escrito, informações sobre a forte luta dos Professores de Escolas Públicas do Rio de Janeiro (com atos, manifestos e manifestações, agressão policial e tudo mais).

    Certamente, solicitarei a eles que exponham seu relato aqui no Passa Palavra – para que seja posível compartilhar essas lutas.

  2. Olá, Xavier. Complementando a sua observação é impressionante como que o estudantado da universidade e o professorado não conseguiram ainda se dar conta do caráter tecnocrático das chefias educacionais.

    As reformas tocadas são feitas por pessoas saídas da universidade e que estão ai até hoje ou estavam até ontem. Uma pequena pesquisa no google com os nomes dos responsáveis pela reforma educacional demonstra suas ligações com o BID, empresas e outras instituições, mostra de qual grupo de pesquisa fazem parte, onde lecionam etc e etc. E, no entanto, as manifestações de professores e alunos são feitas como se o inimigo fosse invisível, como se a reforma não tivesse um grupo responsável. Por que alunos da usp e da unicamp irão até o palácio dos governadores protestar se os responsáveis por tudo que os atinge estão lá mesmo, ao lado, dentro da mesma USP e UNICAMP?

    Da próxima vez, se o professorado tiver maior lucidez, será dentro da USP que fará seu acampamento.

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