Exército Zapatista de Libertação Nacional – México

Outubro de 2009

Ao povo do Chile:

À Juventude Chilena:

Irmão e Irmãs do Chile.

Falo-lhes em nome das mulheres, homens, crianças e velhos do Exército Zapatista de Libertação Nacional, indígenas mayas em sua imensa maioria, que resistimos nas montanhas do sudeste mexicano contra o neoliberalismo e pela humanidade. Recebam todos e todas, jovens chilenos, nossas saudações zapatistas.

Agradeçemos aos irmãos e irmãs que hoje nos deram a oportunidade de que nossa palavra chegue até o Chile rebelde. Pedimos para esta nossa palavra, um lugar na raiva de vocês, em sua dor e, sobretudo, em sua esperança.

Não vou a falar-lhes dos zapatistas mexicanos, de nossa luta, de nossos anseios, de nossos sonhos, de nossos pesadelos, de nossa resistência. Depois de tudo, comparados com os homens e mulheres, particularmente os paridos por estas terras, que tem iluminado os céus da América Latina, os zapatistas seguimos sendo ainda uma luzinha débil e distante.

Não, nossa palavra é agora para unir nossa saudação e nossa homenagem a um latino-americano, a um chileno do Movimento de Esquerda Revolucionária, MIR, caído em combate contra a ditadura pinocheísta de 5 de outubro de 1974.

Hoje nossa palavra é para saudar a Miguel Enríquez Espinosa.

E o saudamos hoje, hoje que sob os céus da América Latina, essa que dói do Bravo à Patagônia, os poderosos nos põem nas mãos um punhado de pó e nos dizem:
“Isto é o que resta de tua pátria”.

E hoje, esses mesmos, os de cima, nos mostram as imagens da geografia que tem imposto em parte de nossos solos:

Onde havia uma bandeira, hoje há um centro comercial.

Onde havia uma história, hoje há um posto de comida rápida.

Onde florescia o copihue [planta natural do Chile], hoje há um deserto.

Onde havia memória, hoje há esquecimento.

No lugar de justiça, esmola.

No lugar de memória, imediatez.

No lugar de liberdade, uma tumba.

No lugar de democracia, um spot publicitário.

No lugar de realidades, cifras.

Eles, os de cima, nos dizem: “Este é o futuro que te prometemos desfrutá-lo”.

Isso nos dizem e mentem.

Esse futuro se parece demasiado ao passado. E, se olharmos com atenção, talvez vejamos que eles, os de cima, são os mesmos de ontem. Os que, igual ontem, hoje nos pedem paciência, maturidade, sensatez, resignação, rendição. Isto já o temos visto, o temos ouvido antes.

Os zapatistas recordamos. Tiramos a memória de nossas mochilas guerrilheiras, de nossos bolsos dos uniformes de campanha.

Recordamos.

Porque houve um tempo em que toda a América Latina estava aqui muito perto. Bastava estirar a mão e se tocavam os corações dos povos latino-americanos. Bastava virar um pouco o olhar e ali estavam o relâmpago esparramado do Amazonas, a cicatriz indelével dos Andes, o soberbo estar do Aconcágua, a interminável Terra do Fogo, o sempre inquieto Popocatépetl. E com eles estavam os povos que lhes deram nome e vida.

Porque houve um tempo em que Chile e todos os países da América Latina ficavam mais próximos do México que o império que, desde o norte geográfico e social, impõe distâncias a quem compartilhamos a vizinhança da história.

Houve um tempo.

Talvez ainda é esse tempo.

Hoje, como ontem, o dinheiro irmana soberbas. Hoje, como ontem, da mão das poderosas transnacionais, o poder militar estrangeiro pretende cavar nossos solos, às vezes mascarado em uniformes de exércitos locais, ou com assessores, embaixadas, consulados, agentes encobertos. Hoje, como ontem, esses dinheiros tentam comprar certificados legais de impunidade para os gorilas que lhes servem e que, sempre o soubemos, quando diziam “Pátria” não falavam do Chile, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia, do Brasil. Não, a bandeira que saudavam era a das listras e das estrelas turvas.

Hoje, como ontem, o norte revolto e brutal cerca e pretende asfixiar essa solitária estrela de dignidade que brilha no Caribe.

Hoje, como ontem, os governos de alguns de nossos países lhes servem de triste comparsa no desleal empenho de dobrar ao povo de Cuba.

Hoje, como ontem, o império que se advoga o papel de polícia mundial e atropela leis, razões, povos, é o mesmo.

Hoje, como ontem, quem pretende desestabilizar a governos legais e legítimos, mas que não lhe são subordinados (ontem Chile, hoje Venezuela, sempre Cuba), é o mesmo.
Hoje, como ontem, aquele sistema que se erige sobre a mentira, o engano, a fraude, a ditadura do dinheiro, pretende dar-nos lições de democracia, de liberdade, de justiça.

Hoje, como ontem, quem democratiza a dor, a miséria, a morte para os povos de nossa América, é o mesmo.

Hoje, como ontem, quem persegue, quem tortura, quem encarcera, quem mata, é o mesmo.

Hoje, como ontem, se nos faz a guerra, às vezes com balas, às vezes com programas econômicos, sempre com mentiras.

Hoje, como ontem, o terror real, o que de vem de cima, chama a deus para justificar-se.

Hoje, como ontem, se pretende ocultar que sim, que é um deus quem os alenta, mas é o deus do dinheiro.

Hoje, como ontem, em alguns países os pusilânimes são governos.

Hoje, como ontem, as claudicações se disfarçam com argumentos complexos, pesquisas, roupas de marcas exclusivas, espelhos virados ao contrário.

Talvez ainda seja esse tempo.

Talvez não.

Porque hoje, a nova e complicada roupagem com que se veste a brutalidade do lucro para a minoria, a custo da perda para a maioria, leva adiante uma verdadeira guerra mundial contra a humanidade.

Nações inteiras são devastadas.

Conquistam-se territórios.

Reordena-se a geografia mundial.

Derrubam-se as fronteiras para os dinheiros e as levantam para os povos.

As culturas históricas de nossos povos tratam de ser suplantadas por frivolidades instantâneas. Em alguns países, em lugar de governos nacionais há gerências regionais.

Maltratam-se os recursos naturais, a terra, a história; e sobre as cordilheiras que costuram e unem a América desde o sul do Bravo até a Terra do Fogo, querem plantar um letreiro que anuncia, que adverte, que ameaça: “Vende-se”.

Os pobres, os despossuídos, isto é, os que formam a imensa maioria da humanidade, são confiscados e classificados. Confiscados de sua dignidade, classificados nas periferias das grandes cidades, nas margens dos programas governamentais, nos rincões do futuro que agora se decide, em alguns países, não nos parlamentos ou nas casas nacionais do governo, mas nas juntas de acionistas das multinacionais.

Hoje a exploração é mais brutal do que nunca antes na história da humanidade, hoje o cinismo é o credo filosófico dos que pretendem governar o planeta, ou seja, dos que têm tudo, menos vergonha.

Hoje a guerra contra a humanidade, isto é, contra a razão, é mais mundial do que nunca antes.

Hoje a guerra é em todas as frentes e em todos os países.

Se ontem era um dever opor-se, lutar, resistir frente a estúpida lógica do lucro, hoje é, simplesmente, um assunto de sobrevivência individual, local, regional, nacional, continental, mundial.

Irmãos e irmãs do Chile:

Houve um tempo em que toda a América Latina ficava aqui pertinho.

Talvez ainda seja esse tempo.

Talvez a memória coletiva que, como latino-americanos nos dá identidade, tome nomes e datas no calendário para dizer, para dizermos, que há uma pátria maior que a que nos dá bandeira.

Com quantos nomes se veste o calendário da dor de nossas terras?

Se em nossa América, Ernesto Che Guevara é um dos nomes com o que Outubro se levanta, o calendário dos de baixo que somos se ilumina quando se chama Turcios Lima e Yon Sosa em Guatemala, Roque Dalton em El Salvador, Carlos Fonseca em Nicarágua, Camilo Torres em Colômbia, Carlos Lamarca e Carlos Marighela em Brasil, Init e Coco Peredo em Bolívia, Raúl Sendic em Uruguai, Roberto Santucho em Argentina, César Yáñez em México.

E só nomeio a alguns dos muitos que decidiram em nossa América Latina, em seu tempo e a seu modo, por um gatilho à esperança e que, as doses de ternura que nos exige América Latina para amá-la, agregaram certa dose de chumbo… e de sangue… seu sangue.

O problema com todos esses que doem no calendário, é que não se vão assim sem mais.

Não, ao contrário, se vão deixando-nos como uma dívida, como algo que devemos saldar para poder nomeá-los sem vergonha, sem pena.

Há quem assinala que aqueles homens e mulheres que tomaram e tomam como caminho a rebeldia armada tiveram, ou têm, uma fascinação pela morte, vocação para o martírio, ânsias messiânicas; que apenas desejam um lugar nas canções de protesto, nas poesias, nos corridos populares, nas camisetas juvenis, nos postos de souvenir do turismo revolucionário.

Há quem pensa e diz que as causas se derrotam quando morrem os que a lutam, isto é, os que a vivem.

Há quem diz que o doloroso outubro latino-americano rompeu em pedaços a esperança no Chile, no Uruguai, na Argentina, na Bolívia, no México, em toda América Latina.

Pode ser que seja assim

Mas pode ser que não,

Pode ser que os que, como Miguel, se armaram para dizer “Não”, em realidade estavam dizendo “Sim” a um amanhã então distante.

Pode ser que os que, como Miguel, puseram fogo a sua palavra, não o fizeram para incendiar com a morte, mas sim para iluminar a vida.

Pode ser que os que, como Miguel, pensaram e dispararam, não o fizeram para ter um lugar no museu da nostalgia revolucionária, mas para que os povos, todos, tivessem um lugar no mundo.

Pode ser que o calendário no que transcorre o amanhã não tenha nomes ou, melhor ainda, tenha todos os nomes.

Porque pode ser que para isso foi que as ausências que doemos em cada mês latino-americano, puseram uma cruz no calendário, como a que dói este 5 de outubro.

Pode ser, porque essas ausências, no lugar de oco, deixam as ganas de lutar a esperança, que é assim como nós os zapatistas dizemos “mudar o mundo”.

Pode ser.

Pode ser que a esperança se alimente, como nossa América, da memória.

E pode ser que a memória não seja outra coisa que a cola para voltar a unir a esperança que se foi rompida no calendário que nos impõem.

Pode ser que essa memória, a que hoje nos convoca e volta a pôr a América Latina aqui pertinho, não seja uma herança que essas dores nos legaram, sim um dever que nos marcam.

Pode ser.

Talvez para sabê-lo é que estamos aqui, inclusive os que não estamos.

Porque pode ser que o hoje não seja igual ao ontem.

Um revolucionário chileno, desses que fazem tremer quando empunhava um violão, Victor Jara, talvez pensando nos tempos que hoje carregamos, diz, nos diz, nos disse que “É difícil encontrar na sombra claridade, quando o sol que nos ilumina descolore a verdade”. E diz, nos diz, nos disse. “Oxalá encontre caminho para seguir caminhando”.

E foi em terras chilenas, faz muito tempo, que Manuel Rodríguez diz, nos diz, nos disse, como mostrando o caminho, “Ainda temos Pátria cidadãos”.

E outro, também chileno, aqui pertinho e sob a metralhadora que lhe buscava o coração, teve a integridade e sabedoria para dizer, para dizer-nos, “mais cedo que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor”.

Pode ser que o hoje não seja igual ao ontem.

Pode ser que tenham aprendido as lições e, pronto, onde antes se borravam papéis na história latino-americana, se corrigirá a letra e terminará por ler, com claridade dos que olham desde baixo, que “democracia”, “liberdade” e “justiça” são palavras graves e que se acentuam no coração, ou seja, no lado esquerdo do peito coletivo que somos.

Quisera dizer que venceremos, que não nos moverão, que o futuro será nosso, que rompemos mil cadeias, que a liberdade é um horizonte próximo; mas nós os zapatistas acreditamos que não será assim porque nos presenteia um destino oculto ou manifesto, mas sim porque trabalhemos e lutemos por ele.

Irmãos e irmãs:

Isto quer dizer-lhes nossa palavra:

Bem há a veia aberta da América Latina que se chama Chile e que tem no sangue não a ITT, não a Anaconda Copper, não a United Fruit, não a Ford, não o Banco Mundial, não o Pinochet, nem os nomes com os que agora se vestem umas e outros, mas os seus operários, seus camponeses, seus estudantes, seus mapuches, suas mulheres, seus jovens, seu Víctor Jara, sua Violeta Parra, seu Salvador Allende, seu Pablo Neruda, seu Manuel Rodríguez, seu Miguel Enríquez, sua memória.

Irmãos e irmãs do Chile:

Recebam todos e todas as saudações dos que os admiramos e queremos, nós, os zapatistas mexicanos.

Saúde Chile!

Desde as montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, Outubro de 2009.

P.S.: Desculpem se minhas palavras não foram um discurso, como o foi a vida e a morte de quem, trinta anos depois, hoje nos chama. Na realidade nós somente queríamos aproveitar este ato para lhes pedir a todos vocês, humildemente, respeitosamente, que, em nosso nome, ponham um vermelho copihue na terra que o guarda, e que lhe digam que aqui, nas montanhas do sudeste mexicano, Outubro também se chama Miguel.

Tradução: Passa Palavra

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