Por Lívia Lima Paiva, pelo coletivo de educadores do Piá

O Piá é um espaço de educação não formal, que se configura como um projeto permanente de extensão da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e é também ligado ao Cactus – Instituto de Educação e Cultura. O Piá é autogerido por um coletivo de educadores empenhados em realizar intervenção em educação infantil e extra-escolar, a partir de um processo de formação que tem como objetivo subsidiar o trabalho com as crianças, no sentido de vincular a pesquisa intelectual à prática educativa.

A autogestão como forma de organização do trabalho docente é uma experiência singular que vem sendo realizada no Piá há mais de dez anos por diferentes pessoas que já fizeram parte desse coletivo. Atualmente, o coletivo de educadores do Piá é composto por dez pessoas que carregam diferentes formações e experiências de vida. A autogestão do trabalho tem como objetivo a apropriação coletiva de todos os processos envolvidos nesta prática, tendo em vista a não especialização de funções.

dubuffet-aO Piá atende diariamente 25 crianças, de 02 a 15 anos, no período das 12:00 às 17:00 horas, em uma sala no Clube Escola “Raul Tabajara”, localizado na Barra Funda de baixo [São Paulo], região caracterizada por condições precárias de moradia como cortiços, abrigos e a Favela do Moinho. Nessa localidade, também há uma forte presença de imigrantes bolivianos.

A rotina das atividades do Piá é bem definida, ao meio-dia as crianças vão chegando para almoçar, almoço este que foi preparado pelo grupo de educadores que passará a tarde com as crianças – existe um rodízio de educadores, sendo que a cada dia é um grupo diferente e ninguém trabalha com as crianças todos os dias. Depois do almoço, as crianças têm um tempo para brincar, e logo já se preparam para a Roda de conversa, que funciona como um momento de início das atividades do dia, como uma forma ritualizada; com a idéia de unir todo o coletivo de crianças em torno de uma proposta que consiga atrair tanto os pequenininhos como os grandes, os educadores lançam mão de diferentes linguagens para realizar esse momento coletivo, que vão desde brincadeiras, jogos, histórias, até alongamentos e “circuitos”.

Depois da roda, se iniciam as atividades dirigidas; nesse momento as crianças são divididas em três grupos: os Leões (composto por crianças de 02 a 04 anos), os Tamanduás (composto por crianças de 05 a 07 anos) e os Pássaros (composto por crianças de 08 a 15 anos). Como o Piá só possui uma grande sala, enquanto um grupo está em atividade dirigida, os outros grupos ficam em atividade livre: é a hora da brincadeira, sem proposições diretivas das educadoras, as crianças escolhem o que querem fazer, se querem brincar no parquinho, no campo de futebol ou na sala do Piá. No decorrer da atividade livre, a intervenção das educadoras acontece quando da necessidade de mediação de conflitos ou quando são solicitadas pelas crianças para participar de uma brincadeira ou para ler uma história, por exemplo. A garantia da atividade livre está ligada a uma concepção do brincar enquanto uma valorização da cultura da infância, em que a criança deve gozar do tempo de não fazer nada para construir sua autonomia.

Para as atividades dirigidas, cada grupo de educadores responsável por determinado grupo de crianças elaborou um projeto a ser desenvolvido ao longo do semestre.

O grupo que trabalhei nesse semestre foi o dos Leões, os pequenos. A ênfase dada com esse grupo caminha no sentido do desenvolvimento da linguagem oral, da ampliação do repertório a partir do contato com diferentes linguagens artísticas, da importância de estar em outro lugar de socialização que não a casa, já que, na maioria das vezes, este é o primeiro espaço de educação com o qual essas crianças têm contato. A tendência do coletivo de educadores, nesse semestre, era de projetos concretos que envolvessem as crianças em alguma “produção” para, a partir daí, desenvolver conteúdos que tivessem relação com a ênfase dada com cada grupo e que abarcassem as demandas trazidas pelas crianças. Nesse sentido, elaboramos o projeto Morada: a idéia era de construir com as crianças um imaginário sobre a casa e confrontá-lo com a realidade. Assim, realizamos diversas atividades com o tema “casa” e fizemos visitas às casas de todas as crianças do grupo.

dubuffet-hA viabilidade deste último se deu por conta do reduzido número de crianças que fazem parte desse grupo; são apenas três: Leonardo, João e Braian. Cada qual com uma história bem singular e que experimentam condições de vida bastante diferenciadas. O desafio desse projeto era justamente o de lidar com as diferenças; não poderíamos padronizar uma casa modelo, então, a famosa casinha, que colore muitas folhas de desenho infantis, teve de ser repensada. Para tanto a criatividade foi um ingrediente fundamental na elaboração das atividades. Brincamos muito de casinha e houve momentos em que extrapolamos a casa nas brincadeiras e começamos a inventar a padaria, o posto de saúde. Lugares imaginários, mas que já denotam a construção da espacialidade na qual estas crianças estão inseridas.

As visitas foram eventos muito especiais, em que saímos à rua e percebemos a noção de localização que essas crianças têm e como elas simbolizam o lugar em suas falas e apontamentos. A recepção que tivemos das mães foi muito calorosa, elas estavam sempre dispostas a nos contar sua história, o cotidiano do filho quando ele não está no Piá… visitas adocicadas por bolos e sucos. Parece que essas visitas fizeram com que os laços de amizade entre as crianças envolvidas nesse processo se fortalecessem, e a construção do referencial do educador como adulto com quem elas podem contar constituiu uma identidade de grupo bem definida.

Outro foco de trabalho foram as aulas de dança com a temática da casa (desenvolvidas pela educadora Beatriz Coelho); cada movimento proposto pela educadora tinha relação com algum cômodo da casa ou objeto doméstico. Fazíamos pães com massagens, liquidificador com muito rebolado, chuveiro com ruído de água…

O sentido geográfico desse projeto encontra suas bases na questão da localização da casa em relação ao Piá, da localização da casa de um em relação à casa de outro, na tentativa de construir um referencial espacial mais amplo do que eles tinham até então. A intenção era de provocá-los a investigar este lugar que é a casa, o primeiro núcleo social com o qual temos contato, e o contexto territorial em que a casa estava inserida. A mensuração do alcance desse propósito é muito difícil por se tratar de crianças de 2 a 4 anos, uma vez que elas estão iniciando a construção de seu entendimento de mundo. Mas a experiência de visitarem as moradias de seus companheiros de grupo – sendo que um deles vive em uma oficina de costura que funciona também como um cortiço de imigrantes bolivianos, outro vive em um apartamento de classe média nos Campos Elíseos e o terceiro vive em um barraco na Favela do Moinho – foi muito marcante no que se refere à identificação de condições variadas de moradia, ainda que de forma subjetiva.

Seguem os relatos das visitas:

Relato sobre a visita à casa do Léo

Eram duas da tarde, já havia reunido o Braian e o João, que estavam dançando lindamente na sala do Piá, ajeitamos as coisas: pranchetas, lápis, água e a máquina fotográfica. Fomos chamar o Léo, que estava super entretido com o circo, ele adora ficar lá no circo (uma outra atividade que acontece no clube escola). Num primeiro momento, o Léo se negou a ir para a casa dele e fugiu, então fui atrás dele e perguntei: “Você não quer mostrar sua casa pra gente?” Na hora ele topou e fomos eu, Lívia, Renata S. (educadora do Piá), Léo, João e Braian.

Quando chegamos à casa, alguns minutos de espera nos fizeram pensar que talvez não fôssemos recebidos, mas logo o pai do Léo já apareceu na janela e fomos muito bem recebidos. Na sala da casa há uma série de máquinas de costura e um sem número de linhas, dando um colorido ao ambiente de trabalho daquelas famílias. Naquela casa funciona uma oficina de costura e cada quarto é a casa de uma família, mas pelo visto a família mais antiga e fixa ali é a do Léo. Inclusive a família do Boris (uma criança que também foi do Piá) já morou lá. Eram três os bolivianos costurando, e uma televisão gritando um sucesso pop.

dubuffet-fAtravessamos a oficina e chegamos à cozinha, onde um cheirinho de bolo perfumava todo o ambiente. Nos sentamos, a Josefina (mãe do Léo) nos ofereceu suco de manga e gelatina de uva. Começamos a conversar, ela nos contou sobre a alegria que o Léo proporciona àquela lida, diz que ele canta, dança, conversa com todo mundo, conta sobre o Piá e que depois do meio dia parece que a casa fica vazia. Contou como tinha sido sua história, como tinha vindo para o Brasil. Primeiro veio o marido, que prometeu voltar e mandar dinheiro, ele não voltou e nem mandou dinheiro, então ela veio atrás dele com o César (irmão mais velho do Léo), que era bebê na época, e as duas meninas mais velhas ficaram com a avó. Quando eles conseguiram se estabilizar, mandaram dinheiro para que as meninas pudessem vir para o Brasil também. Disse que era muito difícil no começo, pois eram mal tratados na casa em que chegaram, não tinham liberdade para cuidar do bebê e estavam numa situação de escravidão, ela não disse nessas palavras, mas é o que é… Até que eles conseguiram comprar uma máquina, nessa época trabalhavam sem parar até à uma hora da manhã, o Léo e a Laura (irmã do Léo que também está no Piá), já nasceram aqui no Brasil. Hoje em dia, eles que recebem famílias recém-chegadas da Bolívia. Pelo visto a situação se inverteu.

No meio disso, o João saiu lá pra fora, na cozinha tem um corredor lateral onde ela lava e estende a roupa e onde o Léo brinca de motoca, o João não queria largar a motoca por nada desse mundo. Propusemos que eles desenhassem a casa do Léo, nesse momento, a Josefina tirou fotos e ficou com uma cara de orgulhosa, o João não quis saber de desenhar. Depois eles tiraram algumas fotos, o Braian tirou umas fotos interessantes. Aí o Léo quis nos mostrar o quarto deles, a Josefina ficou meio constrangida mas acabou topando, o João fez uma manha em ser tirado do carrinho, mas assim que adentramos a sala ele parou de chorar. Fomos ao quarto, eles dormem em seis ali, têm duas camas de casal e um beliche, o Léo dorme com os pais. O João ficou fissurado com os brinquedos do Léo, ele tem um trem lindo, que o Braian também adorou. A Lisa (irmã mais velha do Léo) nos disse que ele é apaixonado por trens. O Léo mostrou os outros brinquedos e eles brincaram um pouquinho. Depois comemos o bolo quentinho que tinha acabado de sair do forno e fomos embora.

Relato sobre a visita à casa do João

dubuffet-cPara começar a contar esta história, devo dizer que no início do semestre, quando na reunião de pais, o Edson (educador que também é responsável pelo grupo dos Leões) contou sobre o projeto das visitas, a única mãe que disse ter gostado muito da idéia foi a Renata, mãe do João. Combinamos o dia e ela se dispôs a nos levar de carro. No dia marcado, o João e a Renata chegaram cedo no Piá, almoçaram e ficaram por lá, e o Léo não chegava… Fiquei ansiosa e liguei para a casa do Léo, pois a Laura chegou dizendo que o Léo não queria ir pro Piá, aí falei com a Josefina que era o dia da visita à casa do João e que ele não podia furar. Acabei indo buscar o Léo, ele veio todo feliz com a visita, conversando. Chegamos lá e a Roda de Conversa já estava rolando, era aquela brincadeira “quando você fala isso, eu me lembro daquilo”. Quando acabou a roda, que inclusive a Renata participou, fomos para casa do João. Entramos no carro, nos ajeitamos e partimos. Na esquina da casa do Léo, todos reconheceram a localização da casa e comentaram: “Olha, a casa do Léo!”.

Atravessamos a ponte do Moinho, o Braian mostrou a favela e começou a comentar das ruas, que já tinha passado por ali, que já tinha dormido acolá. Ele ficava repetindo: “Otro dia Lívia…” e contava uma história, “Otro dia Lívia…” e contava outra história. O Léo só falava do trem e o João ficava repetindo o endereço dele, que ele havia decorado. Eu, o Edson e a Renata nos divertimos com as conversas no caminho. Chegando lá, tivemos que subir de elevador, pois o João mora num prédio. Não sei se o Braian e o Léo entenderam o que era elevador, eu sei que eu expliquei.
Já no apartamento, eles primeiro ficaram dando voltas pelo apartamento que é todo vazado (os pais do João são arquitetos), correndo feito uns doido, até que fomos para o quarto do João, que tinha vários brinquedos, livros, uma cama só pra ele. Ele deu uma regulada nos brinquedos, a princípio, a Renata ficou toda decepcionada perguntando se ele era assim no Piá e dizia para ele: “Poxa João, você nunca recebe amigos e quando recebe os trata assim?”. No final das contas, o João desencantou e brincamos com todos os brinquedos, lemos alguns livros, ele tem uns livros super legais de construção… Ah, e até fizemos música com uns instrumentos (que eu esqueci o nome). Bom, então eles brincaram de carrinho pelo apartamento todo, jogaram bola, até que chegou a hora do lanche. A Renata estourou umas pipocas e enchemos a pança de pipoca, suco e bolo. As crianças não ligaram muito em ver o milho estourando, tentei chamar atenção deles para isso, mas a corrida de carrinhos estava mais interessante para eles. Comeram no meio da competição e tivemos que ir embora, pois já estava ficando tarde.

Relato da visita à casa do Braian

Era dia de sexta-feira, o sol estava quente e lá fomos nós para a casa do Braian. Chegamos a pensar que a visita não aconteceria, pois já tinha sido marcada umas três vezes e sempre havia um empecilho, mas era necessário insistir para que todo o grupo fosse contemplado. Ajeitamos as coisas e fomos a pé para casa do Braian, que fica na Favela do Moinho, Campos Elíseos. Favela esta que apresenta condições insalubres de moradia, não há água nem esgoto encanados, é uma favela espremida pela linha do trem que passa ali – o trem vem de Itapevi sentido estação Júlio Prestes na Luz -, seus barracos de madeira denunciam a recente ocupação daquele terreno, e muitos ali empurram carroças em busca da sobrevivência. A favela tem esse nome por conta de um antigo moinho de trigo da família Matarazzo, que ali funcionava no século passado. A construção do moinho ainda está de pé, além de um prédio em ruínas que também se mantém, que funciona como abrigo de muitas famílias que se valem da estrutura já construída para complementarem as paredes de seus barracos. A casa do Braian fica debaixo desse prédio, colada à linha do trem; o muro que separa os trilhos da favela é a única parte de alvenaria do barraco que visitamos.

Para chegarmos à favela, vindo do Piá, andamos pela Avenida Norma Pieirruchi e atravessamos a viaduto Orlando Murgel (que liga as avenidas Rio Branco e Rudge). As conversas sobre o caminho e o trem animavam o percurso. Para entrar na favela é preciso atravessar a linha do trem, que é vistoriada por dois guardas. Cruzamos a linha do trem e adentramos. Seguimos na rua principal até o bar, onde a Andréia, mãe do Braian, nos esperava. Ela carregava o sexto filho, Pedrinho. Fomos para o barraco e ela pediu para não repararmos, mas foi inevitável. Logo na entrada, o Braian quis nos mostrar a linha do trem, e para chegar lá, tivemos que passar pelo banheiro da família que era ali no chão mesmo. A Andréia pediu que saíssemos dali, entramos no único cômodo que abrigava oito pessoas, e conversamos sobre sua história, da vinda para São Paulo.

dubuffet-bEla e o marido são baianos e vieram para cá com a primeira filha, Rosinha, já nascida – na época, a Andréia tinha 15 anos -, e um endereço nas mãos de uma tia que também havia migrado, mas eles nunca a encontraram. Viveram na rua, no abrigo da Boracéia. Oficina, até que compraram um barraco na Favela do Moinho, com o dinheiro da coleta de produtos recicláveis. O último emprego que teve foi de diarista há mais de dois anos. Essa família se encontra numa situação muito difícil, envolvendo problemas psicológicos, miséria, vício, desamparo, que me deixou em um estado de tristeza misturado com revolta, amarrado pela impotência que não consigo expressar.

As crianças ficaram sentadas um pouco, o João se atirou em meus braços e não queria olhar ao redor, estava assustado… o Léo remexia nos brinquedos e pedia para ver o trem, ele é apaixonado por trens. O Braian pedia para ir embora para o Piá. Subimos para o cômodo superior do barraco, que antes era o quarto das meninas, Rosinha e Andreza, que são as duas mais velhas. De lá de cima dava pra ver o trilho do trem, e ficamos ali sentados, lacônicos, esperando a passagem do trem… Ele demorou a passar, quando ouvimos a sirene lá longe nos preparamos, tiramos fotos e acenamos para os passageiros. Logo descemos a escada de madeira que dava passagem para a parte debaixo. O Braian pegou a bicicleta que tava toda quebrada e quis dar uma volta. Lá fomos nós… eu, ele e o João, enquanto o Léo, o Edson e a Andréia ficaram para trás. Andamos um pouco e o João se soltou da minha mão e começou a correr e a brincar. O relógio se apressou e chegou a hora de irmos embora. Nos despedimos e voltamos com os passos vagarosos daquelas perninhas que já estavam cansadas. Quando atravessamos de volta a linha do trem e saímos da favela, o João começou a abrir um berreiro que queria ficar na Favela do Moinho… bem quando ele se soltou, tivemos que ir embora. Voltamos por outro caminho por dentro do bairro, em que o Léo e o Braian reconhecerem o posto de Saúde, a casa da Carol (uma criança que também é do Piá) e a casa do Léo. Na rua passou um sorveteiro e acabamos nosso passeio com picolés de vários sabores.

Ilustrações: desenhos e pinturas de Jean Dubuffet.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Fundamental essa movimentação, reflexão e sensibilidade sobre a questão da espacialidade – dos “lugares” das crianças. Das coordenadas que, elas mesmas, experiênciam e representam.

    Não há dúvidas de que o pão ficou bem gostoso (e com massagem); de que a batedeira ficou ligada para além do preparo do bolo; e de que o chuveiro lavou a alma de pequenos e grandes… um cotidiano que se torna fantástico, como diria meu amigo André – que também já brincou muito aí no Piá, como educador.

    De resto, parabéns pela experiências, tentativas, coragem e vontade – mantendo a autogestão nas atividades atuais do coletivo.

    Assim, quem sabe, podemos construir juntos – pequenos ou grandes, não importa – uma outra história e uma outra geografia. Com novos lugares, calendários. Com novos sujeitos – nós mesmos e outros.

    Porque, no fim das contas, é o compartilhar. Eu é o outro.

    Abraços.

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