Convocação para “resposta ao crime” libera polícia do Rio para execuções e torturas
No último dia 21/10, pela manhã, o comandante do 1º Comando de Policiamento de Área (CPA), Marcus Jardim, visitou o 16o BPM (Olaria) e exortou a tropa reunida a partir para operações em favelas com as palavras: “É botar a mão no fuzil e cair pra dentro. A sociedade quer respostas”. Jardim referia-se às operações desencadeadas desde o último dia 17/10, em “resposta” à derrubada de um helicóptero da Polícia Militar (com a morte de três policiais), quando participava de ação policial que se seguiu a um confronto entre bandos rivais de traficantes no Morro dos Macacos, em Vila Isabel. Dois dias antes, o então encarregado pelas Relações Públicas da PM, major Oderlei Santos (que seria exonerado no dia 23/10 devido a declarações sobremos policiais que no mínimo facilitaram a fuga dos responsáveis pelo assassinato de Evandro João da Silva, coordenador do AfroReggae, no dia 18/10), comunicou à imprensa que a corporação havia “trocado o policiamento preventivo pelo repressivo, com o objetivo de caçar e prender bandidos envolvidos indireta ou diretamente no episódio (de 17/10)”, e que não havia prazo para o término das ações repressivas.
Menos de duas horas depois do discurso de Jardim, uma grande quantidade de policiais do 16o BPM desencadeou uma operação na Vila Cruzeiro, na Penha, gerando um intenso tiroteio e pânico entre os moradores. A situação tem se repetido na região desde então. Como aconteceu na comunidade por vários meses em 2007, as aulas nas escolas foram prejudicadas, pais e crianças têm que ir até elas com o risco de serem pegos em fogo cruzado. Uma das vítimas do tiroteio (que já somam mais de 10 em menos de uma semana), ainda no dia 21/10, foi o jovem José Carlos Guimarães da Costa Jr., de 18 anos, baleado vestindo uniforme do Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade, em frente à Escola Municipal Leonor Coelho Pereira, onde cursara o ensino fundamental, quando dobrava o beco que levaria à sua casa. José Carlos vinha da Biblioteca Popular da Penha Álvaro Moreyra, onde alugara um manual de redação. Foi levado ao hospital por suas ex-professoras.
Em declarações à imprensa, Jardim comparou a situação atual vivida na cidade àquela de 2007, quando era comandante do 16o BPM e esteve à frente do cerco ao Complexo do Alemão e da Penha, quando numerosas e graves violações aos direitos humanos, fartamente documentadas e que já foram objeto de denúncias internacionais, foram cometidas. Na verdade, desde a queda do helicóptero, o comando da PM, apoiado pelo secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, e pelo governador Sérgio Cabral, tem clamado por uma “resposta à altura”, e ordenou “operações sem parar” em diversos pontos da região metropolitana do Rio. O pretexto inicial era impedir o deslocamento de traficantes que pudessem repetir os confrontos no Morro dos Macacos, mas logo ficou claro que se trata de ações em “revide” contra a facção criminosa responsável pela queda da aeronave, pois são feitas quase exclusivamente em comunidades onde tal facção atua, tão distantes uma das outras como Antares (Santa Cruz), Beira Mar (Caxias), Santo Amaro (Catete) ou Jacarezinho (Zona Norte do Rio).
Tais ações, motivadas por espírito de vingança, e por um discurso agressivo como o do coronel Jardim, dão margem a graves violações de direitos em todas as comunidades em que as operações estão acontecendo. Casos de moradores baleados repetem-se tragicamente, inclusive com vítimas fatais. No dia 23/10 quatro moradores da Vila Cruzeiro foram baleados, sendo que um (Severino Marcelino dos Santos) morreu posteriormente no hospital. Outra vítima fatal de confrontos provocados por operações da PM foi Ana Cristina Costa do Nascimento, de 24 anos, baleada na noite de 25/10 quando ia, com a filha de 11 meses (Caienny, que foi ferida no braço) no colo e acompanhada do marido, de outra filha de 3 anos, parentes e amigos, para um ponto de ônibus perto da saída da favela Kelson’s, na Penha. O marido e os demais acompanhantes acusaram policiais do 16o BPM, aquele que foi “estimulado” pelo discurso de Marcus Jardim, de chegarem atirando sem nenhum sinal de confronto. A comunidade revoltou-se e protestou no dia seguinte, e foi reprimida pelo mesmo batalhão.
Quanto às “mortes de bandidos em confronto com a polícia”, que oficialmente já passam de 20 desde 17/10, acontecem em meio a forte campanha midiática que dificulta a averiguação sobre se houve realmente confronto ou foram execuções sumárias, praticadas tão habitualmente pelas polícias do Brasil. Além disso, outras mortes, descritas pelos comunicados oficiais da polícia como decorrentes do enfretamento de traficantes entre si, aconteceram em condições suspeitas. Esse é o caso dos dois corpos deixados no dia 22/10 em frente ao Hospital Getúlio Vargas (Penha), aparentemente provenientes da Vila Cruzeiro, onde não havia sido relatado nenhum confronto entre facções no dia anterior, mas sim a operação policial já citada.
Ao contrário do que aconteceu em 2007, a polícia e a Secretaria de Segurança têm buscado efetuar e divulgar prisões, e não só confrontos e mortes. Pensamos que isso já é conseqüência das denúncias e da atuação dos movimentos sociais e organizações defensoras dos direitos humanos, mas é necessário registrar que muitas dessas prisões podem envolver violações graves aos direitos das pessoas, como tortura. No dia 19/10, foi preso em sua casa, no Jacarezinho, e apresentado à TV Murilo Rodrigues dos Santos, 18 anos, que teria confessado a participação no ataque ao Morro dos Macacos. Diante da imprensa, entretanto, Murilo afirmou ter sido torturado para fazer a confissão.
No dia 22/10, recebemos a denúncia de que Lucas Ribeiro de Freitas, estudante de 18 anos havia sido violentamente espancado e torturado por policiais do 3o BPM (Méier), em operação na favela da Cachoerinha (Lins e Vasconcelos). Militantes da Rede imediatamente entraram em contato com Lucas e a família e verificaram a gravidade do estado em que se encontrava o rapaz. Lucas estava em casa no computador quando chegaram os policiais, algemaram-no à força e começaram a agredi-lo, com socos e pontapés. Além disso, utilizaram uma técnica de tortura, que ficou muito conhecida da população devido ao filme Tropa de Elite, que é a utilização de um saco plástico para realizar o sufocamento da pessoa para, desta maneira, conseguirem informações. Uma vizinha passava perto do local quando percebeu que algo estranho estava ocorrendo, quando viu o jovem sendo agredido e torturado pelos policiais. Imediatamente avisou a irmã de Lucas, que foi até sua casa e começou a pedir ajuda. Logo após, os policiais se retiraram. Se não fosse a intervenção da irmã (que também foi ameaçada), algo bem mais grave poderia ter acontecido. Lucas foi levado ao hospital, pois estava muito ferido e vomitando, e no dia 24/10 acompanhamos seus familiares e ele para registrar o ocorrido na 25a DP e para fazer exame de corpo de delito no IML.
É importante notar também que, das mais de trinta prisões anunciadas, a que mais pode estar realmente relacionada aos confrontos entre facções no Morro dos Macacos, é a de Fabio Luiz Gonçalves dos Santos, de 27 anos, conhecido como Binho da Matriz, que foi realizada no dia 25/10 por policiais do 3o BPM numa operação preventiva de rotina na rua, sem tiros e sem necessidade de “operação repressiva” em favelas.
Os casos de José Carlos, Severino Marcelino, Ana Cristina e Lucas são emblemáticos do que tem sofrido a população de favelas do Rio nas últimas semanas. Não são, desgraçadamente, novidades, mas as violações intensificaram-se desde o dia 17/10. Preocupa-nos que, à medida em que as “operações” deixem de chamar a atenção da imprensa, as mortes e abusos continuem, mas a possibilidade de denunciá-las seja ainda menor. Em vista disso, dirigimo-nos ao Ministério Público, às organizações nacionais e internacionais de defesa dos Direitos Humanos, e mesmo à imprensa, no sentido de que todas as operações policiais, sejam as que já aconteceram ou que continuam a acontecer, sejam minuciosamente investigadas e acompanhadas, e as violações cometidas denunciadas e seus responsáveis indicados.
Desde 2007, pelo menos, temos defendido que, entre os responsáveis pelas violações, sejam incluídos os oficiais da PM, autoridades superiores da polícia civil e membros do governo, que estimulam e justificam as práticas violentas de seus subordinados com discursos e declarações como as emitidas pelo coronel Marcus Jardim.
Também entendemos que, de alguma maneira devem ser responsabilizados alguns órgãos e profissionais da imprensa que, através do sensacionalismo e da veiculação parcial de versões, influenciam a opinião pública tornando-a insensível ou conivente com a violência do Estado sobre as comunidades pobres e majoritariamente negras das grandes cidades do Brasil.
O fato grave da queda do helicóptero e da morte dos três policiais deveria ter servido não para a repetição de discursos violentos e vingativos, mas para desencadear uma profunda reflexão sobre os fracassos das ideologias e políticas de “segurança pública” que vem sendo seguidas há cerca de trinta anos pelos governos e apoiadas por parte significativa da sociedade. Ideologias e políticas baseadas na repressão sobre a parte mais desorganizada do sistema do crime organizado, na “resposta” militar, na segregação e no preconceito contra a população pobre, negra e favelada.
Em particular, para nós está claro que fracassou sob todos os aspectos a dita “política de enfretamento” pregada e posta em prática pelo governador Sérgio Cabral e pelo Secretário de Segurança José Mariano Beltrame no Rio de Janeiro. Os níveis de criminalidade ou tem se mantido ou em alguns casos piorado (como os casos de desaparecimento), e a criminalidade praticada diretamente pelo Estado (violações de direitos humanos e corrupção) tem certamente se agravado.
Uma conseqüência do rumo escolhido desde 2007 foi provocar um desequilíbrio entre as facções envolvidas no comércio clandestino de drogas, e uma “corrida armamentista” do tráfico a varejo. E, conseqüentemente, uma intensificação nos últimos anos das disputas entre elas, da qual o confronto em 17/10 no Morro dos Macacos foi apenas um episódio. Uma série de confrontos entre facções, geralmente com a participação da polícia, levaram a um grande número de vítimas, como tem acontecido nas diversas comunidades da região da Maré ou na Vila Vintém, por exemplo.
Há muito tempo movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos tem defendido que uma verdadeira “repressão qualificada ao crime organizado” só pode significar concentrar todos os esforços na investigação e desarticulação das grandes redes de tráfico de armas e drogas, que atuam transnacionalmente, e não nas favelas e periferias pobres das cidades. E, para isso, um bom ponto de partida é a investigação a fundo e corajosa da corrupção policial e política em todos os níveis. Entretanto, como isso atingiria frontalmente interesses poderosos e bem organizados, sabemos que só uma ampla organização e luta social será capaz de mudar os rumos da segurança pública no Rio de Janeiro e no Brasil.
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
28 de Outubro de 2009.