A partir de um livro e de um vídeo, discutir um tema central atualmente no Brasil: o genocídio da juventude negra e pobre, levado a cabo por agentes policiais e grupos de extermínio ligados ao Estado.
No último dia 10/12, quando se celebrou o Dia Internacional dos Direitos Humanos, uma série de movimentos sociais brasileiros, comunidades pobres e, principalmente, redes de familiares de vítimas do Estado brasileiro realizaram pela primeira vez atos simultâneos na frente de representações do Poder Judiciário em todo o país. Com uma pauta unificada, o título do documento comum anunciava Lutamos por justiça, reparação e liberdade! e vinha assinado, entre outros movimentos, pela Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência (RJ), pela Campanha Reaja ou será Mort@ (BA), pelo Fórum da Juventude Negra (ES) e pelas Mães de Maio (SP). Leia o documento aqui.
No próximo dia 17/12 ocorrerá o lançamento em São Paulo do livro Auto de Resistência – relatos de familiares de vítimas da violência armada (Rio de Janeiro, 7Letras, 2009), e a apresentação do filme “Luto como Mãe” (Luis Carlos Nascimento, Rio de Janeiro, 2009). E, mais uma vez, estarão reunidos numa mesma atividade militantes da Rede Contra Violência e as Mães de Maio. Desta vez para discutir, a partir do livro e do vídeo, um tema e uma luta das mais centrais atualmente no Brasil: contra o genocídio da juventude negra e pobre, levado a cabo por agentes policiais e grupos de extermínio ligados ao Estado brasileiro.
Participarão do lançamento também as jornalistas Rose Nogueira, membro do Tortura Nunca Mais de São Paulo, e Tatiana Merlino, integrante do Núcleo Memória e co-editora da revista Caros Amigos, além de ser uma das proponentes da ação contra o coronel torturador Brilhante Ustra – famigerado por todos os seus crimes de lesa-humanidade durante a ditadura civil-militar brasileira. Um dos objetivos do evento é também aproximar as duas lutas políticas contra os agentes de Estado torturadores, seqüestradores e assassinos. De ontem e de hoje.
Conforme havíamos anunciado, para entender um pouco melhor a história e as razões destas mobilizações mais recentes de familiares, que têm crescido na mesma medida em que se multiplicam as prisões e assassinatos de jovens pobres e negros pelo país, o Passa Palavra publica uma nova entrevista com outra familiar de vítima, a qual também a partir da dor familiar começou a participar ativamente destes movimentos e articulações.
A primeira entrevistada fora Débora Maria Silva, uma das Mães de Maio da Baixada Santista, que teve o seu filho, Édson Rogério, assassinado durante os chamados “Crimes de Maio de 2006”. Leia a primeira entrevista aqui.
Hoje quem conversa conosco é Patrícia de Oliveira, militante-fundadora da Rede Contra Violência e irmã de Wagner, um dos sobreviventes da Chacina da Candelária (1993).
A seguir, Patrícia conta um pouco de sua trajetória, traça suas principais análises e bandeiras, bem como fala da importância do debate que ocorrerá nesta quinta-feira (17/12), no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. O Passa Palavra transmitirá o debate a partir das 18h00.
PP: Você poderia se apresentar, Patrícia, e nos dizer quando e como sua militância política começou?
Patrícia: Meu nome é Patrícia de Oliveira, faço parte da Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência. A Rede surgiu em 2004 depois da chacina do Borel [no final da tarde do dia 16 de abril de 2003, dezesseis policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar realizaram uma operação no morro do Borel, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Impedidos de se identificarem, quatro rapazes foram assassinados durante a operação: Carlos Alberto da Silva Ferreira, pintor e pedreiro (21 anos); Carlos Magno de Oliveira Nascimento, estudante (18 anos); Everson Gonçalves Silote, taxista (26 anos) e Thiago da Costa Correia da Silva, mecânico (19 anos).] Eu ajudei a fundar. Antes eu já fazia parte de outros movimentos, ajudei numa organização que trabalhava com crianças desaparecidas. Eu tenho um irmão que estava na chacina da Candelária (ocorrida em 1993) e em 1995 eu comecei a participar quando me reencontrei com ele. Estou até hoje na luta.
PP: Como se formou e quais as principais bandeiras da Rede Contra Violência? E quais as principais dificuldades enfrentadas pelo movimento de familiares de vítimas do estado no Rio de Janeiro?
Patrícia: A chacina do Borel ocorreu em 2003, mas a Rede só se formou em 2004. Os assassinatos aconteceram em 2003, 16 de abril. Várias pessoas que faziam parte de outros movimentos organizaram um ato para pedir justiça. Quatro jovens foram assassinados pela polícia na comunidade do Borel e um sobreviveu e é testemunha. Fizemos várias reuniões e uma grande manifestação da São Miguel até à Afonso Pena, e depois fizemos outros atos. Em 2004 fizemos uma grande manifestação em frente ao Palácio Guanabara. E acabou surgindo a Rede, que é formada basicamente por familiares dos que sofreram violência policial. A Rede atua acompanhando familiares em delegacias, indo nos julgamentos, participando de manifestações. Tem uma comissão de comunicação, uma jurídica de que eu faço parte, a comissão de apoio aos familiares de vítimas de violência, de que eu também faço parte, junto a outras pessoas.
As principais bandeiras da Rede giram em torno do fim da violência policial. Para mim, enquanto familiar de vítima, entre as prioridades (e maiores dificuldades) estão o reconhecimento do governo pelas mortes cometidas pelos seus agentes e o fim também das mortes, além de uma solução urgente do caso de Acari.
PP: No último dia 10/12, Dia Internacional dos Direitos Humanos, foram realizados diversos atos simultâneos convocados por Familiares de Vítimas do Estado e outras organizações, dentre as quais estava a Rede. Quais foram as principais reivindicações destes atos?
Patrícia: O principal objetivo dos atos foi mostrar ao Judiciário que nós não estamos paradas, só esperando eles fazerem: por isso nós cobramos atitudes deles. Eu mesma já acompanhei muitos casos. Você acaba vendo que as autoridades não querem saber. Tem delegado que se prontifica e fica em dúvida, mas tem outros que falam: “ah, foi… aconteceu… mas aconteceu por que?”. Quer dizer, a vítima ainda tem que dizer porque isso aconteceu. Eu vi muitos casos, acompanhei pela delegacia, este ano eu já perdi as contas. Mas tem muita gente que não denuncia por medo da represália.
PP: Conte-nos, por favor, um pouco do histórico da produção deste livro (Auto de Resistência – relatos de familiares da violência armada) e deste filme (“Luto como Mãe”), que serão apresentados dia 17/12 em São Paulo.
Patrícia: Foi um trabalho em conjunto com vários familiares e a equipe do CESEC [Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes – RJ]. Tivemos aula de gravação e pesquisa em jornais, bibliotecas e outros lugares. Para mim foi um trabalho muito interessante de fazer. O livro também foi um trabalho em equipe: todos puderam contribuir, foi ótimo!
PP: Sabemos que o Brasil mantém uma distinção profunda no tratamento dispensado aos seus chamados “cidadãos”. Há, de um lado, poucos indivíduos ricos e, via de regra, brancos, que portam direitos (e privilégios); e, de outro lado, uma maioria de pobres e negros cada vez mais tratados como descartáveis, completamente alijados dos direitos humanos mais elementares. Em sua opinião, quais as principais raízes e razões para a permanência desse abismo num país que se diz democrático?
Patrícia: Acredito que isto ocorre porque nós ainda não tomamos consciência da nossa força, mas um dia isto vai mudar!
PP: Qual o posicionamento da Rede Contra Violência, e o seu em particular, frente aos movimentos de familiares da ditadura civil-militar? A seu ver, quais as relações entre os movimentos de familiares e presos políticos da ditadura e os movimentos de familiares e vítimas da democracia?
Patrícia: Temos o posicionamento de cobrar em conjunto com os familiares que ficaram vivos pelos corpos que ainda não apareceram, de pedir mudanças e sempre apoiá-los na luta por Justiça.
PP: Por último, Patrícia: como você classificaria o crime cometido contra seu irmão (“comum”, “político”, “gratuito”, etc.)? E como você classificaria a sua forma de atuação (“comum”, “política”, “humanitária”, etc.)? Essas classificações significam ou explicam alguma coisa para você?
Patrícia: Acredito que os crimes cometidos por policiais são piores ainda, pois em teoria eles são pagos para nos proteger. Mas eles continuam matando porque têm certeza de que não vão ser punidos: tem que haver punição do coronel ao cabo, soldado, todos!
PP: Alguma consideração final, Patrícia?
Patrícia: Acho muito importante este lançamento [do livro Auto de Resistência – relatos de familiares de vítimas da violência armada] em São Paulo, no dia 17/12, para fortalecer a luta.
PP: Muito obrigado.