No estado de São Paulo o economista João Sayad gere a Secretaria da Cultura como fosse um banco: uns poucos são clientes “prime”, “personalité”, os demais pagam a conta da cultura sendo tratada como mercadoria. Por Raphael Amaral
O ano de 2009 se encerra de uma forma muito triste para a cultura paulistana. Na madrugada de 05 de dezembro, o dramaturgo Mário Bortolotto e o ilustrador Carlos Carcarah (pseudônimo de Henrique Figueiroa) foram baleados após reagir a um assalto no Espaço Parlapatões, na Praça Roosevelt (Centro de São Paulo), um dos mais importantes pólos do Teatro de São Paulo.
Com a violência e degradação urbana (e humana) da megalópole estampada na face dos consumidores de cultura de São Paulo, explicita-se também o momento de exigir não apenas mais iluminação e policiamento na Praça Roosevelt, mas de observar com mais atenção a situação lamentável em que se encontra grande parte do setor cultural em SP.
Na mesma manhã do incidente com Bortolotto, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma matéria sobre a passagem pelo Brasil do arquiteto Jacques Herzog, do escritório de arquitetura suíço Herzog & de Meuron Architekten. Vindo à tona ao grande público mundial por meio da construção do “Ninho de Pássaro” (Estádio Nacional Olímpico de Pequim, 2008) e do Allianz Arena (Munique, 2005), o escritório será o responsável por construir um centro cultural no bairro da Luz, que vem sendo denominado como “Teatro da Dança”. Projeto este que já nasce cercado por polêmicas.
Cultura para poucos… bem poucos mesmo.
Os arquitetos Cesar Bergström Lourenço (ASBEA – Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura) e Rogério Bataglies (SINAENCO – Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva) entraram com uma ação popular para paralisar a construção do referido “Teatro da Dança”.
A Constituição diz que uma ação popular visa “anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”. Para os arquitetos que movem essa ação a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, controlada por João Sayad, não discutiu o projeto com o rigor e a profundidade devidos e, além disso, contratou o Herzog & de Meuron Architekten sem concorrência ou concurso público, o que é inconstitucional. O escritório suíço irá faturar aproximadamente R$ 26,5 milhões pelo projeto arquitetônico, e de acordo com a Folha, ele já ganhou R$ 3 milhões pelo pré-projeto.
Cabe ainda ressaltar um questionamento feito também por Bataglies: será mesmo que a região da Luz precisa de mais uma instituição cultural? Uma vez que no bairro já estão localizadas a Escola Livre de Música do Estado de São Paulo-Tom Jobim, a Sala São Paulo, a Pinacoteca, a Estação Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa, será mesmo que há alguma suposta “revitalização” do bairro da Luz que justifique a construção do chamado “Teatro da Dança” também nesse mesmo perímetro urbano?
O dinheiro de todos retornando para uns poucos
As situações acima já são suficientes para exigir detalhadas explicações do secretário de Cultura, João Sayad, à sociedade. Entretanto, ainda há muito mais por se esclarecer. Por exemplo, as proporções e, conseqüentemente, os custos “faraônicos” da obra.
Contendo um teatro para dança e ópera, um para peças e recitais, uma sala experimental, uma escola de música, totalizando quase 3.000 lugares, o “Teatro da Dança” será construído na Praça Júlio Prestes, no local da antiga rodoviária do bairro da Luz (que funcionou até 1982, quando foi construído o Terminal Rodoviário Tietê) abarcando uma área construída de 95 mil m2 (cerca de quatro vezes o Pavilhão da Bienal, de 25 mil m2). Dessa forma, esse centro cultural está orçado em R$ 311,8 milhões (valor que pode se elevar, de acordo com a própria Secretaria de Cultura), ou seja, o mais caro projeto da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
Minimamente republicanos, minimamente cidadãos, demasiadamente pagadores de impostos, questionamos se realmente justifica-se destinar R$ 311,8 milhões a um único centro cultural em uma região que já possui diversas instituições culturais. Será que com R$ 311,8 milhões não é possível fomentar uma estrutura melhor (em todos os sentidos) a companhias e grupos que promovem a cultura em SP e constantemente sofrem com as limitações impostas pela ausência de uma política pública decente voltada para a área cultural?
Ao destinar fartos R$ 311,8 milhões ao “Teatro da Dança”, fica explícito (ou melhor, obsceno) que o secretário de Cultura, João Sayad, não está minimamente preocupado em promover maiores e melhores atividades culturais entre os cidadãos paulistas, mas quer meramente privilegiar a São Paulo Cia. de Dança (SPCD).
A SPCD, criada em janeiro de 2008, pelo próprio João Sayad, é a primeira companhia subsidiada pelo Estado, recebendo com exclusividade a inacreditável quantia de R$ 13 milhões anuais (!), ao mesmo tempo em que R$ 1,4 milhões é a verba pública a ser dividida por todos os grupos privados do Estado de São Paulo! Como aponta Sandro Borelli (coreógrafo da Cia. Borelli de Dança), um típico “caso de coronelismo”. A opinião de Borelli sobre esse assunto está mais bem explicitada aqui.
Atualmente, a SPCD, com total apoio governamental, faz da Oficina Cultural Oswald de Andrade sua sede própria (na prática, faz o que quer e o que bem entende dentro da Oficina Oswald de Andrade, mesmo que em detrimento de outras atividades). Com a construção do “Teatro da Dança”, sua sede será realocada para o bairro da Luz. Ou seja, constroem de forma ilegal (como já se alertou acima) um espaço de R$ 311,8 milhões para sediar o grupo que recebe R$ 13 milhões anuais… Notável!
Quando açougueiros cuidam de hospitais
Em 25 de novembro de 2009, o Memorial da América Latina recebeu a 1ª Conferência Estadual de Arte e Cultura do Estado de São Paulo. Ao ser inquirido sobre os R$ 13 milhões anuais da SPCD, João Sayad respondeu que a “São Paulo Cia. de Dança vai muito bem, obrigado!” No mesmo evento, Sayad ainda teria afirmado que, enquanto pai, ele preferia levar seu filho para assistir a filmes como Homem-Aranha, que ele denominou como “cinema de qualidade, por ser importado”.
Não satisfeito, na mesma Conferência o secretário de cultura ainda apresentou o projeto do Estado de construção de livrarias megastore, com preços acessíveis, na periferia da cidade, afirmando que Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis e outros exemplos ficarão nos fundos da loja, pois nas vitrines estarão os Harry Potter, Crepúsculo e etc. Sayad afirmou ainda, como algo realmente revolucionário, que a Secretaria de Cultura de SP distribuiu 2,5 milhões de ingressos de cinema, em 2009, para que as pessoas de baixa-renda tivessem a oportunidade de ir ao cinema uma vez ao ano gratuitamente… Ganhando R$ 13 milhões anuais, quantas vezes será que os cerca de 30 dançarinos da SPCD vão ao cinema por ano? Talvez o próximo plano da Secretaria seja permitir que a população de baixa-renda vá gratuitamente às temporadas que a SPCD realiza no Teatro Alfa, sob o custo de R$ 80 o ingresso (mesmo com toda a verba anual).
Como se sabe, João Sayad nunca teve nenhum vínculo com a área cultural. Ex-presidente do Banco Inter-American Express, Sayad é doutor em Economia pela Universidade de Yale, professor pela FEA-USP. Ele foi ministro do Planejamento do Sarney, secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico da cidade de São Paulo e secretário da Fazenda na gestão Franco Montoro e do município de São Paulo durante a administração de Marta Suplicy. No ano de 2006, deixou a vice-presidência de Planejamento e Administração do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
E a cultura nisso tudo? Não há! Nunca houve. Apenas números, cifrões e, claro, muito lucro. E, após o singelo convite do governador José Serra (PSDB) assumiu, em 2007, a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
Com pesar, constata-se que mesmo a escolha dos arquitetos para a construção do “Teatro da Dança” não foi por um mero acaso. O arquiteto suíço Jacques Herzog, conforme relata a referida matéria de 05 de dezembro da Folha, depois de degustar sua tão merecida taça de vinho tinto e seu prato de hors d’oeuvres sortidos, gesticulando, mastigando com avidez seus deliciosos canapés, admitiu que o teatro é, de fato, um “projeto para a classe alta”. Além do mais, de acordo com Herzog, “é estúpido ser politicamente supercorreto […] Dizer que é preciso cuidar só de pobres é uma hipocrisia.” Afinal, os malditos pobres já vão uma vez por ano ao cinema, não é mesmo?!
Então, eis que um economista vem administrando a Secretaria de Cultura. Suas opiniões e, acima de tudo, suas ações refletem o interesse mercadológico e do mundo corporativo. Não há espaço para o autônomo, para o nacional, para a inovação e muito menos para a contestação. Sua postura neoliberal submete uma das pastas mais importantes do governo aos benefícios e lógicas dos meios empresariais.
Porém, não podemos alegar surpresa frente tal situação. Em São Paulo, a gestão estadual e municipal (Serra – Kassab) para a educação, saúde e, obviamente, cultura é a da lógica que atua contra a população, privilegiando uns e excluindo a quase todos. Trata-se de uma postura elitista, que articula o dinheiro público para favorecer apenas uns poucos grupos privados.
Somando um misto de privatização e prevaricação com uma plebe rude que, temerosa e desorientada, apóia quem gere a coisa pública contra a própria sociedade, o triste resultado é um economista cuidando da pasta da cultura, assemelhando-se muito a Göring, sucessor presuntivo de Hitler, que já dizia: “quando eu ouço a palavra cultura, logo saco meu revólver”!
cultura para poucos, pois foi reificada
Arcaísmo e progresso constituem simultaneamente duas faces da cultura espetacular-mercantil. O arcaico manifesta-se aí na manutenção da arte como objeto morto, no conjunto das atividades impostas unilateralmente pelo aparato cultural do capitalismo atual (e assim Oswald de Andrade, esse nobre filho da burguesia paulistana, é homenageado pelo Estado/Mercado como símbolo da modernidade artística nacional, num momento histórico em que os sucessores de Marinetti, Tzara, Breton e Debord buscam realizar a arte na vida cotidiana e necessariamente CONTRA e FORA do já referido aparato cultural do sistema).
Porque no Brasil, os parvos da elite artística que não são outros senão a elite do capital mundializado, desconhecem a história da grande arte moderna, de vanguarda, que já em 68 pela primeira vez na história unificava seu programa estético ao programa do movimento proletário revolucionário, porque Sayad, o SESC, a Bienal de Arte Moderna de SP e a PM do Serra formam um só e mesmo bloco histórico reacionário, inimigo da liberdade artística que marcou a arte de vanguarda do século passado. O comentário acima tem razão, do amor ao esporte, tudo foi reificado pelo movimento de autovalorização do capital. Reconhecem os proprietários da cultura que o Manifesto do Partido Comunista inaugura a grande cultura moderna? É hora dos legítimos herdeiros da grande arte moderna do século XX comunicarem suas experiências e unificarem seus programas, formarem comitês de salvação pública por todos os cantos, que vinguem tantas derrotas da arte na história. Talvez seja o momento de um retorno, prospectivo, à experiência da Ilha Grande. O CV fez seus sucessores (nas periferias, em todos os lugares, todos são do PARTIDO). Faltou ao PC fazer os seus.
Em cólera,
Herbert Marcola.
A propósito do comentário de Herbert Marcola, é errado assimilar vanguardas estéticas e vanguardas poíticas, embora fosse essa a situação ideal, evidentemente. O certo é que em numerosíssimos casos o elitismo das vanguardas estéticas as tem precipitado para a extrema-direita. Para me limitar aos nomes que ele citou, Marinetti e todo o grupo futurista foram expoentes da extrema-direita radical. Ainda Mussolini era um dos chefes da ala esquerda do Partido Socialista italiano, já Marinetti e os seus amigos estavam ao lado de Enrico Corradini na conjugação da direita nacionalista com o sindicalismo revolucionário, a operação política da qual viria a resultar o fascismo. Os futuristas foram fascistas de antes da primeira hora, e foram-no até ao fim.
João Bernardo,
Evidente que Marinetti foi um expoente do que se pode chamar, em arte, de “vanguarda positiva” e, em política, do fascismo. Sabemos que o futurismo italiano, fascinado pelo progresso tecnológico da sociedade capitalista chegou a saldar a bomba atômica e até mesmo a extrair da Guerra uma absurda “beleza estética”, etc. Estamos de acordo com relação a este ponto e, de forma alguma, pretendíamos “desdiferenciar” programas tão díspares como os do futurismo, do dadaísmo, do surrealismo e da Internacional Situacionista (IS) quando citamos seus principais fundadores no comentário acima. Mas, por outro lado, não se pode negar sem mais a importância do futurismo para a evolução do programa das vanguardas artísticas, ainda que se condene sua filiação política de extrema-direita e que, sobretudo no surrealismo e na IS foi não somente criticada como vigorosamente combatida. Autocrítica: para alcançar uma comunicação desejada, meu primeiro comentário exigia, de fato, mais mediações. Marinetti foi ali prontamente lembrado por dois motivos. Primeiro: pela importância específica das atividades futuristas para a história das vanguardas artísticas modernas e, segundo: pela influência central que exerceu no modernismo brasileiro, sobretudo em Oswald de Andrade. Suas colocações são muito oportunas a este respeito e pode nos conduzir, indiretamente, a uma hipótese bastante relevante para uma compreensão histórico-crítica do então nascente “modernismo” brasileiro e que nos permita melhor compreender a aproximação entre figuras reacionárias como Plínio Salgado (fundador da nazi-fascista Ação Integralista Brasileira) e a vanguarda artística paulistana do início do século XX. De resto, a propósito da relação entre vanguardas políticas e estéticas, acreditamos que a última das grandes vanguardas do século XX, a IS (esta sim uma organização inseparavelmente política e estética), nos oferece o mais rico exemplo, um exemplo que, contudo, não nos serve de modelo. Um exemplo que, por sua história, por sua contribuição na elaboração de uma teoria prática e, portanto, revolucionária, esteve longe de constituir apenas uma “situação ideal” para realizar-se concretamente na prática do proletariado francês em 68 e d’ailleurs.