O “Plano de Campanha Chiapas 94” teria por objetivo romper a relação de apoio da população com as forças opositoras. Os militares deveriam organizar, assessorar e apoiar secretamente setores da população civil como forças de autodefesa ou outras organizações paramilitares. Por Alex Hilsenbeck e Cássio Brancaleone
Chiapas, região de Los Altos, município de San Pedro Chenalhó, comunidade de Acteal, 22 de dezembro de 1997. Enquanto um grupo de indígenas tsotsiles seguia em seu terceiro dia de jejum e orações pela paz naquela conflituosa região intocada pela Revolução Mexicana de 1910, um bando armado, utilizando armas e munições de uso exclusivo do exército federal, invadiria a pequena igreja do vilarejo onde se realizava a vigília e tiraria a vida de 45 pessoas. Entre as vítimas faleceram 19 mulheres (incluindo 4 grávidas), 8 homens e 18 crianças. O abominável massacre de Acteal representou o ponto mais alto da escalada de agressões paramilitares promovida contra grupos indígenas independentes das antigas redes clientelistas de poder no estado de Chiapas, basicamente representadas pelo caciquismo priísta (o PRI – Partido Revolucionário Institucionalizado – reunia as principais elites políticas que na prática governaram o México em um sistema de partido único supostamente até o ano 2000).
Ainda que a onda de violência que explodiu em muitas regiões desse estado tenha uma vinculação quase direta (e reativa) ao levante zapatista de 1994, não se pode esquecer que Chiapas passou por um complexo processo de renovação de lideranças e organizações sociais ao longo dos anos 1970 e 1980, fruto de uma confluência entre crises econômicas, a diversificação da produção local, a imigração e colonização da região da selva, o surgimento de novos movimentos religiosos, o ingresso de novos grupos de ativistas e promotores de organizações populares na região (além e anterior aos guerrilheiros da antiga FLN), para citar alguns elementos mais importantes. Todos esses fenômenos contribuíram para colocar em xeque a hegemonia priísta em Chiapas, abrindo espaço tanto para a atuação do EZLN quanto do PRD (Partido da Revolução Democrática – principal força da esquerda eleitoral mexicana).
A multiplicação dos sujeitos coletivos que passavam então a ter condição de disputar a hegemonia política estadual e regional, seja através dos canais existentes, seja através da criação de novos espaços, foi o principal motivo que produziu uma virulenta reação por parte daqueles setores, identificados com o PRI, desesperados na tentativa de manter o monopólio das redes locais de poder. Não é fortuito que o massacre de Acteal foi movido contra uma organização indígena independente e não zapatista, o grupo Las Abejas. Sem prejuízo para sua importância, o zapatismo é apenas a ponta de lança e a parte mais visível desse processo, e os únicos que até então se dispuseram a pegar em armas.
Outras organizações, como a Frente Nacional de Luta pelo Socialismo (FNLS) e a Organização Camponesa Emiliano Zapata (OCEZ), somente para citar duas das mais expressivas, também são vítimas de perseguição, agressões e violências, ainda que muitas vezes não apareçam nos comunicados internacionais de solidariedade. Na cartografia da agitação popular chiapaneca, é importante estar atendo a essas dinâmicas de constituição de grupos autônomos e combativos de camponeses, entender a relação que mantêm entre si, e em especial com o EZLN, mas sem menosprezar suas capacidades organizativas e ideológicas no processo de catalisação dos setores subalternos.
Dito isto, podemos buscar uma explicação mais abrangente para a estratégia contra-insurgente hoje em curso em Chiapas, que se iniciou formalmente em 1994 com o fenômeno zapatista, mas que deita raízes muito antes, e talvez tenha encontrado justamente naquele episódio uma conjuntura favorável para constituir-se como um processo mais sistemático de repressão às alternativas populares.
Esse é o sentido do “Plano de Campanha Chiapas 1994”, preparado pela Secretaria da Defesa Nacional (SEDENA) do governo mexicano: um plano que, dirigido contra as organizações revolucionárias de tipo guerrilha maoísta (por isso a máxima de “tirar a água para matar o peixe”), e no caso específico dirigido contra o EZLN, atingiu em cheio todas as organizações sociais independentes ou opositoras ao PRI, tratadas genericamente como o “ambiente” (a água) a partir do qual as organizações armadas sustentam suas atividades.
Conforme comunicados zapatistas, relatórios de organizações de direitos humanos e testemunhos de observadores internacionais, vive-se em Chiapas uma situação de “guerra de baixa intensidade” ou de “contra-insurgência”, isto é, o governo ao mesmo tempo em que declara oficialmente uma situação de paz, trava um conflito não aberto, no qual busca, por um lado, desgastar a imagem do EZLN e de grupos opositores e minar o apoio das comunidades às lutas sociais através de uma guerra psicológica, e por outro lado, fazer um cerco militar. São muitos os casos relatados pela população de invasões do exército às comunidades, com saques, destruição das plantações, prisões e estupros, sempre com a desculpa de estarem ali em decorrência de “treinamento”, à procura de grupos paramilitares, plantações de drogas etc. Além disso, o governo busca cooptar as comunidades extremamente pobres com diversos “programas assistenciais”, como a distribuição recente de frangos ou bicicletas.
A implementação da estratégia do “Plano de Campanha Chiapas 94” teria como objetivo chave, portanto, romper a relação de apoio existente entre a população e as forças opositoras, sendo que os militares deveriam organizar, assessorar e apoiar secretamente setores da população civil enquanto forças de autodefesa ou outras organizações paramilitares.
Estes grupos paramilitares foram responsáveis entre 1995 e 2000 pelo deslocamento forçado de mais de 10 mil pessoas das aproximadamente 12 mil registradas pelo Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas. Em sua grande parte, por execuções, massacres e desapropriações forçadas.
Isto significa que este tipo de conflito, estabelecido desde 1995, data em que o então presidente mexicano Ernesto Zedillo retoma a via de uma escalada bélica de violência contra os zapatistas, constitui uma política deliberada de Estado para cometer ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil. Assassinatos, deslocamentos forçados, privação de liberdade, tortura, perseguição de grupos ou coletivos políticos, étnicos, religiosos.
Tão agravante e assustador quanto a brutalidade com que foi conduzido o massacre de Acteal é, no entanto, a atitude de alguns intelectuais e do governo mexicano em atribuir ao EZLN responsabilidade indireta pelo acontecido: assim, a formação dos municípios autônomos zapatistas a partir de 1995 teria colocado em questão a legitimidade do poder político em muitas comunidades, agudizando disputas entre caciques, e entre esses e os zapatistas. Ou seja, no final, Acteal teria sido simplesmente resultado da exacerbação de “conflitos intra-comunitários”, levados até a última consequência. Desse modo, ignora-se que o massacre foi realizado com armas e munição do exército, que a polícia estadual estava justamente posicionada a 200 metros do local da chacina, e curiosamente não percebeu nada de estranho no local, e que os autores intelectuais do crime possuem ligação orgânica com o PRI, participando inclusive anteriormente em diversos níveis de governo. Nada mais cínico.
O Centro de Direito Humanos Fray Bartolomé de las Casas, tanto quanto outras respeitadas organizações de direitos humanos sediadas em Chiapas, documentou fartamente o episódio. E não podemos nos esquecer que a Comissão Civil Internacional pelos Direitos Humanos, que tem trabalhado pela promoção da justiça e contra a impunidade dos responsáveis de outros casos graves de violação de direitos humanos, como Atenco e Oaxaca, foi criada a partir do episódio de Acteal.
A situação é mais crítica ainda ao sabermos que alguns dos assassinos capturados e indiciados pelos homicídios foram absolvidos em julgamento e já gozam de liberdade. Mais uma amostra de que a derrota eleitoral do PRI em 2000, ao contrário das expectativas e das apostas de alguns setores políticos e intelectuais, não culminou com um movimento em direção a democratização do país. E em Chiapas aumenta a cada dia as denúncias de agressões e violações dos direitos humanos, contra zapatistas e outras organizações indígenas independentes, ainda que sob o governo de “esquerda” do PRD.
Assim, graças à estratégia de contra-insurgência do governo federal, atualmente estão dadas as condições para novas violências e para que Chiapas siga sendo, com o fortalecimento dos grupos paramilitares, um campo de batalha real, com mortos, desaparecidos e presos.
Longe de ser um conflito intercomunitário ou religioso, desenvolve-se um conflito político, em que o governo organiza, treina, arma e encobre grupos paramilitares para eliminar, fisicamente se for preciso, todos os que se organizam e defendem suas terras. Por isso, a luta de Acteal no México se une com as de Atenco, Oaxaca e dos zapatistas, assim como se une à dos Sem Terra, Sem Teto e às vítimas da agressão estatal no Brasil e a todas as violências perpetradas contra os Direitos Humanos em qualquer parte do mundo.
É por isso que relembrar a cada ano o luto por Acteal, como se vem fazendo há 12 anos no México e em várias partes do mundo, além de tornar audível e presente o grito por justiça pelas vítimas e seus familiares, buscando a reparação dos crimes com a punição de todos os responsáveis, inclusive os mandantes intelectuais, se constitui fundamentalmente em um posicionamento firme contra uma das modalidades mais desumanas e bestiais de aviltamento da condição humana, a chamada “guerra suja”, este procedimento em que o Estado quebra as próprias regras mais elementares do direito que ele diz representar, seja através de seus próprios agentes judiciais, policiais e militares, seja através da promoção e treinamento de grupos ilegais e ocultos, protegidos pelo aparato da legalidade, para operar os mecanismos mais bárbaros de controle social que estiver ao seu alcance para manter o que determinados grupos oligárquicos consideram a ordem e a normalidade (ou seja, seus privilégios).
Acteal, estamos e estaremos sempre presentes! Contra o capitalismo e pela humanidade!
Maiores informações: Centro de Derechos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas: http://www.frayba.org.mx/index.php (especialmente o documento, “La política genocida en el conflicto armado en Chiapas”).
E o artigo: http://desinformemonos.org/2009/12/los-paramilitares-liberados-vuelven-a-acteal/
Fotos: Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas