Mais uma vez se observa a capacidade do capital para mobilizar os trabalhadores e de estes demonstrarem vezes sem conta os “tradicionais” valores de solidariedade, autogestão, democracia direta e pura resistência de classe. Por Sheila Cohen

Há 30 anos, o «Inverno de Descontentamento»
Há 30 anos, o «Inverno de Descontentamento»

Os governantes costumam ter mais medo das implicações políticas das ações dos trabalhadores do que os próprios trabalhadores têm consciência dessas implicações. Citando um exemplo extremo, quando a polícia entrou em greve em 1919, Lloyd George [1] disse que “o país estava mais perto do bolchevismo nesse dia do que em qualquer outra altura até então”. Quantos dos bobbies em Whitehall [2] teriam tido esta mesma perspectiva sobre os acontecimentos? Portanto, e voltando à realidade, quando o Financial Times mais uma vez usa o velho e estafado título “Inverno de Descontentamento” [3], talvez devêssemos levá-lo a sério.

De facto, a manchete era “Insatisfação dos sindicatos deverá aumentar neste Inverno” (26 de Outubro, página 2), mas as implicações eram óbvias; a frequência das greves tinha aumentado o suficiente para atrair as atenções, apesar da conclusão realista do FT de que ”[…] mesmo que a greve dos correios continue, a soma dos dias de greve deste ano deverá ficar abaixo dos níveis dos anos 80 e de anos anteriores.”

Como sabemos, as greves dos correios não vão, pelo menos por agora, continuar – algo que despertou a ira de muitos destes trabalhadores. Mas o FT também inclui nesta lista a greve da tripulação de bordo da British Airways, dos maquinistas da FirstGroup, dos trabalhadores de aeroportos da Swissport e de empregados do metro de Londres. Apesar dos trabalhadores da recolha de lixo e de limpeza de ruas de Leeds (que já vão em 10 semanas de greve) também estarem incluídos nesta lista, o FT nota que, na sua maioria, os grupos agora em disputa “são do sector das comunicações e transportes.” Isto, e a ação em Leeds, mina a dicotomia “fábricas versus serviços” que se foca no declínio do teoricamente mais poderoso setor fabril – apesar dos trabalhadores fabris terem tido um papel importante em três das maiores greves no início deste ano (Visteon, Vestas e construção civil).

Estaremos então a assistir a um renascimento neste tipo de lutas? Não parece provável. Mas se olharmos para o que se passava há exatamente um século, i.e. durante o fim de 1909 e o começo de 1910, a situação estava a aquecer na Grã-Bretanha depois dum longo período de fraqueza e perda de membros no movimento sindical muito semelhante aos nossos problemas actuais. Um relato diz-nos que “A adesão aos sindicatos cresceu muito lentamente durante as décadas de 1890 e 1900, e havia uma forte redução das vitórias dos trabalhadores durante as greves […] A partir da década de 1890 apareceu uma forte tendência entre […] os sindicatos para aceitar acordos colectivos institucionais com os patrões […] e para se opor a acções directas mais militantes […]”.

Soa familiar? Mas vejam o que aconteceu a seguir: “Com a melhoria da economia depois da grave recessão de 1908-9 os trabalhadores cada vez mais agiram independentemente dos sindicatos […]”. E depois, claro, veio a explosão de militância que foi posteriormente chamada de a “Grande Agitação” entre 1910 e 1914. Ninguém está a dizer que a presente recessão está perto do seu fim, mas mesmo assim muitas das questões que puseram os trabalhadores a mexer-se no período anterior à Grande Agitação eram muito semelhantes àquelas que confrontam os trabalhadores hoje em dia – intensificação do trabalho, reduções ou congelamentos nos salários e, em geral, uma política patronal próxima da agressão sádica.

Então, numa manifestação muitas vezes detestada pela esquerda intelectual, os trabalhadores foram forçados a agir pelas acções dos patrões, em vez de formarem qualquer tipo de organização “política” de resistência. A greve dos correios que agora foi adiada é um exemplo disto. Confrontados com uma política patronal de salários baixos ou congelados, carga laboral literalmente mais pesada, ruptura unilateral de acordos e substancial intimidação e coacção, os trabalhadores dos correios em algumas áreas adiantaram-se à greve planeada com uma série de acções de guerrilha nascidas da fúria e do desespero perante as acções do patronato. Como um representante disse, “Está em marcha uma guerra […] Estamos em guerra com o Royal Mail [4].”

Piquete de grevistas dos correios
Piquete de grevistas dos correios

Mas não são apenas os trabalhadores dos correios. Na altura em que escrevo isto, novos exemplos de conflito nos locais de trabalho aparecem diariamente. A greve de nove semanas dos empregados de recolha do lixo em Leeds sobre a questão do “single status” [5] foi mesmo agora espelhada pelos seus colegas de profissão em Brighton, quando souberam que poderia haver cortes de até £8.000 por trabalhador segundo a lógica lunática de paridade salarial. O secretário do seu ramo comentou, “Nunca antes tinha visto um grupo de trabalhadores tão forte e determinado.” Trabalhadores da Fujitsu – profissionais de altas tecnologias que não se imagina a protestarem através de greves – vão abandonar os seus postos de trabalho esta semana (12, 13 e 16 de Novembro) depois dum voto unânime para entrarem em greve quando a empresa anunciou um congelamento de salários, 1.200 despedimentos e o encerramento duma pensão de reforma para os novos trabalhadores. Um camarada do NUJ [6] enviou-nos um email sobre “uma greve que não deves ter ouvido falar” – trabalhadores num enorme armazém da Superdrug, perto da agora defunta mina de carvão de Frickley, no Yorkshire ocidental, entraram em greve a 4 de Novembro contra a imposição por parte da empresa de mudanças drásticas nas condições salariais e de trabalho, incluindo a abolição de pagamento de turnos, mudanças nos turnos sem aviso prévio, redução das pensões de reforma e redução da compensação por dias de trabalho perdidos devido a doença. Também do NUJ vem a notícia de uma vaga de disputas na área de Sheffield, assinalada por um cartoon no jornal regional que diz “Parece que estamos a caminho de um Inverno de Descontentamento este ano!” Os bonecos do cartoon estão rodeados de bolas de neve onde está inscrita a palavra “Greve”.

O Evening Standard de 2 de Novembro noticiou a disputa na British Airways como uma “revolta da middle England” [7], na qual os trabalhadores numa assembleia geral falaram de “fúria e frustração” perante a imposição pelos patrões de novos contratos, além de milhares de despedimentos e de um congelamento de salários. O jornal cita um trabalhador que disse que “Nós não somos militantes sindicais à procura de um conflito […]”. Nas notícias dessa mesma noite, trabalhadores das linhas aéreas reclamaram que a companhia “simplesmente não ouvia” – “Eles impõe-nos estas medidas e nós aceitamo-las e eles continuam a impor cada vez mais […]”. “Esta é uma luta fundamental.” Uma semana mais tarde, uma greve dos condutores de autocarros de Londres oriental sobre um congelamento de salários também estava nas notícias – a cobertura dos media não foi simpática (como habitualmente), mas os trabalhadores receberam 30 segundos de tempo de antena onde disseram que, tal como muitos antes deles: “Chegámos a um ponto onde temos que tomar uma posição – basta.” E, na altura em que este artigo está a ser escrito, professores numa escola em Londres oriental entraram em greve contra uma proposta de transformá-la num Trust [8], enquanto os maquinistas da First Capital Connect que se recusaram a fazer horas extraordinárias aos domingos com salário reduzido expandiram a sua greve para os dias de semana também.

“A empresa era a melhor organizadora do sindicato”

O que podemos concluir disto tudo? A conclusão principal que podemos tirar desta vaga de conflitos é que, apesar de nada acerca dela ser inovador, mais uma vez se demonstra a capacidade do capital de mobilizar os trabalhadores e destes demonstrarem vezes sem conta os “tradicionais” valores de solidariedade, autogestão, democracia direta e pura resistência de classe. Por outras palavras, representa – mais uma vez – uma reiteração das verdades que nós, socialistas, consideramos auto-evidentes: que sim, que existem tais coisas como classe, luta de classes e potencial da classe operária para desafiar e, em alguns casos, seriamente perturbar a aparente omnipotência dos nossos governantes.

Tudo dito? Não, não está tudo dito. Se “nós” – i.e. a esquerda em alguma forma – continuar a fazer o que sempre faz, ou seja, se cada grupo vender os seus jornais e brandir as suas bandeiras nas linhas de piquete, as coisas não mudarão. Como um representante dos trabalhadores dos correios me disse recentemente, quando lhe perguntei a sua opinião sobre a acção política: “Em 2007 tivemos aqui todos os grupinhos a vender os seus jornais. Dois anos depois temos os mesmos grupos ainda a vender os seus jornais.” Ele não estava impressionado pela positiva.

Piquete na greve da British Airways
Piquete na greve da British Airways

Será que existe outro caminho? Sim, como foi demonstrado por exemplos históricos quer sejam bons, maus ou apenas frustrantes. A Grande Agitação, como os leitores devem saber, foi seguida pelo excelente desempenho do Movimento dos Delegados Sindicais [shop-stewards] da primeira guerra mundial, que demonstrou alguns dos melhores exemplos de solidariedade e força transversal da classe operária jamais vista sob o capitalismo. Porque é que este movimento não levou a uma revolução britânica, apesar da classe governante estar cheia de medo desta ameaça? A falta de unidade foi uma das razões, uma confiança exagerada nas lideranças dos sindicatos, outra. Saltemos rapidamente para o último grande confronto na Grã-Bretanha entre 1968 e 1974. Houve duas tentativas relativamente “não-sectárias” de consolidar e unir a classe operária: o Comité para Defesa dos Sindicatos (LCDTU), gerido pelo Partido Comunista, e o movimento de bases sindicais organizado pelos International Socialists. Ambos se desintegraram ou, pelo menos, foram-se desintegrando com o tempo – o LCDTU porque o PC decidiu que andar atrás e seduzir os membros do parlamento que pertenciam à esquerda e os líderes sindicais era mais importante que mobilizar os operários, e o movimento de bases organizado pelos International Socialists porque a sua liderança decidiu transformar o “grupo” num partido [9].

Estas análises simplistas serão provavelmente contestadas, apesar de acreditarmos que existem provas que as confirmam. Mas, e agora? Isto tudo é apenas uma “mini-revolta”, mas as mesmas verdades ainda se aplicam. Precisamos desesperadamente neste país de uma rede não-sectária que possa pôr em contacto os activistas sem obrigá-los a juntarem-se a este ou àquele grupo ou partido – uma rede que simplesmente potencie a força dos trabalhadores no local de trabalho e que reforce o nível actual de fúria e revolta entre os grevistas e ativistas, em vez de brandir manifestos e apregoar programas de partido. A classe operária tem um enorme potencial para construir o socialismo com base na sua própria experiência. Esse potencial foi muito raramente reconhecido ou bem-vindo pela esquerda. Os leninistas que existem entre nós podem-se reconfortar com o facto de o próprio Lenin ter sido um dos mais fortes apoiantes da ideia de que os trabalhadores têm muito a nos ensinar.

Que podemos fazer com isto tudo? Bem, podemos considerar-nos com sorte – existe uma organização que tem potencialmente essa inclinação na Grã-Bretanha contemporânea. Chama-se Rede Nacional de Delegados Sindicais (NSSN). A NSSN podia começar este trabalho agora – o trabalho de construir uma rede que atravesse transversalmente todos os activistas. Afinal de contas, existem fundações sobre as quais construir esta rede. A mais recente pesquisa demonstra que o número de delegados sindicais, apesar de muito reduzido, ainda anda a volta de 200.000. Mesmo que apenas um por cento destes ativistas se reúnam para construir uma rede com base nos simples princípios de organização transversal e de democracia no local de trabalho, seria mais do que apenas um bom começo – o potencial poderia ser enorme. Desta vez, tentemos estar preparados para a próxima vaga de revolta com uma liderança enraizada e construída de dentro do movimento sindicalista, em vez de trazida do exterior, encarnada numa rede da classe operária baseada em princípios explícitos de independência relativamente ao patronato e de democracia direta. Esta rede seria mais do que capaz de combater as distracções e confusões que outrora minaram o potencial das vagas de conflito geradas pela classe operária.

Notas

[1] Primeiro-ministro de 1916 a 1922.

[2] Bobby, a abreviatura de Robert, é o nome coloquial dos polícias ingleses, derivado do facto de a polícia ter sido criada por Robert Peel. Whitehall é a rua em Londres onde se situam quase todos os ministérios e que vai dar à praça do Parlamento. A expressão Bobbies em Whitehall é uma referência à manifestação ali organizada pela polícia aquando da sua greve de Agosto de 1919.

[3]Winter of discontent”, “Inverno de Descontentamento”, foi como os grandes órgãos de comunicação chamaram à vaga de greves de 1978-1979 no Reino Unido. A expressão é inspirada pelo início da peça de Shakespeare, Ricardo III.

[4] Serviço postal nacional do Reino Unido.

[5] Acordo nacional de 1997 actualizado em 2004, que harmonizaria as condições laborais propostas pelas autoridades locais.

[6] Sindicato Nacional dos Jornalistas.

[7] Termo usado pelos media para referir o suposto ponto de vista da maioria dos ingleses por oposição ao ponto de vista das minorias de todos os tipos (os muito ricos ou pobres, minorias étnicas, homossexuais, pessoas politicamente activas, intelectuais, etc.). Este termo é cada vez usado mais com um ponto de vista de direita, acompanhando assim os jornais e media de mais popularidade no país.

[8] A palavra trust exprime uma figura jurídica anglo-saxónica sem correspondência exacta na tradição jurídica europeia continental. Estruturalmente, corresponde à afectação, por acto público ou privado, de um património a uma finalidade designada, cabendo o encargo da respectiva administração em função daquele fim a um administrador que é o seu titular. A utilização deste instrumento no sector público serve a dissimulação da privatização – a instituição mantém o carácter público mas é gerida consoante os critérios de uma empresa privada.

[9] O grupo trotskista International Socialists deu depois origem ao Socialist Workers Party.

Este artigo foi originariamente publicado em The Commune. Tradução: um anarquista de Londres.

1 COMENTÁRIO

  1. Olá,

    Gostaria de destacar o trecho final do artigo – para comentar logo em seguida:

    “Chama-se Rede Nacional de Delegados Sindicais (NSSN). A NSSN podia começar este trabalho agora – o trabalho de construir uma rede que atravesse transversalmente todos os activistas. Afinal de contas, existem fundações sobre as quais construir esta rede. A mais recente pesquisa demonstra que o número de delegados sindicais, apesar de muito reduzido, ainda anda a volta de 200.000. Mesmo que apenas um por cento destes ativistas se reúnam para construir uma rede com base nos simples princípios de organização transversal e de democracia no local de trabalho, seria mais do que apenas um bom começo – o potencial poderia ser enorme.”

    Acho que uma das questões mais interessantes levantadas nessa parte destacada – e também por todo o artigo – é a importância da articulação real entre as lutas nos seus diferentes locais de trabalho e vivência. Isso pode parecer uma frivolidade – algo óbvio, enfim.

    Mas, pensemos juntos: muito se fala da importância da “integração e união dos movimentos sociais e sindicais”. E de sua “articulação em rede”. Até aí tudo bem, afinal é isso mesmo.

    No entanto, muitas vezes é deixado de lado o entendimento de que essa articulação e esses redes que se constituem precisam estar apoiadas e acionadas pela democracia direta das pessoas que participam dessas lutas. Não adianta serem resoluções tomadas por direções e organizações de cúpula.

    Claro que, não podemos ignorar, essa compreensão e estratégia de intervenção é mais difícil de ser levanta a frente. Mas, assim entendo, ela pode contribuir melhor para o avanço das lutas sociais e para a constituição de novas relações de produção e vivência.

    Abraços.

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