Por Marwan Abado

Marwan Abado é um cantautor nascido em Beirute (Líbano) em 1967 de uma família de refugiados palestinianos, e exilado em Viena (Áustria) desde 1985. A convite do Tribunal-Iraque, esteve em Portugal para quatro concertos em Abril de há dois anos, juntamente com um quarteto de músicos iraquianos exilados na Bélgica e na Holanda. Canta as suas canções feitas sobre textos próprios e de grandes poetas da cultura árabe. Acompanha-se com o ud, o alaúde árabe, de que é um virtuoso e que aprendeu a tocar com grandes mestres da escola de Bagdade. Apesar de uma história pessoal extremamente sofrida, apesar de a família que lhe resta serem apenas uma irmã e uns tios que vivem num dos piores sítios do mundo (a fronteira entre o Líbano e o Estado de Israel), Marwan apresenta nos seus recitais uma surpreendente bonomia e um humor contagiante. Escreveu, em árabe, esta pequena crónica para um jornal de esquerda da sua cidade natal. Pedimos-lhe que no-la facultasse em inglês, para a traduzirmos e darmos a conhecer aos leitores do Passa Palavra. Passa Palavra

Em 2004 já tinha tido o privilégio de tocar em Portugal. E ficara com muito boa impressão desse país. A impressão de que Portugal é diferente dos outros países da Europa. As minhas recordações de Portugal são a simpatia das pessoas, a beleza da sua capital e a impressionante praça principal no centro da cidade. As pequenas lojas de artesanato na cidade tinham um sabor especial, diferentes das lojas de “souvenirs” que há pelo mundo fora. O artesanato é uma das minhas fraquezas, da qual não me quero curar, por isso me entreguei ao prazer de explorar essas pequenas lojas com tudo o que tinham para oferecer.

palestinabr1“Boa noite, eu sou um músico, como você, e faço parte de um grupo de militantes em Portugal. Gostaria de o convidar para uma digressão de solidariedade com a Palestina e o Iraque, em Portugal.” Foram as suas palavras ao telefone. Foi uma curta conversa, que logo terminou pois decidimos prosseguir comunicando por email.

Claro que eu queria participar, mas como não entendia muito bem o inglês do meu interlocutor, fiquei com dúvidas sobre o que ele quereria dizer com o “grupo de militantes”! Será ele um membro do “exército vermelho” ou de um grupo esquerdista que poderia libertar a Europa através do Iraque e da Palestina? E se um tal grupo existisse de facto, não deveria ser um grupo clandestino? Porquê, então, essa pessoa me falava tão abertamente acerca do grupo e da sua actividade? Ainda estava buscando respostas para estas perguntas quando o seu email chegou. Nele, era apresentado em traços gerais o plano da digressão, os [quatro] concertos e os músicos participantes. Tenho de confessar que desconhecia a maior parte dos nomes, mas com a ajuda da internet consegui saber mais acerca dos músicos. Tratava-se, afinal, de um conjunto de artistas de primeira linha das canções portuguesas. Fiquei surpreendido pois quem me telefonou era um deles.

Fiquei impressionado com o decoro e a simplicidade da pessoa que me contactou e com a visão que presidiu a uma iniciativa cultural deste tipo. Uma tomada de posição política através da cultura! Uma clara atitude quanto à situação do Iraque e da Palestina através da música, e o que mais me impressionou foi que o programa não incluía quaisquer discursos políticos, como quase sempre acontece. Só um press-release de todos os participantes exprimia a sua solidariedade com os dois países.

No email também me era dito que ele próprio me iria receber ao aeroporto. Cheguei ao aeroporto e ele lá estava. O meu anfitrião era uma pessoa simples, vestida normalmente de camisa e sapatos desportivos. O seu caloroso acolhimento fez-me duvidar que se tratasse de um originário do continente europeu.

Afastei do pensamento a questão do “grupo de militantes”, mas a minha curiosidade levou-me a questioná-lo sobre isso no caminho para o hotel. Acontece que o grupo a que se referia fazia parte desse movimento que dera origem à Revolução dos Cravos em Abril de 1974, abrindo o caminho para a democracia em Portugal.

O meu respeito e a profunda estima pelo meu anfitrião foram crescendo com a conversa a caminho do hotel e, depois, durante os dias de digressão. Ele era não só um grande músico, mas sobretudo uma pessoa comprometida na luta por um melhor mundo possível, um mundo baseado no respeito mútuo e na solidariedade entre todas as pessoas e povos.

Chegámos ao hotel. Decidimos encontrar-nos no dia seguinte para almoçar com os seus amigos, antes de partirmos para Coimbra onde teríamos o primeiro concerto. No dia seguinte, o meu anfitrião e os seus amigos, acompanhados pelas esposas, vieram almoçar como combinado. Durante o almoço, fiquei sentado ao lado de um oficial do exército, Otelo Saraiva de Carvalho, que se mostrou interessado em saber mais sobre os sofrimentos do meu povo na Palestina. Depois de terminarmos as deliciosas comidas e bebidas portuguesas, o simpático oficial levantou-se e despediu-se dizendo: obrigado. Nesse momento senti-me como um representante legítimo do povo palestiniano. Levantei-me e retribuí o agradecimento. Ele discordou e disse: “Nós é que lhe agradecemos, pela vossa resistência”. Ao compreender o sentido destas palavras, senti que tinha sorte por me representar apenas a mim próprio.

Nesse dia começava uma digressão extraordinária. Devo dizer que o mais difícil é conseguir recordar todos os nomes das amáveis pessoas que conheci. Os portugueses costumam ter nomes muito compridos. Fiquei com a impressão de que têm no mínimo três nomes; provavelmente os dois primeiros são o nome próprio, sendo o último o nome de família. Uma excepção quanto a isso: o excepcional músico Jorge Palma. Durante o nosso concerto em Braga ele perguntou-me o que poderíamos tocar juntos. Respondi-lhe que só sei tocar na tonalidade de Sol Maior! Ele riu-se ao entender a minha piada. A nossa intervenção improvisada no palco, no fim do concerto, foi uma melodia de solidariedade entre pessoas de horizontes muito diversos.

O encontro mais impressionante, durante estes dias de concertos, foi conhecer pessoalmente Paulo de Carvalho e ouvir a sua canção “E depois do adeus”. Uma canção que foi usada como código secreto na rádio no arranque da revolução. A canção foi uma confirmação para o movimento militar – a ordem de prontidão para os militares insurgentes. Esse facto, o cantor não o conhecia na altura. Hoje, mais de três décadas depois, tanto a canção como o cantor são ícones em Portugal.

Foi certamente uma mostra de sabedoria dos oficiais responsáveis pela revolução o terem decidido que o código para uma revolução não-violenta seria uma canção. Essa canção, que duas semanas antes ficara em 14º lugar no Festival da Canção da Eurovisão, ficou depois no coração de todos os portugueses, a seguir à revolução.

Depois desta digressão em Abril de 2008, as minhas recordações de Portugal ficaram enriquecidas. Possa a música contribuir para um mundo melhor – em Portugal, na Palestina, no Iraque, em toda a parte.

Marwan Abado
Viena, Abril de 2010

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