Por Paul Hampton

O derrube do Xá foi uma festa para os oprimidos. Mulheres, homossexuais mulheres e homens e minorias nacionais participaram na revolução, acreditando que um novo regime traria a democracia e a liberdade.

Desde o começo, o governo de Khomeini revelou-se ferozmente oposto à liberdade. No primeiro mês do seu regime, os ataques às minorias nacionais sedentas de autodeterminação começaram. Os Komitehs locais começaram a emitir bilhetes [carteiras] de identidade e foram instituídos tribunais da sharia [lei islâmica]. Em Março de 1979, “12 pessoas foram julgadas sumariamente e executadas por alegados crimes sexuais, tais como homossexualidade e prostituição” (Nima).

Mas foram sobretudo a opressão das mulheres e a liquidação do emergente movimento das mulheres que revelaram o carácter reaccionário do regime de Khomeini.

As mulheres na revolução

As mulheres participaram no derrube do Xá, em manifestações, greves e outros protestos. Como descreveu Farah Azari: “Havia um grande número [de mulheres] a participar na insurreição geral [9-11 de Fevereiro de 1979], seja como forças de rectaguarda, aprovisionando alimentos e medicamentos, seja mais directamente nas barricadas de rua.” (“The Post-Revolutionary Women’s Movement in Iran”, in Azari, Women of Iran: the conflict with fundamentalist Islam)

pp_iraosublev1979d1Todavia um dos primeiros actos do governo provisório foi tomar conta das estações de rádio e de televisão. Em consequência disso, “as mulheres que nelas trabalhavam ou foram despedidas ou forçadas e vestirem-se à maneira islâmica. Todos os programas de arte e de entretenimento foram cancelados. As cantoras foram retiradas da programação e a música em geral foi drasticamente limitada” (Azari).

Em 26 de Fevereiro, a Lei da Protecção da Família, do tempo do Xá, que dava alguns direitos às mulheres no casamento e no divórcio, foi suspensa por ordem do gabinete de Khomeini. Em 3 de Março foi posto termo à nomeação de juízas e três dias depois as mulheres alistadas no exército foram dispensadas. Em 7 de Março, discursando em Qom, Khomeini disse que as mulheres têm de usar o véu no trabalho.

As mulheres opõem-se ao uso obrigatório do véu

Com a suspensão da Lei da Protecção da Família e os comentários de Khomeini acerca do véu, as mulheres galvanizaram-se e manifestaram-se aos milhares no Dia Internacional da Mulher, 8 de Março, e nos dias seguintes. Azari escreveu o mais detalhado relato destes protestos. Diz ela: “Na manhã do dia 8 de Março, cerca de 15.000 mulheres tinham-se juntado no pequeno edifício da Faculdade Técnica da Universidade de Teerão. Eram em número muito superior ao que fora previsto pelos organizadores e ainda mais surpreendente porque nevava com força nesse dia. Entre elas havia donas de casa, trabalhadoras, professoras, empregadas de escritório e estudantes, mas em especial havia muitas estudantes universitárias cujos professores haviam cancelado as aulas para irem manifestar com elas. A obstrução dos elementos reaccionários começou de imediato quando o sistema sonoro do edifício foi desligado, impedindo assim a multidão das que não conseguiam entrar no auditório de ouvirem cá fora o que lá se estava a passar. A raiva e o descontentamento foram crescendo, as que estavam dentro decidiram juntar-se às que estavam fora e arrancaram com um cortejo de protesto em direcção ao gabinete do primeiro-ministro.

“Agora nas ruas, outras mulheres vieram juntar-se ao cortejo e o número de participantes chegou perto dos 30.000. Mais tarde o cortejo dividiu-se quando dois grupos mais pequenos decidiram continuar em direcção ao Ministério da Justiça – onde se tinha realizado uma ocupação de mulheres juristas – e à casa do aiatolá Talaghani… O primeiro grupo fez um comício em frente ao ministério, expondo as suas reivindicações e manifestando apoio às mulheres juristas. Identicamente, o segundo grupo manifestou-se pedindo o apoio de Talaghani para as reivindicações das mulheres.” (1983, pp. 194-195)

Teerão, 1978: jovens mulheres manifestam-se contra a ameaça de imposição do uso do véu islâmico.
Teerão, 1978: jovens mulheres manifestam-se contra a ameaça de imposição do uso do véu islâmico.

“Alguns dos slogans das manifestantes eram: ‘Liberdade é a nossa cultura, ficar em casa é a nossa vergonha’, ‘Liberdade e igualdade são nossos direitos irrecusáveis’, ‘Na aurora da liberdade, já nos falta liberdade’, ‘O Dia Internacional da Mulher não é ocidental nem oriental, é internacional’ e ‘A liberdade não suporta regras e regulamentos’” (Azar Tabari, “Islam and the Struggle for Emancipation of Iranian Women’, in Azar Tabari e Nahid Yegaheh eds.).

Azari acrescentou que “também noutras cidades foram organizadas conferências e concentrações no dia 8 de Março. Segundo [um] relato, 3.000 mulheres participaram numa concentração em Shiraz, onde declararam a sua solidariedade com todas as mulheres do mundo”.

O manifesto das mulheres

Nesse mesmo dia as mulheres também se manifestaram na Televisão Nacional, protestando contra o total silenciamento noticioso das suas actividades. Mas as autoridades ignoraram esses protestos. Como conta Azari, “as estações de rádio e televisão não os tomaram em consideração por os considerarem como agitação feita por mulheres promíscuas contrárias à hijab [o véu] e por agentes do regime deposto. Descontentes, muitas delas reagiram voltando às ruas durante três dias em manifestações contínuas.”

Bazargan respondeu anunciando que o uso do véu não era obrigatório e que os comentários de Khomeini tinham sido mal compreendidos.

Em 11 de Março, apesar de se terem retirado algumas organizações, concentraram-se 20.000 mulheres na Universidade de Teerão. Saíram em cortejo para a Praça Azadi onde se lhes juntaram outras mulheres dos escritórios, dos hospitais e das escolas. Mas foram atacadas pelos islamistas.

AS REIVINDICAÇÕES DAS MULHERES
Num grande comício realizado no Ministério da Justiça em 10 de Março foi adoptada a seguinte resolução:
“Considerando que os seres humanos são todos livres e que o dom da liberdade pertence a todos por igual independentemente do sexo, da cor da pele, da raça, da língua e das crenças;
Considerando que as mulheres constituem metade da população do Irão e que não se pode negar a contribuição dessa metade para a educação das gerações futuras, assim como para a vida social, cultural, política e económica;
Considerando que a participação desinteressada das mulheres iranianas na luta contra o imperialismo e a ditadura foi um contributo importante para a Revolução Iraniana e que o seu papel na vitória da Revolução é admitido por todos os estratos que fizeram a Revolução;
Considerando que, durante os dias difíceis e críticos deste país, as mulheres participaram em lutas e sacrifícios que foram aprovados pelo líder da revolução; e que as mensagens, entrevistas e declarações emitidas pelo líder todas elas atestam a promessa de liberdade, de igualdade e do gozo de todos os direitos políticos e sociais para as mulheres, e que o líder indicou explicitamente que não tem a intenção de recuar para as condições de há 1.400 anos;
Nós, mulheres iranianas, declaramos agora as nossas reivindicações na forma desta resolução:
1) Nós mulheres que, ombro a ombro com os homens, cumprimos os nossos deveres sociais para com o país e educamos a futura geração em casa, somos plenamente competentes e perfeitamente capazes de preservar o nosso carácter e a nossa honra. Acreditamos firmemente na preservação de um carácter feminino mas que a honra de uma mulher não se espelha numa específica forma de se vestir, e que o vestuário usado pelas mulheres deve ser um assunto delas próprias, levando em conta as exigências dos costumes e da sociedade;
2) Deve-nos ser reconhecidos direitos cívicos iguais aos dos homens e deve ser abolida qualquer discriminação nas leis, em especial nas leis da família;
3) Os direitos políticos, sociais e económicos das mulheres devem ser garantidos sem discriminação;
4) Deve ser garantida a total segurança das mulheres para usufruírem dos seus direitos e das suas liberdades legais;
5) O pleno gozo das liberdades fundamentais, da liberdade de escrita, de expressão oral, de crenças, de emprego e de associação, tem de ser garantido para todos os homens e mulheres;
6) Todas as desigualdades existentes nas leis em vigor no país, incluindo as que dizem respeito ao emprego e ao trabalho, devem ser abolidas;
7) As actuais posições ocupacionais das mulheres devem ser salvaguardadas;
8) Embora aprovemos a decisão do governo de manter as Leis da Protecção da Família, exigimos que as inadequações da lei actual sejam removidas em favor da garantia dos direitos das mulheres.
Pedimos ao primeiro-ministro do governo provisório Bazargan que torne pública a sua opinião sobre as nossas reivindicações.” (Tabari e Yeganeh)

Azari descreve-o assim: “Durante esses dias, os fundamentalistas, os zelotas islâmicos e alguns pobres da cidade deambulavam pelas ruas em bandos de energúmenos, atacando e acossando as mulheres manifestantes por todos os meios. Iam dos insultos sexuais e das exibições indecentes aos espancamentos, esfaqueamentos e apedrejamentos. Usavam carrinhas e camionetas para obstruir as marchas em vários pontos.” Resultado, “os organizadores apelaram à desmobilização porque o número de feridos crescia e temia-se que este conflito fosse manipulado pelos contra-revolucionários para desestabilizar o novo regime”. (Azari)

O surgimento do movimento das mulheres

Apesar de tudo as manifestações tinham obrigado o regime a recuar – o que resultou na proliferação de organizações de mulheres, muitas vezes ramos de grupos da esquerda.

Por exemplo, o grupo Emancipação da Mulher, que publicava um jornal mensal com o mesmo nome e fazia parte da Organização Comunista Unitária, foi “uma das primeiras organizações marxistas a denunciar o Estado islâmico depois da revolução” (Nahid Yeganeh, “Women’s Struggles in the Islamic Republic of Iran”, in Tabari and Yeganeh). Outra organização, a União Nacional das Mulheres, criada em Março de 1979 e parte dos Fadaiyin, era mais discreta na denúncia do governo. Publicou seis números da sua publicação Igualdade e um jornal mensal Mulheres em luta. Entre as outras organizações, havia a pró-chinesa Sociedade para o Despertar das Mulheres, o Comité para a Defesa dos Direitos das Mulheres, da iniciativa do partido trotskista HKS e vários grupos locais de mulheres no seio das minorias nacionais. Também se tinham criado organizações de mulheres islamistas e favoráveis ao governo (Tabari e Yeganeh). Todavia o registo da actuação da esquerda nestas mobilizações não é grande coisa. Como diz Farah Azari: “Durante as manifestações de mulheres em Março de 1979, quando foi levantada a questão do véu, os Fadaiyin, os Mujahedin e a maior parte dos pequenos grupos marxistas não apoiaram estas manifestações. Os Mujahedin e o Partido Tudeh [comunista] chegaram mesmo a criticá-las por estarem a fazer o jogo dos imperialistas e a pôr a revolução em perigo.”

A reacção islamista

Em 21 de Maio de 1979, o Ministério da Educação proibiu as escolas mistas e ordenou que todas as turmas fossem segregadas. Em 3 de Junho proibiu as mulheres casadas de frequentarem aulas no ensino superior. Em 8 de Julho de 1979, alguns estabelecimentos balneares do Mar Cáspio começaram a fazer segregação sexual – as mulheres eram chicoteadas em público se apanhadas a nadar no “sector dos homens”. Em 12 de Julho, três mulheres foram executadas pelos crimes de prostituição e corrupção.

Em 2 de Outubro foi aprovada nova legislação que dava o direito ao divórcio exclusivamente ao marido; restaurava o “direito” do marido de não permitir que a mulher tivesse um emprego; baixava a idade mínima para uma mulher poder casar dos 18 para os 13 anos; e permitia aos homens terem até quatro esposas permanentes e um número ilimitado de esposas temporárias (Tabari e Yeganeh).

Também se recorreu ao terror. Nima refere uma violação pelos Guardas Revolucionários como exemplo do terror usado para fustigar as organizações de mulheres: “Uma família recebeu recentemente a notícia da execução da sua filha. Os Pasdaran devolveram os seus pertences e deram 4 euros [R$ 8,5] aos pais, explicando que ‘ela era virgem, e como não se executam virgens no Islão, um dos Pasdars casou com ela temporariamente na noite anterior à execução e esse dinheiro era o preço do casamento temporário’”.

Em 3 de Fevereiro de 1980 o porte de “uniformes islâmicos” tornou-se obrigatório para as enfermeiras e outras empregadas do Ministério da Saúde. Em Maio, em Urumieh, mulheres que não tinham o véu foram espancadas e esfaqueadas e no bazar de Bushehr recusaram-se a atender mulheres sem véu. Em 10 de Junho, as mulheres do Ministério da Justiça receberam a ordem de vir para o trabalho com “roupas simples e islâmicas” (Tabari e Yeganeh). Em 28 de Junho, Khomeini emitiu um decreto segundo o qual todas as mulheres a trabalhar nos serviços do governo deveriam usar o véu como parte da “revolução administrativa”. Em Julho, foi exigido às mulheres o uso do véu durante o Ramadão. Em Julho de 1980 foram abolidas todas as escolas mistas. Com a educação segregada, as professoras eram nomeadas para escolas femininas e os professores para escolas masculinas. Todas as estudantes receberam a ordem para usarem uniformes especiais do Ministério da Educação – as professoras receberam as instruções no mês seguinte. Ainda em Julho, a empresa de transportes colectivos de Teerão anunciou que as primeiras três filas de assentos nos autocarros [ônibus] seriam destinadas às passageiras.

Em 21 de Abril de 1981 o aniversário de Fátima [filha de Maomé] foi instituído como Dia da Mulher no Irão. Finalmente, em Julho de 1981, os Majlis (parlamento) ratificaram a Lei da Retaliação que, entre outras coisas, previa o apedrejamento até à morte para os crimes de adultério e chicotadas públicas ou amputação de membros como retaliação. (Tabari e Yeganeh).

As mulheres não desarmam

Apesar destes ataques, os grupos de mulheres continuaram a lutar e a organizar-se. Azari escreveu: “Outros importantes grupos de mulheres foram criados no Banco Melli, o maior banco iraniano, no Ministério do Trabalho, no Serviço de Telecomunicações, no Organismo do Planeamento e muitos outros ministérios e serviços públicos, e ainda em algumas fábricas com muitas mulheres. As reivindicações destes grupos andavam essencialmente em torno da prestação de serviços de cuidados infantis, da igualdade salarial e das regalias de maternidade. Em muitos casos os patrões eram forçados a facultar uma creche ou a aumentar uma já existente”. Em 9 de Junho de 1979, as mulheres juristas fizeram uma ocupação de cinco dias por terem sido excluídas das cerimónias de nomeação de novos juízes. Em Setembro de 1979 houve protestos de mulheres estudantes nas escolas de formação técnica cujos cursos haviam sido suspensos com a decisão de segregar as aulas.

Em 30 de Outubro de 1979 as mulheres manifestaram-se de novo contra as novas leis da família, apesar dos ataques dos Hezbollahi. Em 3 de Novembro as mulheres juristas organizaram uma ocupação no Ministério da Justiça, contra as novas leis. A Coligação Solidária das Mulheres deu-se a conhecer. Em 25 de Novembro de 1979, esta Coligação, que incluía grupos como a Emancipação das Mulheres e a Sociedade para o Despertar das Mulheres, organizou com êxito uma conferência de mulheres. A conferência condenou as medidas do governo contra os direitos das mulheres. Segundo Azari: “Encorajado pelo êxito da conferência, bem publicitada numa parte da imprensa, o comité não parou e começou a preparar a celebração do Dia Internacional da Mulher em Março de 1980. Realizou-se uma grande concentração num dos edifícios da Universidade de Teerão e foram lidas mensagens de solidariedade das esquerdas e de organizações progressistas, do Irão e do mundo. O comité então mudou de nome para Conselho de Solidariedade das Mulheres. Também se realizaram muitos comícios e concentrações noutras cidades importantes”.

Depois do decreto de Khomeini sobre o véu, de Junho de 1980, vários milhares de mulheres se manifestaram em frente dos serviços do presidente. Azari descreve a reacção: “As manifestantes defrontaram-se com gangues de Hezbollahi cruéis e armados de tacos que, além das formas habituais de agressões e maus tratos contra a oposição, se comprazeram a molestá-las sexualmente, por actos e por palavras.”

[Fim da quarta e última parte]

Versão original (em inglês) aqui. Tradução do Passa Palavra.

As quatro partes do artigo são:

(1) Como os trabalhadores derrubaram um ditador
(2) Como os trabalhadores foram esmagados
(3) O fracasso da esquerda
(4) Os islamistas contra as mulheres

2 COMENTÁRIOS

  1. Lembrei-me de um subcapítulo intitulado “Do amor livre ao reestabelecimento da família”, que fala da revolução Russa, no livro “Para uma Teoria do Modo de produção Comunista”, de João Bernardo. É, se não se destrói o modo de produção capitalista as opressões específicas vão ser utiliziadas por ele para a exploração e dominação social.

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