Por Paul Hampton

O Xá abandonou o Irão [Irã] em 16 de Janeiro de 1979. A multidão festejou o facto nas ruas de Teerão. O seu derradeiro primeiro-ministro, Bakhtiar, acabado de nomear em finais de 1978, durou menos de um mês. O sentimento de liberdade, deitadas fora as algemas de muitos anos de repressão, era tangível. Como disse um trabalhador da fábrica da Caterpillar: “A melhor coisa que a revolução nos deu foi a liberdade… Doravante, um homem pode falar e protestar; pode criticar; pode ler livros, pode respirar…” (Bayat). Khomeini havia já nomeado o Conselho Revolucionário Islâmico no exílio. Regressou ao Irão a 1 de Fevereiro de 1979, saudado por milhões no aeroporto. A 5 de Fevereiro designou Bazargan como primeiro-ministro provisório.

Estudantes universitários de Teerão derrubam a estátua do Xá, em Novembro de 1978.

A insurreição de 9 a 11 de Fevereiro de 1979 pôs fim ao governo de farsa de Bakhtiar. A 9 de Fevereiro os fedaiyin realizaram uma manifestação às claras para celebrar a sua primeira operação de guerrilha em 1971. A manifestação coincidiu com confrontações armadas com a Guarda Imperial. No dia seguinte, a base aérea militar de Teerão rebelou-se contra o governo, sendo por isso atacada pela Guarda Imperial do Xá. Os fedaiyin juntaram-se à defesa da força aérea. A 11 de Fevereiro a batalha ainda continuava, até que o comando supremo do exército deu ordem às tropas para regressarem aos quartéis e a Bazargan para formar governo.

A auto-organização dos trabalhadores

À medida que ia ruindo o velho Estado, os trabalhadores iam assumindo o controlo das funções sociais básicas – sendo o mais importante a implantação das shuras (conselhos) nas empresas. Estas shuras assumiram variadas formas – só em Teerão havia cerca de mil – e proliferaram nos primeiros meses de 1979 (CARI).

Escreve Maryam Poya: “Os comités de greve em todas as fábricas, instalações, escritórios, escolas, universidades e outros locais de trabalho reformularam-se e começaram a funcionar como shuras (conselhos): shuras de operários, shuras de estudantes, shuras de empregados de escritório. Nas aldeias, os camponeses instituíram as suas shuras de camponeses. Nas cidades, o poder transitou para organismos chamados Komitehs (comités). Os Komitehs eram sobretudo constituídos por apoiantes das organizações de guerrilha, mas também incluíam clero local e outros apoiantes fanáticos da ideia de uma República Islâmica. Nas minorias nacionais, o poder ficou nas mãos das suas shuras locais”.

AS MINORIAS NACIONAIS
Um pouco menos de metade do povo iraniano em 1979 era persa e falava persa [ou parse, ou parsi, ou farsi]. Oprimidas no regime do Xá, as minorias nacionais – curdos, azeris, árabes, baluches, qashquaias e turcomanos – participaram no movimento para derrubá-lo para avançarem com as suas exigências de autogoverno e autodeterminação.
No entanto, rapidamente o regime de Khomeini se virou contra estas minorias. Em 18-21 de Março, aldeias curdas de Sanandaj foram bombardeadas por exigirem autodeterminação nacional e por confiscarem terras dos latifundiários.
Em 26-29 de Março, a tropa matou a tiro camponeses turcomanos em Gonbadkavoos, também por confiscarem terras.
Em 26 de Julho eclodiram confrontos entre combatentes curdos e tropas do governo, em Marivan. Em meados de Agosto, combatentes curdos e tropas do governo travaram combates na zona de Paveh. As tropas do governo mataram 400 pessoas no ataque. Khomeini ordenou a mobilização geral para esmagar a rebelião curda. O Partido Democrático Curdo foi ilegalizado. Os combates continuaram em Saqaz e Sardasht. Os combatentes curdos propuseram um cessar-fogo mas Khomeini deu ordem ao exército para esmagar a rebelião.

As shuras de trabalhadores eram comités de fábrica, organizações de chão de fábrica cujo comité executivo representava todos os trabalhadores da fábrica ou grupo industrial. Também eram eleitos sub-comités para tarefas específicas. A sua maior preocupação era o controlo operário. Bayat explica que “as shuras que tinham maior êxito eram as que exerciam um controlo total e dirigiam a empresa sem qualquer controlo efectivo por parte dos gestores designados oficialmente. As suas políticas e actividades eram independentes do Estado e dos administradores nomeados e baseavam-se nos interesses dos trabalhadores das bases”. Nos casos mais exemplares – caso das fábricas Fanoos e Automóveis do Irão – existia um contacto permanente entre a shura e as bases. O resultado de qualquer actividade ou negociação com alguma autoridade era transmitido aos trabalhadores. Esta forma de intervenção das bases atenuou as tendências burocráticas (Bayat).

Bayat explica que, no período entre Fevereiro e Agosto de 1979, os trabalhadores “travaram uma luta independente, e por vezes abertamente contra, dos líderes [clericais] da revolução”. Sugere que as shuras eram embriões de sovietes ou de conselhos operários. Por exemplo na fábrica têxtil de Chite Jahan, perto de Teerão, nos primeiros meses de 1979, a shura organizou-se para aumentar a produção, duplicar os salários mínimos reduzindo os dos engenheiros e administradores do topo e fornecer gratuitamente leite aos operários (Poya).

Na fábrica Fanoos, a constituição da shura deu ao comité autoridade para organizar os trabalhadores para enfrentarem a “sabotagem contra-revolucionária”, dando-lhes treino militar e “expurgando os elementos corruptos, antipopulares e parasitários fosse qual fosse o seu cargo”. Qualquer elemento, incluindo os administradores, que fosse alvo de uma acusação comparecia perante uma assembleia de massas que decidia sobre o seu destino (Bayat). Os trabalhadores lutaram para obter refeitórios, instalações desportivas, clínicas e educação na empresa. Nas empresas onde os patrões tivessem fugido, os trabalhadores tomavam conta da produção, gerindo os ritmos de trabalho, as compras de matérias-primas e a venda dos produtos.

Também trataram de assumir o controlo dos seus locais de trabalho. As assembleias gerais de trabalhadores julgaram e sanearam dirigentes, capatazes e agentes da SAVAK. Por exemplo na fábrica Arj, um trabalhador explicou que “depois da revolução, os gestores começaram a implementar os mesmos padrões de exploração e opressão. Mas os nossos rapazes tinham ganho consciência suficiente para não tolerarem um tal fardo. Por isso, os rapazes correram rapidamente com esses cavalheiros” (Bayat).

Na Eadem Motor Company, em Março de 1979, a shura de fábrica decidiu expulsar 11 gestores depois de investigar os seus casos. Na fábrica de automóveis Pars, os trabalhadores entraram em greve porque “o patrão não tem o direito de empregar ou despedir alguém sem consultar as shuras” (Bayat).

Na cimenteira Fama Beton, em Teerão, depois de formarem a shura, os trabalhadores obrigaram o patrão a aceitar as seguintes condições: “regresso ao trabalho com pagamento dos salários em atraso e [participação nos] lucros; semana de quarenta horas; monitorização adequada das decisões do Conselho de Administração, dos contratos, dos novos recrutamentos, da determinação dos honorários e salários; e um inquérito à situação financeira da empresa” (Bayat).

Em Maio de 1979, os trabalhadores da empresa Mitusac, ameaçados com dispensa de pessoal, realizaram uma ocupação de 25 dias e uma greve de fome de 4 dias. E quando assim conseguiram salvar os seus postos de trabalho, decidiram “tomar conta da empresa e assumir o poder da sua gestão” (Bayat).

O nível da luta dos trabalhadores manteve-se elevado. O novo governo provisório calculou que 50.000 trabalhadores participaram em novas greves nos primeiros meses de 1979. Entre Fevereiro de 1979 e Fevereiro de 1980 houve 350 conflitos laborais nas indústrias (Bayat).

Os trabalhadores fizeram greves por melhores salários, conseguindo aumentos médios de 50%, e o salário mínimo mais que duplicou (Bayat).

Um trabalhador entrevistado por Bayat explicou o alto nível de consciência alcançado por muitos trabalhadores durante este processo: “Veja, a razão fundamental para se fazer a Revolução foi porque nós queríamos tornar-nos senhores de nós próprios, determinar os nossos destinos… Não queríamos a situação em que um ou muito poucos tomam as decisões no lugar de milhares. Quando nós, que somos 2.500, estamos a trabalhar dentro destas paredes, nós queremos saber o que se passa aqui; o que vamos conseguir para o futuro, em que direcção está a caminhar a empresa, que lucros obtemos, quanto podemos tirar para nós, quanto podemos contribuir para o governo, para o investimento público”.

Título do jornal Ettela’at de 11 de Março de 1979: “A hijab (traje religioso das mulheres) não é obrigatória”, aiatola Taleqani.

Todavia, havia shuras que funcionavam apenas como formas de co-determinação, com dois membros no Conselho de Administração, alguns pareceres consultivos e alguma participação na gestão da firma.

Algumas shuras faziam a ligação entre diferentes empresas. A União das Shuras Operárias de Teerão Ocidental e a União das Shuras Operárias de Gilan eram organismos de coordenação entre diversos comités de empresa. Os trabalhadores do petróleo e os ferroviários tinham coordenações a nível nacional.

O ponto alto da organização ao nível nacional foi a criação do Conselho Fundador da União Geral dos Trabalhadores do Irão que, em Março de 1979, emitiu uma declaração de 24 reivindicações (ver caixa). Os trabalhadores desempregados eram um dos sectores mais activos da classe trabalhadora. Por exemplo, os desempregados ocuparam o Ministério do Trabalho e ocuparam as instalações centrais dos antigos sindicatos oficiais controlados pela SAVAK, transformando-a na Casa dos Trabalhadores (Khaneh Kargar). Um trabalhador explicou essa atitude: “Sugiro que permaneçamos neste lugar até que este ministro dos patrões se torne um ministro dos trabalhadores. O Ministro do Trabalho tem de saber que é ministro de um governo provisório, e ele mesmo é apenas provisório, não permanente. O dever dele é dizer aos proprietários e aos gestores que, durante 25 anos, eles roubaram milhões e milhões, por isso como podem dizer agora que estão na bancarrota? Não queremos as vossas promessas, queremos acção. Não nos acusem de sermos incréus. Satisfaçam as nossas exigências e nós rezaremos 37 vezes [por dia] em vez das 17”. (Poya)

O poderio deste movimento dos trabalhadores foi demonstrado no 1º de Maio de 1979, quando um milhão e meio de trabalhadores desfilaram por Teerão.

AS REIVINDICAÇÕES DA UNIÃO GERAL DOS TRABALHADORES DO IRÃO
“Nós, trabalhadores iranianos, por meio das nossas greves, ocupações e manifestações, derrubámos o regime do Xá e durante esses meses de greve suportámos o desemprego, a pobreza e mesmo a fome. Muitos de nós foram mortos nesta luta. Fizemos tudo isso com o objectivo de criar um Irão livre da repressão de classe, livre da exploração. Fizemos a revolução para acabar com o desemprego e a carência de habitação, para substituir os sindicatos [oficiais] regidos pela SAVAK por shuras [conselhos de fábrica] independentes – conselhos formados pelos trabalhadores de cada fábrica para tratar das suas próprias necessidades políticas e económicas”.
Os trabalhadores exigiam:
1. Reconhecimento das shuras pelo governo.
2. Abolição da Lei do Trabalho do Xá e a adopção de uma nova lei trabalhista escrita pelos próprios trabalhadores.
3. Aumentos de salários correspondentes ao aumento do custo de vida.
4. Prémios livres de impostos.
5. Serviço de saúde gratuito, em vez do actual sistema de saúde semi-privado.
6. Apoios à habitação o mais urgentemente possível.
7. Pagamento das baixas por doença.
8. Semana de cinco dias e quarenta horas.
9. Saneamento de todas as pessoas próximas do antigo regime.
10. Expulsão de todos os peritos estrangeiros e dos capitalistas, estrangeiros ou iranianos, com expropriação dos seus capitais a favor de todos os trabalhadores.
11. Fim da discriminação contra os trabalhadores de fato-macaco e um mês de férias anuais.
12. Melhores condições de saúde nas fábricas.
13. Pagamento das baixas por doença.
14. Fim dos processos disciplinares e das multas.
15. Fim das intervenções da polícia, do exército ou do governo nos conflitos laborais.
16. Participação das shuras nas decisões industriais, tais como os investimentos e as condições gerais da fábrica, assim como as compras, as vendas, a definição dos preços e a distribuição dos lucros.
17. Determinação das contratações e dos despedimentos pelas shuras.
18. Liberdade de manifestar e protestar, e legalização das greves.
19. Devolução do capital das cooperativas aos trabalhadores.
20. Refeições gratuitas, condições de higiene e maior segurança no trabalho.
21. Disponibilização de serviços de ambulância, ama, banho e infantário no trabalho.
22. Emprego formalizado e segurança de emprego para os trabalhadores temporários.
23. Criação de um corpo de médicos para avaliar o estado de saúde dos trabalhadores fracos ou doentes e atribuir-lhes a dispensa do trabalho e a reforma.
24. Abaixamento da idade da reforma nas indústrias de mineração e de moldes, de 30 para 20 anos de serviço.
(“Pagamento das baixas por doença” aparece duas vezes no original, segundo Poya).

“Os trabalhadores desempregados também tiveram um papel decisivo nas manifestações do 1º de Maio… O Conselho Fundador da União Geral dos Trabalhadores do Irão incitou todos os trabalhadores, empregados e desempregados, a celebrarem o 1º de Maio, juntando-se ao desfile à partida da Khaneh Kargar (Casa dos Trabalhadores). Nesse dia, desempregados e desempregadas encabeçavam a marcha com os seus filhos, levantando bandeiras e faixas e congratulando-se uns aos outros pela festa do 1º de Maio. A seguir a eles, desfilavam os trabalhadores empregados. Cada fábrica ou indústria ostentava as suas faixas próprias. Os alunos e estudantes e as organizações políticas também apoiaram o desfile” (Poya).

A manifestação dos trabalhadores foi gigantesca: foram precisas seis horas para um milhão e meio de participantes desfilarem nas ruas de Teerão. Estes levavam faixas em persa, em árabe, em curdo e em azeri, com palavras de ordem como “Longa vida aos sindicatos autênticos e às shuras”, “Liberdade de expressão, liberdade de imprensa”, “Abaixo a velha legislação do trabalho”, “Operários e camponeses, uni-vos e lutai” e “Trabalho para os desempregados”. Contudo não deixou de haver incidentes. “Por vezes, a marcha era acossada por pequenos grupos de energúmenos islamistas que gritavam slogans anti-comunistas e pró-islâmicos. Os manifestantes respondiam: ’Os trabalhadores vencerão, os reaccionários serão derrotados’”. (Poya)

Os apoiantes de Khomeini organizaram um desfile separado que partiu da Praça Imam Hussein, em Teerão, e que só conseguiu reunir poucos milhares de manifestantes. Os Mujahedin recusaram juntar-se ao cortejo independente dos trabalhadores, e realizaram o seu próprio nas proximidades de Teerão, e congregando apenas poucos milhares de manifestantes.

A reacção islamista

A atitude de Khomeini para com os trabalhadores foi clara desde o princípio. Ele preparou tudo para o confronto, antes de atacar o movimento nascente dos trabalhadores assim que regressou.

Em 20 de Janeiro de 1978, Khomeini instituiu o Comité de Coordenação e Investigação das Greves (CCIS), de que faziam parte Bazargan e o futuro presidente Rafsanjani. A sua principal tarefa era “apelar à desmobilização das greves que põem em risco as principais indústrias que produzem os bens de primeira necessidade para o povo e daquelas que ameaçam a sobrevivência do país” (Bayat). Em dez dias conseguiu persuadir cerca de 100 empresas em greve a voltarem ao trabalho.

Mas o êxito do CCIS não foi total. O Comité de Greve dos Ferroviários recusou repetidamente o regresso ao trabalho e o transporte de combustíveis para “o consumo do povo”, como lhes pediam. Segundo Bayat, “o Comité de Greve dos Petróleos aceitou o pedido do CCIS para retomar a produção para consumo doméstico, mas só depois de uma longa discussão, com negociações e garantias.

“O Comité de Greve da indústria petrolífera tinha um elevado grau de independência e autoridade, e aos olhos de Khomeini e dos seus aliados era como um poder paralelo… A confrontação culminou quando, cerca de três semanas antes da insurreição e de o Xá se ir embora, o líder dos grevistas do petróleo [M. J. Khatami] se ter demitido em protesto contra ‘o clero dogmático reaccionário’ e contra ‘a nova forma de repressão sob disfarce religioso’. A sua preocupação nesse momento, conforme a carta-aberta que escreveu ‘às massas do Irão’, tinha a ver com ‘a repressão existente… e as interferências arbitrárias do Enviado Especial (de Khomeini) nas competências e responsabilidades dos membros do Comité de Greve’”.

Houve novas afrontas e confrontações azedas logo a seguir à insurreição [9-11 de Fevereiro], quando dirigentes grevistas dos petróleos foram presos pelo novo governo e acusados de contra-revolucionários (Bayat). O novo governo foi claro. O porta-vos de Bazargan disse: “Aqueles que imaginam que a revolução continua estão enganados. A revolução acabou. Começou o período da reconstrução”. (Bakhash) Três dias depois da insurreição, Khomeini ordenou a todos os grevistas que regressassem ao trabalho “em nome da revolução”. O governo provisório fez frente às shuras e instituiu uma força especial de inspectores contratados dentro das empresas para informar sobre as suas actividades. Em vez delas, o governo defendia a existência de sindicatos oficiais. (Bayat)

Logo que voltou do exílio, Khomeini nomeou Bazargan chefe do governo provisório.

Em 18 de Fevereiro foi formado o Partido da República Islâmica para encabeçar os apoiantes de Khomeini na política oficial. Os milicianos e outras tropas de choque como os Hezbollahi (o Partido de Allah) foram organizados para atacar os oponentes nas ruas e nas empresas. Discursando em Qom a 1 de Março de 1979, Khomeini disse: “A democracia é um outro nome para a usurpação da autoridade de Deus para governar”. (Dilip Hiro, Iran under the Ayatollahs). E acrescentou: “O que o país quer é uma república islâmica; não apenas uma república, não uma república democrática, não uma república democrática islâmica. Não usem o termo ‘democrática’. É coisa dos Ocidentais.” (Bahkash)

Em Março de 1979 Khomeini recorreu às ameaças: “Qualquer desobediência ou sabotagem da prossecução dos planos do governo provisório será considerada como uma oposição à genuína Revolução Islâmica. Os provocadores e agentes serão mostrados ao povo como elementos contra-revolucionários, para que o povo decida o que fazer com eles, como decidiu em relação ao regime contra-revolucionário do Xá” (Bayat).

Em 31 de Março o ministro do Trabalho anunciou que o governo era “a favor dos sindicatos oficiais e está convicto de que os trabalhadores só podem defender os seus interesses com um sindicalismo saudável; por isso o ministério irá apoiar esse tipo de organizações e tem a intenção de dissolver quaisquer outras formas dispensáveis de organização”. (Poya)

O governo começou a interferir nos locais de trabalho, nomeando representantes seus como gestores e tentando minimizar o papel das shuras. Encorajou grupos de apoiantes a estabelecer comunidades islâmicas nas empresas, para promover religião e os comportamentos islâmicos no que diz respeito ao trabalho e à propriedade.

Muitos trabalhadores não aceitaram isso. Um trabalhador da Roghan Pars, subsidiária da Shell, explicou-o bem em Março de 1979: “A revolução foi vitoriosa devido à greve dos trabalhadores. Livrámo-nos do Xá e esmagámos o seu sistema, mas agora está tudo na mesma. Os gestores nomeados pelo Estado têm a mesma mentalidade dos gestores de outrora. Temos de reforçar as nossas shuras porque os gestores têm medo delas. Sabem que, se as shuras continuarem a ser poderosas, eles estão feitos. Não podem impor-nos directamente as suas políticas contra os trabalhadores; mas agora estão contra as shuras com base nas crenças religiosas. Se nós dizemos alguma coisa, a resposta deles é ‘Isso é subversão comunista para enfraquecer as tuas crenças religiosas’. Gostava de saber o que é que as shuras têm a ver com a religião! Os trabalhadores são explorados na mesma: muçulmanos, cristãos ou de outra religião qualquer. O sacana do gestor que anda a sugar o nosso sangue de repente tornou-se um bom muçulmano e tenta dividir-nos com base na religião de cada um; por isso já devíamos saber que a única forma de vencermos é mantermos a nossa unidade através das shuras”. (Poya)

Um outro disse-o aos gritos: “Se eles não reconhecem os direitos das nossas shuras, haverá ocupações e sabotagens. Se eles ilegalizarem a shura, os trabalhadores nunca os deixarão entrar nas fábricas. Se dissolverem a shura, será a vez de eles se irem embora também”. (Poya)

Os alicerces do Estado islâmico

O governo provisório acelerou o projecto de uma constituição islâmica. Em 30-31 de Março organizaram um referendo com a pergunta: Sim ou não a uma República Islâmica. Os boletins de voto eram vermelhos para o Não e verdes para o Sim. Os membros dos Komitehs locais entregavam aos votantes o boletim que eles preferiam e carimbavam-lhes o bilhete de identidade. (Hiro)

O governo também recorreu à repressão ostensiva. Em 10 de Abril de 1979 uma manifestação de trabalhadores desempregados em Isfahan foi atacada por milícias de Khomeini e um trabalhador foi morto.

Em Maio de 1979 o governo adoptou a Lei das Forças Especiais para impedir as shuras de intervirem “nas questões de gestão e de salários” dos gestores nomeados pelo governo. (Bayat)

Em 6 de Maio, Khomeini ordenou a criação dos Guardas Revolucionários Islâmicos (os Pasdaran), que foram formalmente fundados em 16 de Junho. (Hiro)

O regime nacionalizou 483 fábricas, 14 bancos privados e todas as companhias seguradoras em Junho de 1979 (Bayat). Assumiu o controlo de 70% do sector privado, pagando indemnizações aos capitalistas estrangeiros e iranianos. Agiram assim, na realidade, porque os trabalhadores de muitas fábricas já tinham na prática expulso os patrões e o regime queria recuperar o controlo pela imposição dos seus próprios gestores.

Além disso, a Fundação Islâmica Mustazafin apropriou-se dos bens da Fundação Pahlavi, da família do Xá, que incluía 20% dos activos de todas as empresas privadas. Foram nomeados gestores do Estado para imporem as medidas do governo.

O regime também se serviu da sabotagem económica para sapar as fábricas que tinham shuras.

As transacções com a shura da fábrica Plant foram proibidas pelo Estado e pelos comerciantes do bazar, com o pretexto de que os membros da shura eram comunistas. Na fábrica Orkideh Chinese o Estado cortou as importações de matéria-prima da Alemanha Ocidental quando os trabalhadores assumiram o controlo da fábrica. Cortaram o crédito a duas fábricas da indústria de lanifícios, em Naz-Nakh e Isfahan, com o intuito de desmantelar as shuras. (Bayat)

Em 22 de Junho, uma manifestação na Universidade de Teerão para exigir uma assembleia eleita pelo povo foi destroçada pelos Hezbollahi. O governo decidiu que o projecto da nova constituição seria elaborado por uma Assembleia de Especialistas. A nova constituição, aprovada em referendo em Dezembro de 1979, continha artigos que visavam restringir as shuras. Por exemplo o artigo 105 dizia que “as decisões tomadas pelas shuras não podem ir contra os princípios islâmicos nem contra as leis do país” (Bayat).

Durante o ramadão, em 25 de Julho de 1979, Khomeini anunciou a proibição da música na rádio e na televisão, comparando-a com o ópio. (Hiro 1985, p.127)

Em 7 de Agosto de 1979 o governo pôs em prática uma lei de imprensa adoptada há dois meses, com os Pasdaran [guardas islâmicos] a ocuparem os escritórios do diário liberal Ayandegan. Mais tarde nesse mesmo mês, o governo proibiu 41 jornais da oposição e apropriou-se de duas grandes editoras. Isso constituiu um duro golpe para a esquerda, cujos jornais faziam circular cerca de um milhão de exemplares. (CARI)

Em Agosto, Khomeini criou a Cruzada da Reconstrução, para consertar estradas e edifícios do Estado. Trabalhadores da General Motors, da Caterpillar e da Iran National eram mandados embora com o pretexto da falta de componentes nas suas fábricas. As greves e as ocupações foram declaradas ilegais, como “subversão comunista”.

A primeira vaga ampla de repressão aberta contra as shuras foi lançada em Agosto. Segundo Bayat, “muitos activistas independentes das shuras foram presos, e boa parte deles foram executados”.

As forças de Khomeini também atacaram as esquerdas. Em 12 de Agosto, uma manifestação convocada pela Frente Nacional, pelos Fedaiyin e pelos Mujahedin foi atacada pelos Hezbollahi e os Pasdaran. No dia seguinte as sedes dos Fedaiyin e dos Mujahedin foram cercadas pelas forças de Khomeini.

Khomeini definiu-se claramente num discurso de 19 de Agosto em Qom: “Nós cometemos um erro. Se tivéssemos proibido todos esses partidos e frentes, quebrado todas as suas canetas, colocado forcas nas principais praças e dado cabo dessa gente corrupta e desses subversivos, não estaríamos agora com estes problemas”. (“Why Khomeini wants gallows in the streets”, Workers’ Action nº 150, 25 de Agosto de 1979)

Em Outubro de 1979 a Khaneh Kargar (Casa dos Trabalhadores) foi ocupada pelo Komiteh local – não sem que os desempregados a recuperassem por duas vezes.

O governo também usou Associações Islâmicas e “shuras islâmicas” para minar a organização independente nas empresas.

Foi neste contexto que aconteceu a ocupação da embaixada dos EUA, em 4 de Novembro de 1979. Segundo a Campanha contra a Repressão no Irão (CARI), [a ocupação] “foi planeada e organizada pelo partido do poder (PRI) e o seu objectivo central foi desviar o movimento de massas” usando “uma demagogia anti-imperialista vazia”.

O Iraque ataca o Irão: combatentes voluntários iranianos nas frentes do sul, nos primeiros dias da guerra.

No começo de 1980, foram fechadas muitas shuras de fábrica, inclusive nos petróleos, nos caminhos de ferro e na metalurgia. Em Agosto de 1980 o governo aboliu a partilha dos lucros e adoptou uma lei que remetia as shuras a um mero papel consultivo. Os trabalhadores continuaram a resistir. Um trabalhador disse ao jornal Keyhan: “Esta lei visa enfraquecer a força dos trabalhadores; de facto, trata-se de um reconhecimento dos sindicatos estaduais que apenas preserva os direitos dos capitalistas. As shuras são a base da nossa força nas fábricas. Agora está claro que, enquanto forem os capitalistas a mandar nas fábricas, eles vão continuar a enfraquecer-nos” (Poya).

A Khaneh Kargar tornou-se a sede das Associações Islâmicas e das “shuras islâmicas”.

Estas Associações Islâmicas tinham a seguinte função: doutrinar os trabalhadores com a ideologia do poder; policiar os locais de trabalho; mobilizar os trabalhadores em apoio do regime. Segundo Bayat, eram vistas pelos trabalhadores como “os novos agentes da SAVAK que, em vez de gravatas, usavam barbas”.

Quando o Iraque atacou o Irão no fim de Setembro de 1980, o resultado foi “uma vaga de chauvinismo histérico que rapidamente inundou o país, incluindo a classe trabalhadora e a maior parte da esquerda”. O outro efeito importante foi a militarização da sociedade, com um exército regular renovado, o número dos Pasdaran triplicado e novas organizações como os corpos Basij. Até as Associações Islâmicas foram armadas. (CARI, The Iranian Workers’ Movement)

Os trabalhadores continuam a resistir

Ainda em 1981 os trabalhadores militantes continuavam a desafiar as imposições do governo. Bayat conta um incidente que testemunhou. “Na fábrica gerida pelo Estado Iran Cars, ocorreu uma grave confrontação por a shura ter levantado fundos do departamento financeiro para pagar aos trabalhadores o seu prémio anual em Março de 1981. Alguns dos membros da shura foram presos como reacção do Estado a essa iniciativa. Os trabalhadores retiraram as suas exigências para conseguirem a libertação dos membros da shura presos. No dia em que eu visitei a fábrica, os representantes do Imam (Khomeini) e do Procurador-Geral apareceram na fábrica para resolver o conflito que continuava. Depois de uma azeda discussão entre os trabalhadores e esses representantes, um trabalhador azeri levantou-se e declarou ‘Tal como derrubámos o regime do Xá, também podemos derrubar qualquer outro regime’. Nesse momento os operários começaram a aplaudir.” Mas em Junho de 1981 os últimos vestígios da independência das shuras tinham sido apagados. Na fábrica Iran Cars, “os Pasdaran armados irromperam na fábrica e começaram a prender membros da shura e outros activistas segundo uma lista negra preparada pela Associação Islâmica”. (Bayat)

O número de conflitos nas indústrias caiu de 180 em 1980-81 para 82 em 1981-82. Os trabalhadores da indústria petrolífera, que haviam conseguido a semana de 40 horas com a sua luta, perderam-na quando o Conselho da Revolução decretou a semana de 44 horas.

Baseada numa citação de Maomé segundo a qual “o trabalho é como uma jihad [um combate] ao serviço de Deus”, o regime usou uma concepção instrumentalista do trabalho para aumentar a produtividade. Visava assim impor uma comunidade islâmica “sem classes” por sobre as relações trabalho-capital. Para o efeito até a linguagem mudou: a palavra kargar (trabalhador) foi substituída por karpazir (aquele que quer trabalhar).

Como descreve Bayat: “Relativamente aos trabalhadores, a islamização do trabalho ia de par com a islamização (melhor dizendo, a arregimentação) dos lazeres. A fábrica é entendida como uma barricada contra os koffar (infiéis), onde os agirs (os que labutam) têm de escutar os sermões religiosos e também cumprir ‘o dever divino de produzir’. Em consequência, foi destacado um número massivo de mulás de fábrica, o que foi uma transformação religiosa do ambiente das fábricas, com a afixação e pintura de grandes murais, cartazes e palavras de ordem nas paredes e a difusão sonora, aos gritos, dos discursos oficiais durante os intervalos e as refeições, etc.”.

A subordinação dos trabalhadores foi sintetizada pelo responsável da Justiça em Março de 1983: nas fábricas, “os gestores são o cérebro, as Associações Islâmicas são os olhos, e o resto são as mãos” (Bayat).

No entanto a resistência, passiva e activa, continuou. Em 1984-85 foram registados cerca de 200 conflitos na indústria. Bayat conta, acerca de alguns dos mais significativos:

“Numa fábrica metalúrgica de Teerão, assisti a uma oração de massas na mesquita da fábrica. De um total de 700 trabalhadores, menos de 20, quase todos velhos, assistiam ao acto. O resto dos trabalhadores estavam a jogar futebol no pátio da fábrica, ou a conversar. Daí em diante (Primavera de 1981), a participação das orações de massas passou a ser obrigatória nas fábricas e nos escritórios. Numa outra fábrica, um jovem gestor explicou que eram os próprios trabalhadores que pediam sermões religiosos, mas não participavam. Ao contrário, vi eu, sentavam-se ao sol a conversar”.

[Fim da segunda parte]

Versão original (em inglês) aqui. Tradução do Passa Palavra.

As quatro partes do artigo são:

(1) Como os trabalhadores derrubaram um ditador
(2) Como os trabalhadores foram esmagados
(3) O fracasso da esquerda
(4) Os islamistas contra as mulheres

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