Uma saga memorável da classe trabalhadora iraquiana por seus direitos, contra os ingleses, um antigo rei-marionete, Saddam Hussein e estadunidenses, por agora os novos donos do país. Por David Bacon [*]
No começo da manhã de 21 de julho de 2010, a polícia invadiu a sede do Sindicato dos Eletricitários [Electricistas] em Basra [Bassorá], a capital miserável do sul de um Iraque rico em petróleo. Um oficial envergonhado disse a Hashmeya Muhsin, a primeira mulher a dirigir um sindicato nacional no Iraque, que vinham cumprir ordens do ministro de Energia Hussein al-Shahristani para fechar o sindicato. Quando mais policiais chegaram, foram levadas as fichas de filiação, os arquivos que documentavam as condições de trabalho frequentemente desumanas, os panfletos para manifestações protestando contra as torturantes interrupções de energia, computadores e telefones de Basra. Por último, Muhsin e seus companheiros foram expulsos e as portas trancadas.
O decreto de Shahristani proíbe toda atividade sindical nas instalações administradas pelo ministério, fecha as sedes do sindicato e assume o controle dos seus bens, das contas bancárias ao mobiliário. O decreto estabelece que o ministério definirá quais os direitos serão concedidos aos dirigentes sindicais, e retirou-os todos. Quem protestar será preso com base no Decreto Anti-Terrorismo do Iraque de 2005.
Assim findaram-se os sete anos em que os trabalhadores das centrais elétricas da região lutaram pelo direito de organizar um sindicato legal para negociar com o Ministério de Energia, e impedir os planos de subcontratação e privatização que ameaçam seus empregos.
O governo iraquiano, embora aparentemente paralisado em muitas frentes, desencadeou uma onda de ações contra os sindicatos do país, destinadas a levar o Iraque de volta à época em que Saddam Hussein proibiu-os para a maioria dos trabalhadores e prendeu os ativistas que protestavam. Só nos últimos meses, o governo [atual] de Nouri al-Maliki emitiu ordens de prisão para os líderes sindicais petroleiros, transferindo-os para locais de trabalho a centenas de quilômetros de casa, proibiu a atividade sindical nos campos de petróleo, nos portos e nas refinarias, vedou aos sindicatos cobrar taxas ou abrir contas bancárias, e até mesmo impediu os líderes de deixar o país em busca de apoio quando o governo reprime mais duramente.
Na Embaixada dos Estados Unidos, a maior do mundo, um funcionário diz melifluamente: “Estamos investigando. Esperamos que todos resolvam suas discordâncias de maneira amigável.” Mas enquanto isso, embora o governo dos EUA retire tropas de combate de muitas áreas, estão reforçando o aparato militar e de segurança privada que mantêm para proteger a onda de companhias de petróleo estrangeiras que chegam a Basra para explorar a riqueza dos campos de petróleo do Iraque.
Destruir o movimento operário do Iraque é uma maneira de garantir um ambiente no qual as empresas gigantes de petróleo possam operar livremente e o governo iraquiano possa estabelecer novas reformas de mercado? Essa foi uma questão lógica durante o governo de Bush, quando seus assessores neoconservadores vaticinavam publicamente que o Iraque se tornaria uma cabeça de ponte para a privatização do setor público nos países do Oriente Médio. Essa política, contudo, não se encerrou após a mudança de governo nos EUA. E hoje o trabalhador iraquiano paga pelas ruinosas consequências dela.
A história do Iraque salienta o rancor que os sindicatos podem sentir por causa dessa situação.
Um sindicalismo já antigo e sempre perseguido
O Iraque teve sindicatos dos trabalhadores antes de qualquer outro país do Oriente Médio. Os trabalhadores organizaram-se quando os britânicos perfuraram os primeiros poços e construíram as primeiras ferrovias depois da Primeira Guerra Mundial. Os britânicos, no entanto, baniram os sindicatos, lançando-os na clandestinidade. Instalaram um xeque saudita como rei, mas mantiveram controle suficiente para garantir que a riqueza do petróleo corresse para as contas bancárias das empresas britânicas (antecessoras da B[ritish] P[etroleum]), enquanto os iraquianos continuaram desesperadamente pobres. O rei, entrementes, jogava na prisão os trabalhadores que tentavam organizar os sindicatos.
Uma revolução em 1958 derrubou o rei. Os sindicatos ressurgiram tão rapidamente que a marcha do 1º de Maio de 1959 em Bagdá teve meio milhão de pessoas, quando a população total do país era de apenas 10 milhões. Esta revolução, porém, não durou muito tempo. Em 1963, o partido Baas deu um golpe. Para ajudá-lo a consolidar o poder, a CIA forneceu-lhe listas de milhares de militantes de esquerda e ativistas sindicais iraquianos, que foram presos e assassinados. Após uma década de novos golpes e contragolpes, Saddam Hussein assumiu o controle.
Apesar de anos de repressão, os nacionalistas no Iraque ainda eram suficientemente fortes e populares para forçar a nacionalização do petróleo em 1972. A fim de dar-lhes um golpe mortal Saddam Hussein, em 1987, decretou a tristemente célebre Lei 150. Os sindicatos foram proscritos nas empresas públicas, do petróleo e energia elétrica às fábricas, escolas e hospitais. Novamente, como ocorrera sob o rei, os sindicalistas foram para a prisão, passaram à clandestinidade ou deixaram o país. E enquanto o governo agia, Donald Rumsfield, mais tarde secretário de Defesa de George W. Bush e arquiteto da ocupação, apertou a mão de Saddam numa vergonhosa fotografia, prometendo ao ditador informações de espionagem e armas para fazer sua guerra contra o Irã.
É um pouco difícil de entender por que os militantes de esquerda e ativistas sindicais iraquianos estavam dispostos a ver a invasão de 2003 dos Estados Unidos como um passo rumo à democracia. O certo é que a maioria via o fim do regime de Saddam Hussein como uma pré-condição para qualquer mudança.
As tropas dos Estados Unidos entraram em Basra a partir do Kuwait na manhã de 9 de abril de 2003, e os tanques americanos estacionaram no portão de sua enorme e arruinada refinaria de petróleo. Depois de trinta anos de Saddam Hussein, a maioria dos trabalhadores ali estava saturada de guerra e repressão. Eles estavam preparados para dar boas vindas a praticamente qualquer mudança, mesmo tropas estrangeiras. “Nós estávamos prontos para dizer olá”, relembra Faraj Arbat, um dos bombeiros da refinaria.
Os soldados apontaram as armas para eles e, quando o chefe dos bombeiros protestou, foi obrigado a deitar-se de bruços no chão. “Abdulritha ficou completamente chocado”, relembra Arbat. “Mas ele fez como lhe foi ordenado. Então um americano pôs seu pé sobre as costas dele. Começamos então a empurrar os soldados, porque não compreendíamos aquilo. A torre do tanque começou a girar em nosso rumo, e nesse ponto sentamo-nos todos.” Alguém poderia facilmente ter morrido naquele dia. Seja como for, a recordação do pé nas costas de Abdulritha deixou um gosto amargo.
Os petroleiros já trabalhavam penosamente em meio ao bombardeio do “choque e pavor” [“Shock and Awe”, codinome macabro dado pelo governo de Bush à devastadora operação do ataque aéreo ao Iraque – PP] que precedeu a invasão. “Aos poucos começamos a restaurar a produção com nossos próprios esforços”, lembra Arbat. “Os eletricitários, às próprias custas, restabeleceram a energia na refinaria. Enquanto isso os norte-americanos e britânicos começaram a vir com caminhões-tanque e carregá-los com a gasolina e o óleo que produzíamos.”
Durante dois meses, ninguém recebeu pagamento. Por fim, Arbat e um pequeno grupo começaram a organizar um sindicato. “No início a palavra assustava as pessoas, porque sob Saddam os sindicatos eram proibidos”, explica ele. No entanto, algumas dezenas dos três mil funcionários da refinaria se reuniram e escolheram Arbat e Ibrahim Radiy para dirigi-los.
Para forçar as autoridades a pagar a todos, o pequeno grupo levou um guindaste até o portão e arriou-o transversalmente na estrada. Atrás dele, estavam estacionados duas dúzias de caminhões-tanque com uma escolta militar fortemente armada. “No início havia apenas cem de nós, mas os trabalhadores começaram a chegar. Alguns tiraram suas camisas e disseram aos soldados: ‘atirem!’. Outros deitaram-se no chão.” Dez deles foram para baixo dos tanques, brandindo isqueiros. Anunciaram que se os soldados disparassem, eles incendiariam os tanques. Os soldados não dispararam. Em vez disso, no fim do dia os trabalhadores receberam o pagamento. Em uma semana todos na refinaria se associaram, e o sindicato dos petroleiros renasceu em Basra.
Os ocupantes reprimem e preparam o saque
O programa de ocupação para a transformação da economia iraquiana foi anunciado por Paul Bremer, nomeado pelo presidente Bush para chefiar o Comando Provisório da Coalizão [Coligação] [dos países invasores – PP], em meados de 2003. Isso incluía a privatização do setor estatal, especialmente transportes, portos, comunicações e a maior parte da indústria.
Em setembro de 2003, Bremer assinou os regulamentos 29 e 30. Eles reduziam os salários-base de 60 para 40 dólares por mês, acabava com os subsídios para alimentos e habitação, permitia a propriedade privada por estrangeiros de empresas estatais (exceto petróleo) e autorizava a repatriação total de lucros para o exterior. Bremer manteve em vigor a Lei 150. Como consequência, novos sindicatos no Iraque ficaram ilegais. Quando o poder foi entregue a um governo “independente”, em junho de 2004, a lei de transição manteve os regulamentos de Bremer.
O sentimento nacionalista no Iraque vê o setor público, especialmente o petróleo, como garantia de soberania e uma chave para o desenvolvimento econômico futuro. Os sindicatos no Iraque tornaram-se rapidamente os críticos mais sonoros da privatização.
A primeira grande luta em relação ao programa econômico dos EUA veio poucos meses depois do confronto no portão da refinaria de Basra. A KBR, uma subsidiária da gigante de serviços petrolíferos Halliburton, recebeu um contrato sem licitação para apagar incêndios causados pela guerra nos poços dos enormes campos petrolíferos de Rumeila. Em algumas semanas, ela havia assumido as funções financeiras da administração civil de Basra. A fim de receber seu pagamento, os trabalhadores tinham que levar seus registros de frequência aos escritórios locais da KBR para aprovação.
Então a KBR exigiu o trabalho de reconstrução de poços, oleodutos e outras instalações de petróleo. Com o desemprego beirando os 70%, os trabalhadores iraquianos viram uma clara ameaça aos seus empregos. “É nosso dever proteger as instalações petrolíferas, uma vez que são propriedade do povo iraquiano”, explica Hassan Juma’a, que tornara-se presidente da Federação dos Petroleiros do Iraque. O novo sindicato deu a KBR um prazo para deixar o distrito petrolífero, e quando expirou pararam a produção. “Durante dois dias nos recusamos a bombear uma única gota até que eles se fossem”, diz o líder sindical Farouk Sadiq. “Os outros trabalhadores em Basra recusaram-se também a trabalhar. Foi o dia da independência para o trabalho no petróleo”.
A KBR fechou seus escritórios em Basra.
Reorganização e crescimento dos sindicatos em todo o país
Isso fez com que se iniciasse uma onda de organização sindical no sul. Com a ajuda dos petroleiros, um novo sindicato nos portos de Um Qasr e Zubair forçou duas grandes companhias, a dinamarquesa Maersk e a Stevedoring Services of America, com sede na cidade de Seattle, a desistirem das generosas concessões que tinham recebido para operar as instalações portuárias [deepwater shipping facilities] do Iraque. No final de 2003, o sindicato petroleiro ameaçou entrar em greve novamente se os regulamentos de Bremer abaixassem os salários. O ministro do petróleo cedeu, elevando o salário-base para 85 dólares mensais.
Em seguida o sindicato dos petroleiros ajudou os trabalhadores das usinas de energia. Depois que Hashmeya Muhsin foi eleita presidente do novo sindicato, os trabalhadores entraram em greve nas centrais elétricas de Najibeeya, Haartha e de Al Zubeir. Eles invadiram os prédios da administração e ameaçaram desligar a energia. O ministro de Energia concordou igualmente em abandonar os regulamentos salariais de Bremer. O sindicato de Muhsin em seguida lutou para impedir a subcontratação nas centrais elétricas – um preâmbulo para o controle empresarial.
A organização sindical na refinaria parecia espontânea, mas na realidade se baseava nas experiências dos trabalhadores nos anos de atividade clandestina. Nos portos e centrais elétricas, os ativistas dos antigos sindicatos do Iraque, que retornaram ao país ou saíram da clandestinidade, ajudavam os trabalhadores a se associarem.
A sindicalização do sul foi a dianteira de uma onda que se espalhou por todo o Iraque. Greves ocorreram em Bagdá e em outras cidades. Novas centrais sindicais muitas vezes concorrentes foram formadas. Os sindicatos organizados pelos comunistas do Iraque fundiram-se com alguns poucos que Saddam tinha permitido nas empresas privadas para formar a Central Geral dos Trabalhadores do Iraque. Outros em muitos locais de trabalho fundiram-se na Central Geral dos Conselhos Operários e dos Sindicatos do Iraque, à qual mais tarde juntaram-se os petroleiros. Os professores e os jornalistas reorganizaram seus antigos sindicatos também, que permaneceram independentes.
Como a maioria dos trabalhadores iraquianos ainda trabalha em empresas ou serviços públicos, quase todos se levantaram contra a Lei 150. Depois que as eleições resultaram num novo governo, e foi dissolvido o Comando da Coalizão de Bremer, uma nova constituição prometeu a reforma da legislação trabalhista. Em vez disso, o governo não só não revogou a Lei 150, como aprovou uma série de outras destinadas a impedir a atividade trabalhista.
Em 2005, o Decreto 870 deu ao governo o poder para intervir nos sindicatos, e proibiu-os de abrir contas bancárias ou cobrar taxas. Os sindicatos continuavam a funcionar com base no desejo dos trabalhadores de apoiá-los, porém o governo empenhava-se em negar-lhes os recursos para florescerem.
Em 2007, enquanto os EUA pressionavam por uma nova lei do petróleo destinada a garantir que as transnacionais obtivessem acesso a condições mais favoráveis, o sindicato petroleiro organizava o que foi, com efeito, uma greve política. Em 4 de junho, a Federação dos Empregados no Petróleo do Iraque fechou os oleodutos dos campos de Rumeila perto de Basra que abastecia a refinaria de Bagdá e o resto do país. Foi uma greve destinada a reforçar seu apelo para manter o petróleo nas mãos do setor público, e forçar o governo a cumprir suas promessas econômicas.
O primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki convocou o exército e cercou os grevistas em Sheiba, perto de Basra. Em seguida, assinou mandados de prisão para os líderes do sindicato. Aviões estadunidenses sobrevoaram Basra em voos rasantes durante e após a greve, aumentando a pressão sobre o sindicato. No Iraque, as manobras hostis dos aviões militares não são consideradas ameaças fúteis pelas pessoas embaixo. Na quarta-feira, 6 de junho, o sindicato encerrou a greve. Maliki, que enfrentou a possibilidade de que a greve pudesse se transformar em interrupções nas próprias plataformas, concordou com a reivindicação principal do sindicato. A aplicação da lei do petróleo seria suspensa enquanto o sindicato apresentasse objeções e propusesse alternativas.
Mesmo nos EUA vozes se levantaram dizendo que a privatização do petróleo fora uma má ideia. O deputado Dennis Kucinich denunciou que “a privatização do petróleo do Iraque é um roubo”. Apesar disso, os EUA ameaçaram reter um bilhão de dólares do financiamento de reconstrução, se o Iraque não aprovasse a Lei de Hidrocarbonetos. Maliki enfrentou um fato que os políticos estadunidenses se recusavam a reconhecer. A indústria petrolífera é um símbolo da soberania iraquiana, e entregar seu controle a empresas estrangeiras é extremamente impopular.
O sindicato dos petroleiros, ainda tecnicamente ilegal, surgiu como uma das vozes mais fortes do nacionalismo iraquiano. Outras reivindicações refletiam a desesperada situação dos trabalhadores. Eles queriam que o Ministério do Petróleo desse empregos permanentes aos milhares de trabalhadores temporários. Num país onde a habitação fôra destruída em grande escala, o sindicato queria terrenos para a construção de casas. Exigiu empregos e um futuro para os jovens formados no Instituto do Petróleo. A luta por essas exigências tornou os sindicatos populares – a única força no Iraque que tentava manter um padrão de vida mínimo para os milhões de iraquianos, que têm de se levantar e ir trabalhar todos os dias no meio de uma guerra. Os governantes dos EUA, por outro lado, veem os iraquianos como um inimigo propenso a reforçar a pobreza.
A fundamentação, na imprensa dos EUA, para a privatização das indústrias do Iraque, como energia e petróleo, é que as indústrias estatais são obsoletas e ineficientes. As autoridades de ocupação diziam que o know-how técnico dos EUA era necessário para trazê-las a padrões modernos. O líder trabalhista árabe Hacene Djemam observou amargamente que “a guerra facilita a privatização: primeiro você destrói a sociedade, depois você deixa as corporações reconstruírem-na.”
O negócio da “reconstrução” e a repressão do atual governo
Mas as centrais elétricas elas nunca reconstruíram. As empresas estadunidenses juntaram bilhões em contratos por administração para a reconstrução da rede elétrica – só a General Electric recebeu 3 bilhões de dólares. Contudo, os moradores de Basra somente tinham direito a algumas horas de energia por dia, embora a temperatura atingisse 49 graus no verão. Antes da primeira guerra do Golfo, o Iraque gerava 9,3 mil megawatts de energia. Os EUA bombardearam instalações e linhas de transmissão naquela guerra, e as sanções impostas pelos EUA em seguida impediram muitas delas de serem reconstruídas. A produção caiu para um terço. Atualmente, depois de sete anos de “reconstrução” pelos empreiteiros estadunidenses, a produção é de apenas 6 mil megawatts, dois terços do que era há vinte anos. Enquanto isso, a população do Iraque cresceu e o consumo aumentou.
Os empreiteiros estadunidenses ficaram famosos por fornecer peças e geradores às centrais elétricas iraquianas incompatíveis com o equipamento existente, e por andarem rodeados de seguranças particulares armados. Enquanto isso, os trabalhadores iraquianos, que eram frequentemente atacados por rebeldes que tentavam sabotar o sistema, faziam o trabalho efetivo de manter as instalações funcionando.
Essa combinação explosiva finalmente produziu uma enorme manifestação em 19 de junho, quando os moradores de Basra e Nassiriya saíram às ruas com cartazes dizendo “A prisão é mais confortável que nossas casas!”. A polícia matou um manifestante, Haider Dawood Selman, e atirou em outros. Como resultado, o ministro de energia demitiu-se, e Shahristani, que já era ministro do Petróleo, acumulou a pasta de Energia. Quando ele publicou sua ordem para fechar o sindicato dos eletricitários, outra grande manifestação levou mil trabalhadores a Basra para protestar. Suas palavras de ordem perguntavam a Shahristani para onde tinham ido os 13 bilhões de dólares da reconstrução elétrica, cantando: “Hussein, onde está a energia?”.
Três semanas mais tarde, o sindicato foi despejado de sua sede.
Hashmeya Muhsin e Hassan Juma’a estavam entre os vários sindicalistas iraquianos que viajaram aos EUA para procurar apoio trabalhista em suas lutas contra a situação ilegal e a privatização. A U.S. Labor Against the War [Trabalhadores dos EUA contra a guerra], uma organização nacional de sindicatos antiguerra, organizou vários percursos para os iraquianos. Eles foram convidados para várias reuniões da AFL-CIO [American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations, maior central sindical estadunidense, sucumbida ao patronato – PP] . O American Center for International Labor Solidarity (afiliada à AFL-CIO) e os Trades Union Congress da Inglaterra começaram a oferecer-lhes apoio material e treinamento nas instalações da Jordânia. Como, no entanto, os conflitos no Iraque aumentavam, o governo movimentou-se para cortar esse apoio. Os sindicatos já estavam proibidos de receber dinheiro ou mesmo manter contas bancárias. Mas depois que os líderes das duas federações, Falah Alwan e Rasim Awadi, visitaram os EUA em 2009, Maliki publicou o despacho nº 3/2004. No futuro, os dirigentes sindicais teriam de ter a permissão do Supremo Comitê Ministerial para viajar ao exterior. Essa permissão, evidentemente, não estará disponível.
Mesmo nas escolas públicas, os sindicatos sentiram o fechamento do governo. Em janeiro passado, o governo de Maliki fez uma tentativa de tomar o controle do Sindicato dos Professores do Iraque da sua liderança independente. Ele organizou uma chapa que os professores denunciaram como sendo uma frente do partido dominante de Maliki. O presidente do sindicato em Basra foi jogado na prisão. “Ele está recebendo telefonemas ameaçadores, tais como: ‘Se você não parar, nós vamos te matar’”, segundo a líder sindical Nasser al Hussain.
Ameaças de morte não são menosprezadas no Iraque. Desde o início da ocupação, dezenas de sindicalistas foram assassinados. Os sindicalistas iraquianos ainda lamentam a morte de Hadi Saleh, que foi torturado e assassinado em sua casa em Bagdá em 2005, por assassinos tão cruéis que esvaziaram suas armas no corpo dele depois que o tinham estrangulado. Saleh era o mais conhecido dos ativistas sindicais presos por Saddam Hussein, posteriormente exilado, e que retornou ao Iraque para começar a reconstruir os sindicatos. A maioria acha que o assassinato foi obra de ex-agentes, transformados em rebeldes, da antiga polícia secreta de Saddam, a Mukhabarat. Em 2008, Shihab al-Tamimi, dirigente do Sindicato dos Jornalistas do Iraque, foi fuzilado por pistoleiros em Bagdá. Al-Tamimi, um corajoso repórter independente, era um forte crítico da ocupação e da violência sectária [fundamentalista].
Em janeiro a pressão contra os sindicatos nos distritos petrolíferos aumentou. Hassan Juma’a, presidente da Federação dos Empregados no Petróleo do Iraque, criticou os administradores da refinaria pelo corte das rações alimentares que os trabalhadores recebem como suplemento aos seus baixos salários. Horas extras foram cortadas, reduzindo o rendimento ainda mais, e alguns trabalhadores foram rebaixados. Um administrador disse anonimamente aos correspondentes do Iraq Oil Report que temia que alguns pudessem ser transferidos em retaliação: “Estamos sempre sob a ameaça dos funcionários petrolíferos graduados para punir e demitir pessoas que falem sobre os problemas do setor de petróleo.” A declaração de Juma’a foi seguida alguns dias depois por um protesto de trabalhadores na própria refinaria.
Em março, os trabalhadores organizaram manifestações em todo o distrito petrolífero exigindo aumento salarial, empregos permanentes para os trabalhadores temporários, a modernização dos equipamentos e instalações, e a legalização de seu sindicato. Desde a constituição de 2007 que os sindicatos iraquianos tinham recebido a promessa de uma reforma da legislação trabalhista para abolir a Lei 150 e criar uma estrutura em que pudessem funcionar normalmente. Em agosto, porém, a comissão parlamentar, ao analisar o projeto de lei, rejeitou-o. Isso não só fez voltar ao início o processo de reforma, como deixou que a Lei 150 e as proibições sobre a atividade ficassem como a única legislação em vigor.
Em abril os receios de represálias foram concretizados. Cinco dirigentes sindicais foram transferidos da refinaria de Basra para Bagdá, a centenas de quilômetros de distância. Dentre eles Ibrahim Radiy, que havia arriado o guindaste na estrada no confronto em que o sindicato nasceu sete anos antes. Os outros eram Alaa al-Basri, Majid Ali, Khaza’al Hamoud e Faraj Misban. O porta-voz da South Refineries Company, Qassem Ramadhan, admitiu que as transferências foram castigo pelos protestos anteriores dos trabalhadores.
Em junho, a repressão espalhou-se aos portos na parte sul de Basra. Líderes do sindicato dos portuários foram transferidos para mil quilômetros de seus locais de trabalho, e quando os trabalhadores protestaram, a administração chamou unidades militares que cercaram os manifestantes. Finalmente, em 1 de junho, enquanto os eletricitários enchiam as ruas de Basra, a Southern Oil Company distribuiu mandados de prisão para Hassan Juma’a e Faleh Abood Umara, secretário-geral do sindicato dos petroleiros, que ficaram detidos por dois dias. Os dois foram acusados de “retardar o trabalho” e “incitar os trabalhadores a ficarem contra a direção da empresa”, segundo Umara. O porta-voz do Ministério do Petróleo, Assam Jihad, disse ao Iraq Oil Report que “o problema é que os sindicalistas instigam a população contra os planos do Ministério de Petróleo e sua ambição de desenvolver as riquezas do petróleo (do Iraque) utilizando o desenvolvimento externo.”
Como sugar recursos e bilhões manu militarii
O parlamento iraquiano, sob cerco dos sindicatos e partidos nacionalistas do Iraque, nunca foi capaz de concluir a Lei de Hidrocarbonetos, apesar da intensa pressão do governo de Bush. Mas o governo de Maliki encontrou maneiras de deixar as empresas dentro. Nos enormes campos de petróleo em torno de Basra, ele realizou leilões de contratos de prestação de serviços para a Iraqi National Oil Company. Esses serviços incluíam a expansão da produção nos campos já existentes e a exploração de novos. O governo de Maliki prevê que a produção de petróleo possa crescer dos atuais 2,6 milhões de barris por dia para 12,5 milhões em sete anos.
Contratos foram adjudicados a dezoito empresas, incluindo a estadunidense Exxon/Mobil, as européias Shell e Eni, as russas Gazprom e Lukoil, a Petronas da Malásia e estatais chinesas. Uma parceria entre a BP e a Chinese National Petroleum Corporation obteve o contrato para o campo gigante de Rumaila.
Uma ex-membro do parlamento iraquiano, Shetha Musawi, processou o governo pelos contratos, acusando-o de, essencialmente, extorquir créditos dos beneficiários, incluindo 500 milhões de dólares da BP/CNPC, 300 milhões da ENI e 400 milhões da Exxon Mobil, de acordo com o Iraq Oil Report. Alguns empréstimos foram substituídos por 100 milhões de “bônus” não-reembolsáveis. O tribunal iraquiano decidiu que ela tinha de pagar centenas de milhares de dólares para contratar consultores estrangeiros de petróleo para representar sua causa, e depois ela começou a receber ameaças de morte. Quando o processo foi à audiência, ela não compareceu ao tribunal, e o caso foi rejeitado.
Enquanto isso, os militares dos EUA assumiram a antiga base britânica em Basra, convertendo-a em um centro para ajudar executivos de empresas do petróleo e funcionários que começavam a operar no Iraque. Enquanto Musawi enfrentava as ameaças sozinha, e os sindicalistas iraquianos eram expulsos de suas sedes e presos, os executivos que procuravam contratos e paz trabalhista encontraram os militares estadunidenses a seu serviço. O general Ray Odierno, comandante das forças dos EUA no Iraque, disse aos repórteres: “há uma boa coordenação acontecendo entre todas as companhias de petróleo e o campo operacional de Basra”. Odierno previu que, apesar da saída das tropas de combate, os EUA manteriam forças para garantir a segurança lá e nos campos de petróleo. Além disso, empresas de segurança irão fornecer milhares de soldados rasos, pagos aos EUA, para fornecer proteção suplementar aos bens que ele acredita que devam ser defendidos. Isso, sem dúvida, inclui o petróleo.
No mês passado, o embaixador dos EUA Christopher Hill convidou executivos e diplomatas à base, conhecida formalmente como Base Operacional de Contingência, em Basra, para um almoço especial. Eles conversaram sobre as maneiras de facilitar vistos para os empregados que pretendam trazer. O embaixador Hill ofereceu ajuda para facilitar o caminho para a transferência dos bilhões de dólares das empresas. O sindicato dos petroleiros iraquianos, entretanto, não pode nem mesmo abrir uma conta bancária.
De acordo com Kenneth Thomas da Equipe de Reconstrução da Província de Basra da Embaixada dos EUA, “a política do governo dos Estados Unidos neste momento é que o governo dos Estados Unidos no Iraque deve contribuir para facilitar a mobilização dessas empresas, sem olhar a nacionalidade delas.” Bremer não teria colocado mais abertamente.
Os sindicatos iraquianos, entretanto, não entraram na clandestinidade nem pararam seus esforços de organização. De fato, dias após Hashmeya Muhsin e seus companheiros terem sido expulsos de suas sedes, ela, os petroleiros e outros sindicatos de Basra realizaram uma reunião para deixar de lado suas diferenças organizativas e cooperar na resistência ao esforço do governo em extingui-los. Sindicatos na Europa e nos EUA enviaram mensagens de apoio e o presidente AFL-CIO, Richard Trumka, escreveu a Maliki protestando contra as ações sobre os eletricitários.
Os sindicatos de Basra formaram um comitê para a defesa dos direitos sindicais no Iraque. “Vamos continuar nossa luta por todos os meios pacíficos, como protestos e greves”, prometeu Muhsin.
[*] David Bacon é escritor e fotógrafo. Suas fotografias e artigos podem ser vistos em http://dbacon.igc.org.
Artigo original (em inglês) aqui. Tradução Passa Palavra. Fotografias: David Bacon (exceto a última).
É, enquanto aqui no Brasil e em outros países onde imperam a “democracia burguesa” os trabalhadores são fortemente controlados pelas meios de comunicação de massa, pelos partidos políticos de direita e de “esquerda”, pela apatia que as vezes faz parecer que gostam da exploração e da dominação, e pelas direções pelegas dos sindicatos, no Iraque e em outros países similares a situação é de uma “ditadura aberta mesmo”, com leis de “exceção” que impedem até o “reformismo nacionalista” de disputar abertamente os destinos da sociedade iraquiana. Lá, lutam, militarmente como diz no texto, contra a força material norte-americana, a maior do mundo. Será o Iraque hoje o “paraíso do capital”? Reconstrução do país, recursos naturais, trabalhadores duramente controlados pela repressão…
O texto ao menos mantém bem a idéia de que “onde há poder há resistência”. Os sindicatos vira e mexe tentam se estruturar. É uma tarefa muito grande pra classe trabalhadora iraquiana, sem a ajuda dos seus irmãos espalhados pelo mundo… Isso me lembra aquela frase do velhinho barbudo. “Trabalhadores de todo o mundo…”