O filme de Luís Sérgio Person retrata a São Paulo de meados do séc. XX e aspectos de nossa modernidade inconclusa. O elenco conta com Walmor Chagas e Eva Wilma. Por Paulo Henrique Marçaioli

Sinopse

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Carlos é um jovem paulistano de classe média e protagonista da história. Vive numa cidade em que se nota a consolidação do ritmo industrial, com a instalação de montadoras de automóveis, incremento da oferta de emprego e crescimento da população. Sua vida pessoal divide-se entre o envolvimento com mulheres diferentes e o trabalho na indústria de carros: inicialmente como fiscal e posteriormente como gestor.

Certa insatisfação permanente é perceptível em Carlos, mesmo depois de casado, com filhos e estabilidade familiar. Na verdade, a insatisfação cresce e é produto de sonhos frustrados, de expectativas que remetem ao senso comum de um homem de sucesso dos anos 1960. No trabalho, Carlos atua em parceria com empresário que super-explora seus funcionários, sonega impostos e corrompe fiscais do trabalho. O sucesso profissional e financeiro da classe média viabiliza-se pela espoliação de trabalhadores em conluio envolvendo empresários e Estado. A família e o casamento também vão sendo desconstruídos, seja pelo seu aspecto de rotina maçante seja através da traição.

A contradição decorrente das expectativas ou dos sonhos de uma sociedade de consumo e sua experiência prática levam Carlos à fuga: outros personagens reagem às contradições com o suicídio, a corrupção ou a resignação. Se o ideal do American Way of Life é o horizonte da classe média paulistana, este mesmo ideal vai levando o protagonista ao abismo. A sociedade de consumo vai ruindo como um castelo de areias.

Destacamos a bela fotografia do filme, com boas imagens da São Paulo dos anos 60. Podemos ver o comércio nas regiões do centro (muito parecido com hoje em dia), a corrida de São Silvestre realizada durante a noite de ano novo, o trânsito de carros e pessoas no Viaduto do Chá, exposição das regiões ocupadas pelas montadoras ao longo das rodovias de acesso à cidade (áreas, até então, sem adensamento urbano). Surgem as festas e as músicas cantadas nas festas de ano novo e o uso do lança perfume no carnaval.

São Paulo S/A e possibilidades de Análise Histórica

sao-paulo-sa-1A obra data de 1965 e retrata ou narra a vida de personagens que têm suas experiências mediadas por aquele contexto histórico: a São Paulo do desenvolvimento industrial, o advento de novas tecnologias, industrialização, mudanças no campo da cultura e do comportamento.

Identificamos aqui um duplo sentido de análise histórica: trata-se, em primeiro lugar, de refletir sobre o que são e o que significam as mudanças decorrentes da modernização capitalista tardia brasileira (o que significa atentar-se para as imagens da cidade, as tecnologias de comunicação e transporte, as diferenças de gênero, a estrutura da família, etc.); trata-se, em segundo lugar, de analisar/refletir sobre a percepção que o diretor [realizador] Luís Sérgio Person tem daquela conjuntura: como, naquele tempo de transformações, o filme retrata seu respectivo momento histórico (o que significa buscar compreender qual é o sentido que em meados do séc. XX se dava à consolidação do capitalismo industrial e à sociedade de consumo, o que parece ser, aliás, uma intenção importante do autor). Em síntese, assistir a filmes como São Paulo S/A significa tanto uma reflexão sobre a história da São Paulo dos anos 1960 quanto sobre a forma como nos anos 1960 São Paulo interpretava a si. Daí o seu sentido especial, 50 anos depois.

Novas Tecnologias e Modernidade Aparente

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Em todo filme, há a preocupação do diretor em retratar São Paulo levando em consideração as mudanças pelas quais a cidade passa com o desenvolvimento industrial. Os carros, os viadutos, o fluxo intenso de pessoas, o telefone, a televisão e o comércio vão sinalizando uma cidade em vias de desenvolvimento econômico, com os respectivos impactos no mundo da cultura e da sociedade.

Como todo período de transformação, identificamos elementos de progresso e atraso convivendo e estabelecendo contradições, das quais a narrativa se serve para descrever os limites da modernidade brasileira ou, em particular, paulistana. Por exemplo, se a indústria de carros gera o desenvolvimento econômico que impulsiona uma sociedade de consumo, por outro lado, subsiste a superprecarização do trabalho – retratada de forma simbólica numa montadora em que trabalhadores não registrados são escondidos da fiscalização no banheiro [casa de banho].

Podemos, neste sentido, falar em Modernidade Aparente ou inconclusa, levando em consideração que o desenvolvimentismo e o progresso tecnológico retratados no filme não são acompanhados de mudanças estruturais que incidissem sobre o problema da igualdade social. A modernização capitalista brasileira é bastante conservadora (mesmo em relação à Europa, onde há revoluções burguesas) e mantém, lado-a-lado, elementos do progresso e do atraso: o acesso ao consumo por parte da Classe Média e a espoliação dos trabalhadores; a afirmação de leis trabalhistas, fiscalização do Estado nas relações de trabalho e a sobrevivência da corrupção, do conluio entre capitalistas e os fiscais públicos; mudanças no papel da mulher com sua maior participação no mercado de trabalho e a manutenção da centralidade do homem nas relações de família; a formação de uma classe média liberal e a sobrevivência do racismo e do machismo em suas mais diversas manifestações.

Neste ponto, entendemos serem as mudanças históricas retratadas por Luís Sérgio Person referentes à espécie de reestruturação produtiva do capitalismo, que promove transformações aparentes sem implicar em mudanças estruturais, que carrega, em cada período histórico e de forma dialética, elementos do passado e os germes ou as condições para mudanças futuras dentro do presente. E se falamos aqui em modernidade inconclusa, não entendemos nem por um lado a existência atual de “pós-modernidade” (como falar em “pós” algo não concluso?) nem por outro lado a possibilidade de encerramento da modernidade no âmbito do capitalismo.

Algumas idéias sobre trabalho, alienação e São Paulo S/A

sao_paulo_sa11São Paulo S/A fala do desenvolvimento industrial do Brasil dos anos 1950-60. A superexploração do trabalho a partir de conluio entre empresas e Estado (que admite o não registro dos operários e a sonegação de impostos) viabilizaram o enriquecimento de uma nova classe de gestores, que usufrui do desenvolvimento, enriquece e promove uma sociedade de consumo. O desenvolvimento do consumo decorrente da expansão industrial encerra a cadeia produtiva, implicando na criação de mais capital e na consolidação de novos mercados de trabalho alienado.

Ocorre que São Paulo S/A volta-se antes para as reações da classe média paulistana (gestores e empresários) às mudanças decorrentes da reestruturação produtiva do capitalismo. O que podemos identificar aqui é uma certa crise de sentidos, dificuldade de conciliar a plena satisfação da vida frente às contradições decorrentes de um mundo em transformação. As promessas de uma vida de felicidade absoluta enunciadas por anúncios de propaganda e pela importação do american way of life confrontam-se com a insatisfação da vida familiar e profissional.

Neste aspectos, vamos sentindo como se a questão da alienação assumisse um caráter mais universal, como se estivesse vinculada à experiência necessariamente frustrante de uma sociedade baseada numa relação fetichista com relação às mercadorias e carente de sentidos humanos. Se pensarmos que, hoje, o consumo de drogas ilícitas e antidepressivos atinge emblematicamente os EUA e a Europa Ocidental, percebemos que, neste sentido em que abordamos a idéia de alienação, São Paulo S/A possui grande atualidade…

Recomeçar, recomeçar de novo…

A importância de São Paulo S/A reside na preocupação do diretor em identificar transformações, mudanças históricas viabilizadas pela nova etapa do capitalismo brasileiro – industrial, urbano e moderno. A saída encontrada por Carlos frente à sua insatisfação (ou “loucura”) é a fuga, ainda que provisória. A cidade o traz de volta por vias oblíquas (no caso, o caminhão em que pega sua carona [apanha boleia], retorna à cidade de que ele quer escapar). Carlos fala em recomeçar, recomeçar de novo: ao fundo há imagens de fluxo de pessoas nas ruas da capital. Pode-se interpretar esta passagem final sob diversas formas. Não *optamos* entender o recomeço como algo que implique numa espécie de “fim da história”, como se as possibilidades humanas estivessem circunscritas ao modelo de cidade São Paulo/SA e à sociedade de consumo. Podemos entender o reinício como um novo ciclo que abre possibilidades para transformações, não se podendo, porém, “fugir” ou escapar da história. Os homens fazem a história, mas não a fazem como a querem, a fazem de acordo com certas condições históricas.

1 COMENTÁRIO

  1. Acho que o recomeçar do carlos tem mais a ver com a reprodução ampliada de capital do que com esperança de transformação.

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