A revolta cotidiana contra a miséria, a degradação e a opressão impostas pelo capitalismo e o Estado neoliberais geram experiência de práticas sociais, de auto-organização e participação política que contribuem para resistir no México à devastação do capitalismo mundializado. Por Arturo Anguiano
Durante quase trinta anos, o neoliberalismo no México provocou uma profunda devastação social, sem que necessariamente tenha conseguido encontrar uma saída à crise prolongada da economia e da política no país. Mediante uma forte ofensiva do capital contra o trabalho dirigida por um Estado forte que se foi desmontando até se converter em sua sombra, a sociedade sofreu um longo processo de dissolução de todo o social, assim como das velhas formas, condições e relações que mal ou bem lhe asseguravam uma existência e reprodução acima da mera sobrevivência. Porém, em meio a um processo de degradação da política estatal, nos locais de trabalho, na cidade como no campo, nos povoados e comunidades rurais, operários, empregados e toda sorte de assalariados mas também camponeses, pequenos produtores, indígenas, mulheres, jovens e demais não cessam de travar numerosas lutas e resistências, buscando nos fatos recompor o tecido social. Mais ainda, excluídos da política estatal, onde só são vistos como clientelas políticas de ocasião, os oprimidos avançam na reconquista de sua autonomia, vivendo diferentes experiências de auto-organização, autogestão e autogoverno. São experiências que permitem a repolitização acelerada dos oprimidos, mas ao mesmo tempo dão forma a uma nova política que se desenvolve contrariamente e à margem da política do Estado e seus partidos. É, em certa medida, uma política de auto-emancipação que se experimenta desde agora.
A dissolução do social, o ataque às conquistas
A ordem neoliberal conseguiu instaurar no México uma situação generalizada de intranquilidade, de temor, de incerteza. Ainda que trinta anos de estratégias econômicas duras e reformas eleitorais parciais não conseguissem superar a crise estatal nem relançar um novo período de acumulação, impuseram uma relação de forças completamente desfavoráveis aos oprimidos. Estes sofreram o desmantelamento de suas condições de trabalho e viram sua situação de vida degradar cada vez mais. A precarização generalizada e os despojamentos múltiplos (tanto na cidade como no campo) impuseram-se diluindo garantias, regulamentos e conquistas que de qualquer forma garantiram durante anos certa sobrevivência mais ou menos modesta; as populações e comunidades, em particular, padeceram desde a reforma do artigo 27 da constituição, em 1992, primeiro o abandono (o fim das ajudas governamentais), depois a desagregação mediante a individualização da propriedade agrária e sua mercantilização, que generalizaram a espoliação aberta a favor dos grandes proprietários e, sobretudo, das enormes empresas mundiais que se apropriam até dos recursos naturais básicos.
A ofensiva do capital e do Estado contra o trabalho e contra populações e comunidades rurais debilitou estruturalmente o conjunto dos trabalhadores, os oprimidos, que foram submetidos a processos de reestruturação produtiva, perda de direitos e conquistas, fechamento de empresas, maquiladorización [transformação de empresas existentes em meras montadoras – as maquilas – a partir de peças e componentes importadas de matrizes transnacionais, beneficiando-se do baixo nível salarial deste operário mexicano, trabalhando sob precaríssimas condições], políticas como outsourcing (terceirização) e a generalização dos contratos de proteção. A flexibilização do trabalho impôs-se como uma forma de disciplinar e subordinar ferreamente os assalariados: mãos livres e plenas garantias aos patrões, insegurança, intranquilidade e precariedade para o conjunto dos trabalhadores. A exploração, a desigualdade e a espoliação extremas são a manifestação patente do capitalismo neoliberal que acumula riquezas sem paralelo em plena crise e atualiza nos fatos – no Centenário da Revolução mexicana – reivindicações elementares volatilizadas: jornada de trabalho de oito horas, liberdade de associação, direito de greve etc. Exacerbaram-se a exploração, o desemprego massivo e em geral as condições precárias de trabalho e subsistência que simbolizam a explosão do chamado setor informal da economia.
O capital quer tudo. Não só conseguiu impor onde quis condições sumamente precárias que lhe possibilitaram manter e elevar seus lucros em pleno declínio da economia, como ganhou a chamada opinião pública através do controle dos meios de comunicação que condenam os supostos privilégios que restam em certos segmentos de trabalhadores (as antigas prestações e conquistas sociais, salários menos raquíticos etc.), como foi o caso recente dos mais de quarenta mil membros do Sindicato Mexicano de Eletricitários (SME), desprovidos de sua fonte de trabalho de um dia para outro, e glorificam a flexibilidade generalizada entendida como o arbítrio absoluto dos empregadores, proclamados verdadeiros benfeitores, fonte de bem-estar e riqueza para o país. Sob pretexto de criação de empregos e de modernização nacional, o Estado promove e protege a privatização e a espoliação das terras ejidales [correspondente a um ejido, originalmente uma propriedade coletiva], comunitárias e nacionais. Os latifúndios e monopólios reconstroem-se como nunca, com um claro caráter capitalista. Empresas de mineração, agroindustriais e turísticas devastam o território, os bosques, as florestas, os campos, os litorais, inclusive as zonas arqueológicas, apropriando-se (com o aval de um Estado privatizador) dos recursos produtivos, da biodiversidade, da terra, da água, do ar… Garantias, subsídios, lucros desmedidos e impunidade para o capital; precarização, espoliação, expulsões, êxodos migratórios para populações e comunidades rurais e para os trabalhadores urbanos e rurais cercados em condições adversas, degradadas e inseguras.
Condições para a revolta
A prolongada ofensiva neoliberal foi complexa, múltipla, global, e não deixa de se reforçar com o apoio de governos e partidos que, todos, se desvelam por revelar-se como a melhor opção para instrumentalizá-la em nome, e sob a condução, do grande capital, sobretudo financeiro. Enfraqueceu evidentemente o conjunto dos trabalhadores, em particular os grupos sociais tradicionais (sindicatos, organizações camponesas e populares, ejidos etc.), submetidos ao domínio corporativo do Estado. No entanto, se bem se diluíram e se desnaturalizaram até cair na inoperância pela prolongada ofensiva neoliberal, e embora até o chamado sindicalismo e as organizações de massa independentes construídos desde os anos setenta se burocratizaram, enfraqueceram-se e entraram em decadência, o social, mesmo que reduzido e encurralado, não cessou de se recompor por vias muitas vezes inéditas e criativas. A magnitude da ofensiva do Estado e do capital explica a multiplicidade das reivindicações e lutas que estão se desenrolando contra eles.
A resistência individual ou coletiva em toda a sorte de empresas públicas e privadas, através ou por fora das organizações sociais, não deixou de se produzir por toda a nação. A exploração exacerbada, a arbitrariedade dos patrões, o abuso e a impunidade dos organismos laborais dependentes do Estado, sempre em combinação com os primeiros, produziram resistências que ultrapassam o âmbito da produção e do trabalho para estender-se e reforçar-se no bairro, na comunidade, no coletivo, nas ruas etc. Mesmo em setores consentidos pelos governos, tão controlados e precários como as maquiladoras, supostamente armadas à prova de greves e lutas, desenvolvem-se processos de recomposição e organização que incorporam núcleos sociais discriminados como as mulheres e que hoje também incorporam, cada vez mais, trabalhadoras provenientes de vários povoamentos indígenas. As resistências e inconformidades ultrapassam o espaço produtivo para reencontrarem-se nos bairros e comunidades.
O desemprego em massa e o crescimento explosivo do setor informal da economia debilitam certamente, em termos sociais, a classe trabalhadora, o trabalho assalariado regular, formal. Mas se dá origem a formas de trabalho sumamente precárias sujeitas a todo tipo de máfias econômicas e políticas que as transformam em massa de manobra, em clientelas de ocasião dos diferentes partidos políticos e governos, ao mesmo tempo possibilita a sobrevivência de amplos setores excluídos. Estes se organizam ocasionalmente de forma autônoma, desenvolvendo cooperativas de produção e comercialização, a venda ambulante individual e associações de diversa índole; são, de qualquer forma, um setor social massivo que não deixa de crescer, pantanoso, inseguro e bastante explosivo, como em repetidas ocasiões se manifestaram, por exemplo, na Cidade do México.
A busca incerta das formas de subsistência causada pela precariedade generalizada e as resistências a efeitos desarticuladores do neoliberalismo aceleram os processos de recomposição social nos bairros, cidades, povoados e comunidades, o que gera toda sorte de reivindicações defensivas como a luta pelos serviços, pela recolocação de antenas de telefonia; contra as altas taxas de energia elétrica, as desocupações, a construção de postos de gasolina e obras públicas que implicam em desapropriações de moradores, destruição de propriedades, abusos e perigos contra a comunidade e o meio ambiente. Mas igualmente a recusa à criminalização de certas formas de trabalho como o de vendedores ambulantes, trabalhadoras sexuais, pequenos proprietários, trabalhadores de rua em geral, mas também pescadores e agricultores em zonas arbitrariamente declaradas protegidas.
Reivindicações sindicais e setoriais contra as demissões, o desemprego e a simulação dos contratos de proteção etc. ligam-se e combinam-se com as reivindicações sociais de caráter geral ou circunstancial como o repúdio de impostos (IVA) sobre medicamentos e alimentos, o protesto contra a privatização e desmantelamento da seguridade social e da Lei do Instituto Mexicano de Seguridade Social (IMSS), pela defesa do sistema de aposentadoria e pensões, contra a privatização e tecnocratização das universidades; contra a privatização da indústria de energia elétrica e do petróleo etc.
A pilhagem de populações e comunidades e a destruição de culturas e modos de vida camponeses estenderam-se e agravaram-se após a reforma do artigo 27 da Constituição e da entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América da Norte (TLCAN), ainda que o novo movimento indígena e camponês convocado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) estimulasse as lutas de resistência contra as políticas neoliberais hegemônicas no campo, a defesa do território e da terra frente à mercantilização e privatização das terras ejidales, comunitárias e nacionais, assim como contra as diferentes formas de espoliação que acarretam. A defesa da comunidade agrícola e de sua capacidade produtiva, como no caso de Tlalnepantla, Morelos, a luta das populações afetadas pela construção de represas em diversos lugares, a oposição à construção de rodovias, usinas eólicas, complexos turísticos e imobiliários, de obras em geral que prejudicam e expropriam; as ações em repúdio à venda de litorais, zonas costeiras, charcos e mangues; a resistência à exploração irracional e à privatização dos recursos naturais (florestais, aqüíferos, salineiros, corredores turísticos); a defesa da biodiversidade e do milho; a proteção das zonas arqueológicas e do patrimônio cultural ameaçados pelo capital etc. Enfim, as lutas pelos direitos e culturas dos povos indígenas espalhados por todo o país articularam uma resistência que não cessa e que, depois da contrarreforma indígena em 2001, assume um claro caráter político contra o estado, a oligarquia e o capitalismo.
As resistências, as reivindicações, as lutas, os encontros levaram os oprimidos a tratar de recompor o tecido social. Velhas formas de organização como os agrupamentos setoriais, sindicais, comunitários e cooperativos, mesmo decadentes, combinaram-se com formas inovadoras como comitês, coletivos, brigadas, caravanas, fóruns, convenções, redes sociais, meios de comunicação alternativos (rádios, internet, imprensa etc.). A sociedade buscou organizar-se em contracorrente, inventando formas de expressão, de comunicação e de ação, tecendo por sua vez novas relações de solidariedade, intercâmbio e convivência. Novos atores individuais e coletivos surgiram ou se recompuseram: trabalhadores (especialmente de maquiladoras), índios, camponeses, mulheres, jovens, aposentados, ex braceros [trabalhadores mexicanos contratados para principalmente atividades agrícolas nos Estados Unidos, com baixos salários e sem direito a visto de permanência], artesãos, profissionais, cientistas comprometidos, professores, ambientalistas, atores, músicos, defensores de direitos humanos, homossexuais, lésbicas, indivíduos de todas as procedências, meios e níveis, comunidades, populações, bairros etc. Identidades diversas, múltiplas, trataram de afirmar-se, reconhecer-se, amadurecer ao calor de confrontações, relações, encontros, práticas de diversas índoles e alcance.
Do interior de seus locais de trabalho, de convivência, de moradia e de vida, desenvolve-se uma revolta cotidiana. Começa como a oposição e a resistência dos oprimidos contra as degradadas e inseguras condições de trabalho, contra uma existência difícil cada vez mais precária (carestia, serviços de má qualidade e caros, insegurança), assim como pelos abusos e prepotência que enfrentam dia a dia por parte de patrões, supervisores, hierarquias no trabalho, falsos líderes, mas também de funcionários, policiais, membros de partidos e representantes institucionais distantes, manipuladores e ambiciosos. O abuso do poder, a discriminação, o desprezo e a repressão – numa atmosfera de desperdício e enriquecimento ostentatório dos de cima -, se somam à exploração desmedida, à precariedade generalizada e à insegurança atemorizante para alimentar repulsas e inconformidades dos oprimidos. Preparam as condições para a revolta, que brota por todo lado e não pode ser apenas política.
Exclusão da política estatal e politização
Parte fundamental do longo processo de crise – da transição de caráter histórico na qual se moveu o país desde há cerca de quarenta anos -, a ação dos oprimidos, tanto por suas lutas reivindicatórias como por suas exigências de direitos democráticos, de liberdade e justiça, contribuiu à abertura do regime político autoritário simbolizado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que buscou o modo de deter sua perda de legitimidade e de recuperar a estabilidade perdida. O “novo sistema” de partidos políticos, as mudanças nos processos eleitorais e a introdução da alternância partidária nas instituições do Estado (do município à Presidência da República, passando pelo Congresso nacional e legislativos locais), não se traduziram, no entanto, num processo de democratização da sociedade que favorecesse a implantação e aplicação dos direitos sociais e políticos de todos os cidadãos, povoações e comunidades que a compõem. Pelo contrário, os partidos criados ou reforçados pelos enfrentamentos político-sociais acabaram por assimilar-se ao Estado que lhes prodigalizou concessões e prerrogativas que aumentaram seu poder, reproduzindo a tradicional cultura política antidemocrática sustentada no clientelismo e no restabelecimento de uma ordem hierárquica que se assenta na desigualdade, manipulação e exclusão. Os novos partidos e o governo nacional, assim, deram origem a uma classe política ampliada que reproduziu as mesmas concepções, as mesmas práticas, idênticos estilos de governo, afobados por administrar estratégias capitalistas de corte neoliberal vistas como fatalidade. Desta forma, os oprimidos não somente tiveram que enfrentar a ofensiva devastadora do capital nos espaços produtivos, como também sofreram o engano de uma política e de atores políticos que se tornaram estranhos, quando não adversários. Tanto a esquerda como a então direita democrática (representados em particular pelo Partido da Revolução Democrática e o Partido Ação Nacional) se assimilaram a um regime político que – rejuvenescido – continuou sendo excludente, reservado aos atores profissionais, isto é aos partidos legalmente registrados, institucionalizados.
A política estatal tornou-se um autêntico pesadelo onde, por lei, os únicos atores são os partidos, isto é, a oligarquia estatal ou classe política ampliada. Governada pelo marketing político, a política estatal é vivenciada pelos oprimidos enquanto clientes ou espectadores, não como cidadãos com plenos direitos. A corrupção e a despolitização se reproduzem em todos os níveis pelo conjunto dos organismos estatais como uma forma de assegurar o conformismo e a paralisia dos de baixo. Ao que se soma a pretensa guerra contra o narcotráfico travada pelo presidente Felipe Calderón desde o início de seu mandato em 2006, a qual aparece, na realidade, como o enfrentamento brutal entre facções mafiosas enraizadas no aparato estatal (o narcopoder). Ante a ausência de legitimidade e a continuidade de estratégias de devastação social do capital neoliberal, o governo do PAN lançou mão de política do medo e do terror para desorganizar principalmente e sujeitar uma sociedade farta da violência, da precariedade, da ausência de direitos e da impunidade dos de cima. Foi restringida visando a militarização do país e a violação massiva de direitos humanos e políticos, assim como de assassinatos impunes da população.
Tudo para garantir o funcionamento de um regime político fechado no autismo, alheio à democracia, faccioso e para o qual são incômodas e subversivas as irrupções da sociedade – em especial dos de baixo – no espaço controlado e limitado da política.
Desta forma, o confisco do político pelo regime oligárquico rejuvenescido restringiu como sempre no México o espaço público, o privatiza nos fatos, cancelando possibilidades de manifestação dos oprimidos, mas igualmente de desafogo dos conflitos. Excluídos do âmbito das instituições e da política estatal, onde somente os toleram rebaixados como clientelas políticas subordinadas, com direitos restringidos e condicionados, os oprimidos não obstante prosseguiram desempenhando um papel fundamental na longa transição histórica, no interminável processo de crise estatal e econômico-social anunciado desde 1968. Suas irrupções na política – que não cessam de produzir-se – revelaram e impulsionaram transformações decisivas na cada vez mais complexa sociedade mexicana e em suas relações com o Estado e o regime incapazes de democratizarem-se. Nem a violência nem o medo expandidos e reproduzidos pelo aparato estatal e os meios de comunicação, salvo a intoxicação e perturbação que estes últimos propiciam, conseguiram manter os oprimidos paralisados e conformados (submissos).
A gestação de alternativas desde baixo
Excluídos da política estatal e golpeados pelas ondas de choque da ofensiva neoliberal, que visou encurralá-los na sobrevivência e na acomodação, os oprimidos não deixaram de resistir e de encetar lutas reivindicatórias parciais e parceladas, mas igualmente políticas. Reconstruindo em contracorrente formas organizativas, práticas coletivas e novos espaços públicos onde ensaiam formas próprias de participação política, os de baixo vão preparando condições para a alteração das relações de força. Ao marginalizá-los da política (a estatal, a única válida para o regime) e submetê-los aos desígnios do capital mundializado, ao obstaculizar suas resistências contra a precarização e a incerteza generalizadas – desnaturalizando ou desfazendo suas organizações elementares de defesa, recorrendo à repressão e à criminalização do social (atuações, bens, agrupações etc.) com sua sequela de juízes parciais e julgamentos falseados -, toda a oligarquia estatal gera sem dúvida as condições para a revolta dos de baixo, dos excluídos, dos oprimidos. Mais ainda, frente a destruição dos canais formais, institucionais, surgem as opções paralelas, autônomas, outras lógicas e perspectivas alheias às estatais.
Pelo caráter do regime (corporativo, vertical, antidemocrático), as lutas sociais no México sempre se transformam rapidamente em lutas políticas. O social se politiza invariavelmente. As lutas mais elementares por reivindicações materiais só podem avançar despedaçando seus estreitos limites, tornando-se políticas, ao derivar para a reivindicação de direitos elementares como a livre organização, as liberdades de reunião e de manifestação, sempre restringidas, condicionadas, arriscadas. Os direitos individuais e coletivos, sociais e políticos são garantidos pela Constituição, mas tal como a República que a institui são ilusórios. Daí a longa e difícil luta pelas liberdades democráticas e pela defesa de direitos consagrados porém virtuais.
A resistência contra o capital e a opressão politizam rapidamente os núcleos sociais insubordinados, contrariamente a uma classe política que despolitiza e intoxica com toda força os meios de comunicação de massa a fim de assegurar a acomodação e a paralisia da sociedade. Por isso, a miríade de resistências, por vezes moleculares e entrecruzadas, converte-se numa verdadeira revolta cotidiana da sociedade, dos de baixo, das populações, comunidades e atores coletivos e individuais que a compõem. Frente à exclusão da política e o fechamento ou privatização do espaço público, os oprimidos vão inventando seus próprios espaços e suas formas de participação na política. De fato, as diferentes práticas e compromissos desembocam na necessidade de fazer uma política acessível, próxima às pessoas, à vida cotidiana, como expressão da sociedade, da comunidade, do coletivo que se trata. Outra política assumida como uma forma de vida, como a via para atender e resolver os problemas comuns (e até os sonhos) coletivamente, sem subordinações nem hierarquias, sob a responsabilidade de todos e todas.
O confisco do político pela oligarquia estatal afasta os oprimidos dos processos políticos institucionais, como as eleições, marcadas cada vez mais pela abstenção, ou as administrações de governo (municipais, estaduais, nacionais), que perdem cedo ou tarde suas bases sociais e sua legitimidade e até suas clientelas sempre movediças e inseguras. Daí a ausência de continuidade da maioria dos governos, e as carreiras incertas que tiram o sono de todos os políticos profissionais eleitos para cargos de representação institucional. A defesa e o exercício de direitos e prerrogativas legais (e até as lutas reivindicativas) levam os oprimidos a enfrentar os partidos e seus governos, e os interesses e necessidades daqueles se revelam contraditórios ou ao menos circulando em sentidos e dimensões completamente diferentes desses. Duas lógicas, duas perspectivas.
Esta situação favorece a implantação de práticas e experiências de organização autônomas por parte dos setores oprimidos da sociedade. A defesa de direitos e liberdades e as resistências e lutas reivindicatórias chocam-se com as respostas repressivas não só dos aparatos policiais, militares e judiciais do Estado, mas inclusive dos partidos que trocaram suas aspirações democráticas pela intolerância e o medo às mobilizações transgressivas e incontroladas da sociedade. Em Chiapas, por exemplo, as comunidades rebeldes zapatistas hoje não só enfrentam o fustigamento e as agressões de paramilitares apoiados pelos velhos caciques incubados no regime decadente, como também a espoliação e a violência de novos contras que apropriam organizações sociais vinculadas ao PRD e são protegidos pelo governo perredista, supostamente de esquerda. E não se trata de questão de desacordos ou opções políticas, mas de ações criminosas, de uma guerra suja contra os índios zapatistas que dá continuidade à estabelecida pelo último presidente do PRI, Ernesto Zedillo (1994-2000), e retomada pelos presidentes surgidos do PAN.
Nestas circunstâncias, ao contrário do sucedido nos anos setenta e oitenta, em que os partidos políticos (especialmente de esquerda) desempenharam um papel substancial no ascenso das lutas independentes que por sua vez os fortaleceram e os enraizaram socialmente, agora as resistências, os protestos, os ensaios de recuperação da capacidade de organização, de expressão e até de decisão dos diferentes componentes da sociedade mobilizados aparecem também como luta contra a ingerência dos partidos políticos nos processos e mobilizações. A autonomia se reivindica contra o Estado, mas igualmente com respeito aos partidos e políticos profissionais que integram a cada vez mais indiferenciada classe política ampliada. Mais que identificar-se com e defender as instituições estatais (compreendidos os partidos), as lutas e resistência expressam em geral a desconfiança para com todas elas, consideradas hostis. Isto não significa uma recusa social das expressões políticas e ideológicas inclusive de esquerda, a “despolitização” ou o fim dos programas políticos de longo prazo (a reatualização do pragmatismo), mas ao contrário a rejeição de atores que se consideram parte do Estado, da oligarquia estatal subordinada à oligarquia do dinheiro, ao capital mundializado. Se antes as instituições estatais eram interlocutoras ou mediadoras obrigatórias, agora resultam ameaçadoras, o que mostra sua degradação e deslegitimação, a perda de confiança nelas.
A criminalização de formas de resistência, mobilização e inconformidade dos oprimidos (greves, bloqueios, ocupações, concentrações, retenção de funcionários, caravanas etc.) aprofunda e agrava o conflito e a ruptura de fato entre aqueles e os partidos, atores formais da política estatal. Doravante, as mobilizações e irrupções dos oprimidos no amplo espectro da política correm o perigo de romper a ordem e por isso mesmo se realizam sob a ameaça repressora simbolizada pela agressão desmedida à Frente Popular em Defesa da Terra de Atenco e a intervenção militar (disfarçada de policial) contra a rebelião da população de Oaxaca em 2006.
As resistências e lutas de todo tipo são sinônimos de rebelião, de revolta, de transgressão da ordem e suas regras. Ante a legalidade conveniente que prevalece em benefício dos de cima, vão-se desenvolvendo entre os oprimidos – à margem do Estado – práticas e normas que se sustentam na igualdade, na justiça e na liberdade; formas democráticas de organização, de convivência, de troca, comunicação e tomada de decisões em espaços públicos coletivos. Apontam para a implementação de outra forma de fazer política distinta da estatal, sem profissionais nem especialistas, sem representações não controladas que simulam e enganam, com prestação de contas e revogação de mandato.
As experiência autônomas e auto-organizativas brotam e se desenvolvem por todas as partes, refazendo o tecido social em meios muito diversos e entre atores bastante diferenciados, com uma miríade de identidades singulares e de trajetórias, mas unidos pela precariedade, a exploração, a exclusão (e mesmo proscrição) e sobretudo por seu caráter de oprimidos. As experiências autônomas de resistência se realizam através de diferentes e singulares opções de organização sempre coletivas, sob o selo (ou a maneira) dos atores envolvidos e dos espaços públicos que vão construindo. Não há regras nem modelos, mas as tendências que brotam de baixo reproduzem experiências ancestrais dos oprimidos, combinando-as com práticas atuais que podem resultar inovadoras num meio não democrático como o mexicano. A democracia a partir de e por baixo parte da igualdade, da tolerância, da aprendizagem e do respeito comuns, mas também da troca de experiências e conhecimentos, da informação e comunicação. Por isso tem um papel privilegiado no desenvolvimento dos espaços autônomos o surgimento de meios de comunicação alternativos (dos espaços da Internet às rádios comunitárias, passando pelas publicações impressas) ligados aos movimentos, coletivos, populações e comunidades. É esta também uma revolta contra a ditadura mentirosa e alienante dos meios de comunicação eletrônicos, cúmplices e copartícipes do poder.
Se nas cidades se abrem espaços coletivos onde a vida se enriquece e politiza, onde a política se vive como resistência, como crítica, como explosão de culturas, como busca de afirmação e reconhecimento de identidades proscritas ou menosprezadas, em povoados e comunidades estão-se produzindo alguns dos experimentos mais significativos na perspectiva da emancipação dos oprimidos e já não somente de resistência. Por exemplo, experiências como a Polícia Comunitária no [estado de] Guerrero, o Município Autônomo de San Juan Copala no [estado de] Oaxaca, as formas ancestrais de autogoverno de distintos povos originários, como em Sonora e Michoacán, e evidentemente a construção da autonomia nas comunidades rebeldes zapatistas em Chiapas (os Caracoles [regiões organizativas das comunidades zapatistas] e as Juntas de Bom Governo, que incorporam os municípios autônomos [zapatistas]), que possibilitam o controle do território, seu reordenamento e o exercício de formas de autogestão e autogoverno que reforçam e amadurecem os processos sociais, culturais e políticos que se desenvolvem. Realizam-se processos político-sociais que resgatam e reconstituem em especial os municípios conforme os interesses de povoados e comunidades, sem tomar em conta a fragmentação imposta pelo Estado.
São todos processos à margem da legalidade formal vigente no país e por isso irredutíveis, sujeitos ao fustigamento e perseguição de forças estatais legais (administrativas, jurídicas, policial-militares) ou extralegais (como os paramilitares). Vão construindo em contracorrente formas de democracia, justiça e liberdade que se experimentam da perspectiva dos oprimidos; gestam sua própria legalidade, suas formas de justiça, suas “instituições” (comissões, governos, coordenações etc.), regidas pela solidariedade e a igualdade, sem hierarquias impostas, apoiadas na defesa da propriedade coletiva da terra (muitas vezes recuperada, como no caso dos zapatistas) e até de formas de trabalho, produção, cooperação e troca que incidem na reformulação das relações sociais (e políticas) comunitárias. Trata-se, evidentemente, de processos que se desenvolvem senão contrários, à margem, de parte das instituições e processos estatais e em resposta ao arrasamento capitalista do trabalho, do território, da vida das populações, comunidades e núcleos sociais que resistem e se rebelam no México contra o domínio do capital global.
A revolta cotidiana contra a miséria, a degradação e a opressão impostas pelo capitalismo e o Estado neoliberais geram experiência de práticas sociais, de auto-organização e participação política que contribuem para resistir no México à devastação do capitalismo mundializado. Mas também vão preparando condições para gerar e construir alternativas à pretensa fatalidade capitalista. A exploração de caminhos que possibilitem reforçar as resistências até transformá-las em ofensivas frontais contra o capitalismo e o poder dos de cima, atualiza a reflexão e o debate sobre as possibilidades de auto-emancipação dos explorados e oprimidos em pleno século XXI. A luta pelo poder entra em outra dimensão quando se trata de avançar na reconstituição do poder por baixo e desde baixo e desde agora. A democracia, a igualdade, a justiça e a liberdade são conceitos que foram esvaziados de seu conteúdo libertário por governos e partidos tanto de direita quanto de esquerda. Para redefini-los é necessário partir tanto da memória quanto das vivências atuais, da multiplicidade incontável de experiências de resistência, de práticas sociais, de organização nos espaços da política dos oprimidos (territoriais, sociais, culturais etc.), mas igualmente dos experimentos na produção e na sobrevivência (local, regional, setorial, nacional, mundial) num meio adverso como é o capitalismo, em crise, mas ainda hegemônico.
É tempo de resistir, mas também de refletir, debater, criar e construir.
[*] Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Congresso Marx Internacional VI, realizado na Université de Paris Ouest Nanterre, de 22 a 25 de setembro de 2010. O autor é professor-investigador da Universidad Autónoma Metropolitana (México)
Original em: [http://www.vientosur.info/documentos/La%20revuelta%20cotidiana%20corregido.pdf]