Camponeses recém assentados em Lerroville se valem da união para enfrentar problemas do dia-a-dia. Por Felipe de Souza

“Ele é mais um dos bandidos do MST. Eu sei quem ele é. Eles só querem ganhar dinheiro”.

Isso foi dito pelo motorista quando mencionei José Damasceno, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra no estado do Paraná. Falei de Damasceno porque estávamos em dúvida se realmente havia sem-terra no local exato indicado por ele – que também me deu autorização para visitar o assentamento Eli Vive, o mais próximo de Londrina, localizado no Distrito de Lerroville.

O MST estava a cerca de 10 km do distrito, na antiga fazenda Guairacá. Os sem-terra a haviam ocupado no final de fevereiro de 2009. Não houve atritos, porque o dono da propriedade de 5,8 hectares concordou em vendê-la ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – o INCRA. As 500 famílias foram assentadas em agosto desse ano. Ou seja: eles começaram a receber auxílio e recursos do governo federal para a criação e manutenção de uma infra-estrutura que permita um modo de vida decente.

Estandartes vermelhos e barracas de lona

luta-3Já na estrada de chão, nos deparamos com pequenas bandeiras vermelhas indicando o caminho. Depois de algum tempo de caminhada, chegamos a uma guarita. Mais adiante, um grande barracão de madeira. Na parede, o nome do lugar – em vermelho, novamente: “Assentamento Eli Vive”. Ao fundo, centenas de barracas de lona e madeirite. Acima das barracas, dezenas de estandartes vermelhos, interrompidos por um círculo branco no meio. Dentro do círculo, o mapa brasileiro e o desenho de um casal camponês – o homem com uma foice em riste, e a inscrição: “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – Brasil”.

Algumas tendas tinham varandas improvisadas, outras comportavam pequenos galinheiros ou até pequenos fornos de barro para assar pão. Não foi incomum encontrar motos e carros estacionados – nenhum deles último modelo. É necessário cavar valas ao lado dos abrigos – caso contrário, a água da chuva entra na barraca.

Entre as tendas, uma trilha principal, sinalizada por uma placa: Rua Emiliano Zapata. Um homem trabalhava em cima de uma escada, ajeitando a lona de sua barraca. As pessoas andavam tranquilamente. As roupas são simples e os rostos, envelhecidos antes do tempo.

O homem da guarita nos apontou a barraca de Sueli – uma das líderes locais que Damasceno tinha indicado. Não demoramos a encontrá-la. Uma senhora, de aparência comum, passou a mão nos cabelos grisalhos e nos cumprimentou animadamente. Atrás de sua camiseta vermelha havia a inscrição: Brigada Che Guevara. Quando perguntei sobre as brigadas mais tarde, foi-me explicado que cada uma delas é formada por 50 famílias, totalizando 10 brigadas. Dentro de cada brigada, há o núcleo, composto por 10 famílias. As propostas e posicionamentos das brigadas são decididas após as 50 famílias se reunirem. No estágio seguinte, todos os núcleos do assentamento se reúnem para debater e chegar a consensos. Assim é administrada a vida no assentamento.

“As crianças estão saindo da escola agora, seria interessante vocês darem uma olhada”, disse Sueli, e nos levou até um conjunto de pequenas casas de madeira que funcionam como salas de aula, um pouco afastados da aglomeração de barracas de lona. Nas proximidades, crianças corriam. A camiseta de um dos garotos, da Brigada Eli, trazia na estampa a foto de um homem. Explicaram-me que se trata de Eli Dallemole, camponês sem-terra que foi assentado no município de Ortigueira. Em março de 2008, foi executado a mando dos latifundiários. O assentamento foi batizado em sua homenagem.

As supostas escolas de terrorismo

“É uma escolinha itinerante”, disse Sueli. As escolas itinerantes do MST são montadas e desmontadas na medida em que o acampamento se move, e os garotos continuam a ter aulas nesse período. Com o processo de assentamento, essa escola em particular está em vias de se tornar fixa. Por isso, talvez seja possível expandir a capacidade de formação, criando classes da quinta série do Ensino Fundamental até o Ensino Médio – atualmente, quem passa da quarta série segue os estudos em Lerroville. Os professores são moradores do Eli Vive, mas estuda-se a possibilidade de chamarem docentes do distrito para participar da instrução das crianças.

Aline é uma das professoras, e divide seu tempo entre ensinar as crianças da quarta série e continuar seus próprios estudos em Lerroville – atualmente, o segundo ano do ensino médio. Ela explica que o ensino é encarado como um todo, sem a divisão tradicional entre disciplinas. O professor prepara um assunto a ser discutido, e a partir daí pode ensinar Língua Portuguesa, História, Matemática e Biologia simultaneamente. Enquanto conversamos, um grupo de crianças limpa as mesas e cadeiras. Elas parecem animadas, carregando baldes de água, sabão e panos de limpeza. Garotos de 6, 7 anos juntos realizando uma tarefa que muitos considerariam ingrata – e nada indicava que estavam lá a contragosto. “A criançada gosta de aprender e é muito animada”, disse Aline.

Essa limpeza conjunta de móveis foi a primeira imagem que vi de algo que seria tão presente nesse lugar quanto a cor vermelha: uma espécie de senso de coletividade e objetivos em comum que chega a ser bizarro se comparado com o que muitos confundem por “natureza humana”: pegue o máximo que puder e deixe os outros se virarem sozinhos. Em um gramado nas proximidades, alguns garotos e garotas riam e corriam jogando queimada na aula de educação física. Outra professora me explicou: “eles aprendem a pensar nos outros desde pequenos, então essa coletividade é natural pra eles. A gente ensina que, para ficarmos realmente bem, os outros também têm que estar bem”.

O que vi foi muito distinto da imagem que o brasileiro médio tem das escolas itinerantes. Ora, quem está habituado a ler revistas como a Veja ou jornais como o Estado de S. Paulo provavelmente coloca as salas de aula do MST no mesmo saco que células terroristas islâmicas. Inclusive, a Veja fez exatamente essa comparação, alguns anos atrás. Quando falo dessas acusações, as professoras riem. Apontam as crianças e brincam: “É, a gente ensina guerrilha pra eles. Olha pra isso, isso parece terrorismo?”

A política como algo natural

A noção política também parece estar enraizada. Enquanto conversávamos, uma pequena garota de cabelos claros nos rodeava. Ela nasceu em meio aos sem-terra. Depois me falou que seu nome é Isabela Santos, e que em junho próximo completará oito anos de idade, mas parece não saber o dia exato do aniversário. Sua mãe tem 22 anos – aqui as pessoas se casam e constituem família muito cedo. Enquanto ela nos mostra os porcos e galinhas atrás do refeitório da escola, mencionou que se tivesse idade, votaria em Dilma Roussef. A menina se orgulha: “todo mundo aqui no assentamento votou nela”.

luta-2Embora à primeira vista um comentário político feito por uma criança possa causar estranhamento, isso é conseqüência natural de quem nasce dentro de um dos maiores movimentos populares do planeta, cuja luta política faz parte do cotidiano. Conversei a respeito das eleições com as professoras, que se disseram aliviadas com a vitória da petista. “Ela era a nossa candidata. Ela não vai criminalizar a gente do jeito que o Serra faria”.

Mas a melhor explicação foi dada por uma dona de casa que esperava seu filho na porta do refeitório da escola. “A gente não concorda com tudo que a Dilma fala. Ela não foi a candidata perfeita e nem vai ajudar a gente o tempo todo. Mas foi bom ela ter ganho, porque, desse jeito, a gente tem mais chances de conversar com o governo e conseguir algumas das coisas que queremos. Se o Serra ganhasse, seria mais difícil a gente trabalhar”.

A Farmácia

Depois de comer a merenda no refeitório da escola, Sueli nos levou para andar entre as barracas, enquanto a farmácia do assentamento não abria. “A gente usa os troncos de madeira pra fazer o esqueleto, depois colocamos a lona. A minha barraca, eu consegui fazer em 4 dias. Minha mão ficou cheia de calos, mas eu consegui.” Ela me mostra um pequeno galinheiro, ao lado de uma das barracas, e uma pequena horta de cebolinha verde. Cada um tem sua pequena área de plantio. Parte do excedente eles tentam vender em Lerroville, enquanto a outra parte é guardada para emergências no assentamento. “O INCRA não deu quase muda nenhuma pra gente. Tivemos que ir atrás de quase todas as sementes.”

Os pequenos proprietários rurais nas cercanias ajudam com algumas sobras de seus sítios [quintas, terras]. Ao contrário do que pensei, a relação do Eli Vive com a população do distrito é tranqüila. As professoras relataram que os lerrovilenses costumam fazer doações de alimentos, roupas e remédios.

Talvez o apoio se dê pelo fato de que os próprios moradores do assentamento sejam originários de Lerroville e arredores. Essa configuração está mudando com a chegada de vários sem-terra da região de Cascavel – oeste do Paraná, região onde o MST foi fundado. No caminho para a farmácia, encontramos um dos recém-chegados. Enquanto cortava tocos de madeira com um machado, contou: “cheguei faz mais ou menos uns 15 dias. Como a Guairacá virou assentamento, o nosso acampamento está sorteando pessoas pra morar aqui.”

Começava a chuviscar quando chegamos à farmácia, uma antiga casa de madeira da época da antiga fazenda. Ao lado, há um pequeno bosque, onde as missas são celebradas. “Enquanto a gente não reforma a capela da fazenda, rezamos aqui nas árvores. O padre vem de Lerroville. Pastores evangélicos também, porque aqui o pessoal é bem variado.”

A eletricidade não estava funcionando quando entramos na farmácia, mas era um dos únicos lugares do assentamento – por ser uma das construções originais da fazenda – a ter água encanada e energia. Para as barracas, as pessoas precisam coletar água em baldes, em uma torneira ligada a uma caixa de água, que funciona apenas duas vezes por dia. A energia elétrica é coletada através de alguns painéis de energia solar, mas ainda assim, é fraca.

Quando entramos, vimos um forno a lenha aceso, na cozinha, para o preparo dos xaropes – que basicamente consistem em ervas medicinais fervidas junto com água e açúcar mascavo. Marlene dos Santos é uma das que trabalham na farmácia, que começou a funcionar 14 dias antes de entrarmos no assentamento – a visita se deu em 5 de novembro de 2010. Ela explicou que ocasionalmente aparece algum médico no Eli, e, quando o problema é muito grave, dá-se um jeito de levar o camponês para o distrito. De resto, é tudo resolvido aqui, de forma diferente da medicina tradicional. “Temos alguns remédios químicos, mas só usamos em casos de extrema necessidade. Tudo que fazemos aqui é de graça, não tem nem como cobrar.” A preferência é por alguns ramos de medicina alternativa, como a auriculoterapia, e o uso de ervas medicinais, plantadas na horta ao lado da farmácia. “Por exemplo, para pressão [tensão] alta, usamos chá de alho poró, e geralmente funciona.”

luta-4Pressão alta é comum por aqui, porque normalmente o calor é intenso, e amplificado pelo fato de que as pessoas vivem debaixo de lonas. A deficiência em vitamina C também é rotineira: a dieta do assentamento consiste basicamente em feijão, arroz e algum tipo de carne, sem frutas. A farmácia tenta suprir essa necessidade preparando chás de folha de laranjeira. Outro composto muito preparado é o soro caseiro simples: a falta de água potável dá origem a muitos casos de diarréia.

Outra farmacêutica, Marlene Alves Morais – formada em técnicas de saúde por uma escola do movimento em São Miguel do Iguaçu -, lembra que a anemia é normal no meio deles, algumas vezes devido a parasitas que impedem a absorção de ferro pelo organismo; mas principalmente porque muitas pessoas aqui passaram por vários períodos de fome, trabalho árduo e sofrimento. Sua família conhece bem a situação: ela passou 20 de seus 24 anos vivendo com o MST. “No último acampamento que estive, fomos despejados pela polícia, houve queima de barracas.” Ela, seus pais e seus 8 irmãos saíram apenas com a roupa do corpo e tiveram que dormir na beira da rodovia. Passaram necessidades e mal tinham o que comer. “Por causa disso, minha mãe é traumatizada. Mesmo agora, que temos alguma fartura, ela não desperdiça alimento de jeito nenhum”.

Olhar diferenciado

O modo como os moradores do assentamento encaram a medicina – a cura através do uso direto dos produtos do solo – denuncia a forma diferenciada como eles olham a terra. Para esses camponeses, uma área fértil não se trata apenas de um meio de ganhar a vida, mas sim da própria reprodução da existência. Tudo que é necessário ao bem-estar de uma vida digna sai da terra. E os moradores do Eli Vive mantêm uma mentalidade de união, em torno de um objetivo comum: a luta pela manutenção e divisão justa do lote que eles conquistaram.

Marlene dos Santos sintetiza essa concepção de vida, que parece ser geral por aqui: “se eu pudesse trocar isso pela vida da cidade, não trocaria de jeito nenhum. Lá não tem nada de coletividade, é cada um para um lado, ninguém liga pra ninguém, ninguém tem nada em comum, ninguém olha pra ninguém. Aqui não. Aqui somos como uma grande família”.

Conflito sem fim

– O processo de assentamento em Lerroville foi realizado sem violência, mas a luta pela divisão justa da terra está longe de acabar. O conflito é tão antigo quanto o país, que sempre teve sua produção agrícola configurada na forma de latifúndios de monocultura, voltados para a exportação. A imprensa participa ativamente da questão agrária brasileira, informando a opinião pública e tomando partido de um dos lados – quase sempre dos latifundiários. A Justiça, comprometida com a manutenção do status quo, dificulta a reforma ao máximo, seja retardando processos de emissão de posse ao INCRA, ou simplesmente impedindo atos desapropriatórios.

– Cerca de 46% de todas as terras do país estão na mão de 1% dos proprietários. Temos 400 milhões de hectares de terras cultiváveis, das quais, cerca de 180 milhões estão ociosas – o equivalente a 3 vezes o território da França.

– Existem no Brasil aproximadamente 11 milhões de camponeses sem-terra – o mesmo número da população inteira do Chile.

– De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra, ocorrem por ano no país cerca de 50 assassinatos de camponeses ligados à luta pela terra.

– Enquanto ainda discutimos questões políticas e ideológicas da questão fundiária, muitos países de capitalismo avançado já realizaram a reforma agrária em seus territórios séculos atrás, reconhecendo o ato como fundamental para o desenvolvimento. Entre eles: Estados Unidos da América, França e Alemanha.

Dados retirados de Sociedade brasileira: uma história, de Rubim Aquino e outros. Editora Record, 2007.

Fotografias: Paulo Henrique Araújo

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