Já que estamos na época dos presentes, o Passa Palavra oferece aqui um inédito de José Mário Branco. Por Passa Palavra
Independentemente de nos organizarmos para lutar contra elas, o povo ensina-nos uma coisa preciosa: também nos faz bem rir das nossas desgraças. Por isso decidimos, nesta época festiva, presentear os nossos leitores com uma interpretação inédita que José Mário Branco, autor, compositor e intérprete português, gravou em sua casa em 1985.
Baseando-se numa conhecida canção antifranquista – que ele tantas vezes cantou nas suas intervenções antifascistas por toda a Europa, Que culpa tiene el tomate -, José Mário Branco canta em “espanholês” umas estrofes de Manuela de Freitas (extraídas da letra “Fado do ceguinho”) acerca do período de refluxo da Revolução dos Cravos. Essa ideia surgiu-lhe, em 1985, porque acabara de regressar da Nicarágua onde, com outro músico português, Fausto Bordalo Dias, José Mário participara num festival de músicas populares do mundo, no 5º aniversário da revolução sandinista.
A canção espanhola, cuja primeira estrofe é aqui cantada a abrir e a fechar, diz:
Que culpa tiene el tomate
Que está tranquilo en la mata
Y viene un hijo de puta que lo
Mete en una lata y lo
Manda p’a Caraca’
E são estas, em português, as estrofes cantadas em “espanholês” (ou “portunhol”):
Temos sorte, portugueses
Que Nosso Senhor nos valha
Sempre Ele arranja uns cabrões
Que nos enchem de razões
P’ra não mexer uma palha
Foi a PIDE e o Salazar [1]
P’ra nos tirar a tesão
Só nos ficava o jejum
Que p’ra não fazer nenhum
Era uma grande razão
Muda o país, vem Abril
Finalmente é nossa a hora
Vem o caos, a confusão
Um cabrão e outro cabrão
E a vontade de ir embora
Cunhal, Soares, Mota Pinto [2]
Crises e contradições
É o Bom Deus que nos valha
P’ra não mexer uma palha
Já nos enchem de razões
Que é que nos falta fazer
Para sair desta merda
Para deixarmos de ser
Uma aposta p’ra perder
E (de) só ganharmos com a perda
Ouçam e divirtam-se!
Notas para os leitores não portugueses
[1] A PIDE era a polícia política da ditadura de Salazar.
[2] Dados de 1985. Álvaro Cunhal, líder histórico do Partido Comunista Português. Mário Soares, fundador do Partido Socialista, então primeiro-ministro. Carlos Mota Pinto, então presidente do Partido Social-Democrata e no governo em aliança com o PS de Soares.
Na fotografia, da esquerda para a direita: José Jorge Letria, José Afonso, tia de José Mário Branco, José Mário Branco, Isabel Alves Costa, José Duarte, Adriano Correia de Oliveira e mãe de José Mário Branco.
El tomate y la lata: Pintura de Andy Warhol, Campbell’s soup can.