Carta-aberta a Evo Morales e Álvaro García, respectivamente presidente e vice-presidente da Bolívia, contra o grande aumento dos combustíveis (“gasolinazo”) e pelo autogoverno do povo boliviano. Por Oscar Olivera Foronda, Marcelo Rojas, Abraham Grandydier, Aniceto Hinojosa Vasquez e Carlos Oropeza [*]

Cochabamba, 30 de Dezembro de 2010.

Senhores Evo Morales Ayma e Alvaro García Linera La Paz

Dirigimo-nos a vocês com esta carta-aberta se bem que provavelmente não a irão ler pois nem saberão dela ou não lhes interessa. No entanto, mesmo que a ignorem, mesmo que não exista, queremos dizer-lhes como nos sentimos hoje, nós que somos muitos e muitas deste povo. Tratamo-vos por senhores porque há anos vocês deixaram de ser nossos irmãos e companheiros, porque se afastaram do povo, não sabem o que acontece aqui em baixo. Os vossos defeitos – que não as virtudes –, que conhecemos, multiplicaram-se por 10 de maneira preocupante, indignante e triste.

Oscar Olivera (de boné, entrevistado por repórteres) com Evo Morales (de camisa verde, à direita de Oscar) durante a “guerra da água” de 2000 em Cochabamba.
Oscar Olivera (de boné, entrevistado por repórteres) com Evo Morales (de camisa verde, à direita de Oscar) durante a “guerra da água” de 2000 em Cochabamba.

Ainda nos lembramos de quando marchámos contigo, Evo, pelo nosso povo, de quando fazíamos campanha para que tu, Álvaro, saísses da prisão; e de quando o vetusto edifício fabril, em Cochabamba, se converteu em nosso quartel-general para conspirar contra os maus governos, com os quais, hoje, o vosso muito se parece: MAU GOVERNO.

Depressa vocês esqueceram que os mandámos para o governo, não para o administrarem, mas sim para o transformarem e mudarem a vida das pessoas. Hoje vocês todos se transformaram e a vida do povo mudou, mas no mau sentido, de mal a pior.

Desde aquele dia 22 de Dezembro de 2005 até hoje, quando choraste, Evo, Álvaro, vocês só trataram de fazer a política do costume, a das prebendas, subordinando e cooptando dirigentes sociais e sindicais, militares e polícias, com dinheiro, com lugares, desqualificando e estigmatizando tudo o que seja crítico, tudo o que dizíamos para poder ser corrigido. Alguns de nós deram-se ao luxo de recusar as tuas ofertas e converteste-nos em teus inimigos ou simplesmente deixámos de existir. Pedimo-vos: poupem-se a isso, preocupem-se mais com as pessoas e menos com os inimigos políticos, criem empregos, indústria, trabalho, construam solidariedade, irmandade, generosidade.

Onde está o teu “mandar obedecendo” que é timbre dos zapatistas? O povo mandou-te pactuar com a direita na Assembleia Constituinte? O povo mandou-te compor o teu gabinete ministerial com neoliberais, oportunistas, incapazes e assessores de organismos de cooperação internacional que nós nunca vimos nas lutas do povo, nem nas ruas, nos caminhos, nas comunidades, nas greves da fome ou nas fábricas? Onde estava a maioria dos membros do teu governo em 2000, em 2001, 2002, 2003, 2005? O povo mandou-te convidar os teus presidentes de câmara [prefeitos], os teus governadores, as tuas “misses” e os teus técnicos neoliberais? Quem é que decide nesse governo? o povo? ou os llunk’us [palavra quechua para lacaio, adulador] que te rodeiam para não perderem os privilégios que o poder lhes dá?

Quem é que continua a controlar a economia do nosso país? os indígenas e os “movimentos sociais”? ou as transnacionais petrolíferas e mineiras, e os grandes banqueiros, que agora ganham mais dinheiro do que em qualquer governo anterior ao vosso, e aos quais tu chamas generosamente “sócios”? Eles são sócios das condições de angústia e mal-viver a que nos submeteram nestes quase cinco anos. Onde estão os milhares de milhões de dólares de reservas fiscais que tu sempre dizes que existem?

Que dizer das nacionalizações que foram um engano à população, indemnizando as transnacionais saqueadoras com o dinheiro do povo? Estas empresas estão a ser administradas pela velha burocracia conflituosa, neoliberal e corrupta.

Álvaro García Linera, actual vicepresidente da Bolívia, numa conferência de imprensa com Oscar Olivera e Raquel Gutiérrez Aguilar em 2002, quando Olivera se juntou à greve da fome para exigir que o governo boliviano retirasse as acusações contra ele [Garcia].
Álvaro García Linera, actual vicepresidente da Bolívia, numa conferência de imprensa com Oscar Olivera e Raquel Gutiérrez Aguilar em 2002, quando Olivera se juntou à greve da fome para exigir que o governo boliviano retirasse as acusações contra ele (Garcia).

Onde está a industrialização do gás [natural] do nosso país? a nova base económica assente no respeito pela Mãe-Terra e no equilíbrio e relação harmónica com a Pachamama [Mãe Cósmica], que tanto apregoas? Acaso não estás a entregar milhares de hectares às transnacionais petrolíferas e mineiras para continuarem a explorar a Mãe-Terra? Impuseste a Nova Constituição Política do Estado aos latifundiários do [departamento do] Oriente?

O modelo económico continua a ser “extractivista” [baseado nas indústrias extractivas], neoliberal, capitalista, tudo ao contrário do teu discurso.

Foi o povo que vos mandou comprar um avião privado de 40 milhões, quando milhões dos “vossos” não têm casa nem serviços básicos? O povo mandou-vos tolerar o narcotráfico que está no seu mais alto auge de sempre e que, a curto prazo, irá converter o nosso povo numa Ciudad Juárez ou numa Medellin? Talvez essa mesma folha de coca que te deu o impulso para chegares à presidência te venha a retirar esse privilégio.

Vocês sabem o que é estar na fila para inscrever os filhos e as filhas na escola, noites a fio, ou receber péssimos cuidados médicos nos hospitais públicos? O povo não tem seguro privado e privilegiado em clínicas para os ricos.

Vocês sabem o que é apanhar um “micro” [pequeno autocarro/ônibus] ou um táxi e ouvir o sentimento do nosso povo? Alguma vez foram aos mercados de abastecimento regatear os preços do cabaz familiar que cada vez está mais longe de ser enchido para acalmar a fome das nossas famílias?

Foi o povo que vos mandou ter tantos privilégios, tantos guarda-costas, assistentes, chefes de gabinete, secretárias, a ponto de ser impossível falar directamente convosco? Quem é que vos paga isso? Quem vos paga a alimentação, os transportes, os seguros de saúde, a segurança, os aviões, as despesas? Nós: o povo do qual, um dia, vocês fizeram parte.

Foi o povo que vos mandou impor um “gazolinazo” [aumento de 82% do preço da gasolina] tão brutal, irracional, sobranceiro, neoliberal, que vai empobrecer ainda mais os que apenas sobrevivem, se é que têm a sorte de conseguir um lugar de comércio ou um emprego?

Felipe Quispe, Evo Morales e Oscar Olivera, em 2003, quando juntaram forças enquanto “Estado-Maior” popular em oposição ao governo de Gonzalo (“Goni”) Sánchez de Lozada.
Felipe Quispe, Evo Morales e Oscar Olivera, em 2003, quando juntaram forças enquanto “Estado-Maior” popular em oposição ao governo de Gonzalo (“Goni”) Sánchez de Lozada.

Vocês sempre disseram que o neoliberalismo fracassou. Acaso o gasolinazo é uma medida de ruptura revolucionária, popular? Não será que o vosso modelo económico fracassou?

Porque têm de recorrer – como fizeram todos os governos anteriores a vocês – a descarregar os vossos fracassos nas costas da população, fundamentalmente sobre os assalariados cujo rendimento médio é 50 vezes inferior ao vosso e cujas necessidades são 100 vezes superiores às vossas?

Que pena… Vocês sempre disseram que o poder está no povo, que este é um governo indígena-popular. Que pena que tudo isso seja uma mentira, uma impostura. LLULLAS! [forte termo do quechua que significa “mentiroso”]

Por sorte, graças às lutas, em várias das quais estivemos juntos, aprendemos algo muito importante: aprendemos a pensar e a agir por nós mesmos para que ninguém nos diga o que devemos fazer, para que mais ninguém possa enganar-nos, para que o voto popular, a confiança e a esperança que foram concedidos nos últimos tempos pelos sectores mais empobrecidos e dignos não se convertam em festa para os ricos, para os poderosos, para os neoliberais disfarçados de ovelhas, para as “misses”. O processo não é propaganda, o processo não é discurso, o processo não é marketing, o processo é mudar a vida das pessoas. E tomem boa nota disto, porque não nos deixaremos enganar por mais ninguém, mesmo que seja gente como vocês que saíram do seio do nosso povo.

Álvaro García Linera em casa de Oscar Olivera.
Álvaro García Linera em casa de Oscar Olivera.

Queremos terminar dizendo o que disse um velho amauta [sábio, mestre] aymara: o indígena não se define pelos traços físicos, nem pela língua, pelo apelido ou pela cultura; o indígena distingue-se por uma atitude de generosidade, de respeito, de reciprocidade, por ouvir os outros.

Perguntamo-vos: vocês têm isso? Daqui de baixo e do lado esquerdo, como dizem os zapatistas, vemo-vos sobranceiros, arrogantes, decidindo tudo, não ouvindo ninguém, discriminando, insultando, desqualificando, caluniando. É assim que querem ficar muitos anos no poder?

O problema é que vocês não compreendem a enorme responsabilidade que assumiram como parte importante deste processo com as pessoas do nosso povo e dos outros povos do mundo: [a responsabilidade] de demonstrar que é possível autogovernarmo-nos, que é possível mandar obedecendo, que é possível construir outro modelo de desenvolvimento, de “bem viver”, que é possível um outro mundo. Este era um processo que vos foi entregue com esperança e alegria. O legítimo dono deste processo é o povo boliviano, as crianças, homens, mulheres, jovens, idosos, do campo e da cidade, cujo esforço não pode ser manipulado, desvirtuado, usurpado, expropriado, traído, subordinado por ninguém, excepto por vocês e os que agora decidem, erradamente, em nosso lugar.

Não nos importam os governos mas sim os povos, e este governo está a perder a base social que tanto nos custou a construir. Assim vai regressar a direita, que combatemos e combateremos.

Para lhes fazer ver que existimos temos de nos mobilizar, e vamos mesmo fazê-lo, não esqueçam.

Mas não nos mobilizamos para nos confrontarmos entre irmãos e irmãs, que foi o que vocês alimentaram nestes anos com a vossa incapacidade, e a propósito aí estão Huanuni, Cochabamba, Pando, Yungas, Sucre… onde se odiaram e morreram tantos irmãos e irmãs, todos filhos da Mãe-Terra.

Oscar Olivera e Evo Morales aquando da eleição de Morales para a presidência em 2005.
Oscar Olivera e Evo Morales aquando da eleição de Morales para a presidência em 2005.

Álvaro, aqui te dizemos: primeiro estão as pessoas, só depois os números e as cifras.

Não nos confrontem, não nos provoquem, não nos dividam nem ignorem. Existimos, somos dignos. Lutaremos contra tudo o que nos afecta na nossa vida quotidiana.

– Revogação do vosso antipopular e nefasto Decreto 748 [o do “gasolinazo”]

– Descolonização do Estado Plurinacional, e

– Que nenhum partido, seja de esquerda, do centro ou de direita, se aproveite ou se intrometa nas nossas acções e decisões.

– Tal como em 2000, como em 2003, Cochabamba e El Alto derrotarão as políticas antipopulares.

Oscar Olivera Foronda, Marcelo Rojas, Abraham Grandydier, Aniceto Hinojosa Vasquez, Carlos Oropeza.

Nota do Passa Palavra

[*] Os subscritores desta carta-aberta são cinco conhecidos activistas dos movimentos sociais de Cochabamba (a “guerra da água” de 2000 e o “gasolinazo” contra o aumento dos combustíveis este ano, que aliás obrigou o governo a recuar). Oscar Olivera Foronda é, ou foi, Secretário da Federação dos Operários de Cochabamba e um dos líderes do protesto contra a privatização da água e agora é um dos líderes do movimento chamado “guerra do gás” pela nacionalização do gás natural. Marcelo Rojas também é líder da “guerra da água” em Cochabamba e sindicalista da empresa pública de água (tem a alcunha “o Banderas” porque protagonizou um episódio, em 2000, semelhante ao da Mãe do Gorki, em que, ainda sem consciência política, se chegou à frente de uma manifestação reprimida para levantar uma bandeira derrubada). Abraham Grandydier é presidente da ASICA SUR, organização popular de distribuição militante da água na zona sul de Cochabamba. Aniceto Hinojosa Vasquez é também militante conhecido de Cochabamba. E Carlos Oropeza é um engenheiro que está há 5 anos ao serviço da ASICA SUR.

Texto original (em castelhano) aqui. Tradução do Passa Palavra.

2 COMENTÁRIOS

  1. Interessante a resposta, porém nela há pontos positivos e negativos. À um governo que se esforça em ser popular e eficiente, são impostas colocações oportunas, mas também críticas injustas e viciadas.

    Aos positivos: a demonstração ativa e enérgica da reação e poder popular na Bolívia, que influenciou e revogou o decreto que lhes desagradou, que sobretudo teria um forte impacto nas economias locais, tendo que o transporte de parte da classe trabalhadora é modernizado e individual, o automóvel. O aumento de 80% é grande demais para ser tolerado, sobretudo pela classe média.

    A subordinação dos movimentos sociais e sindicatos é real e deve ser combatida.

    Aos negativos: entretanto, a alegação dos autores de que se trata de uma medida neoliberal é extremamente equivocada. Nada mais que o Estado intervindo na economia. Sobre o avião privado de 40 milhões, bem, é um instrumento presidencial e estadista, e se lhes desagrada, que tivessem a opção do anarquismo em detrimento ao socialismo.

  2. “Quem diz poder político diz dominação; mas onde existe dominação deve haver homens, uma parte mais ou menos grande da sociedade que é dominada, e aqueles que são dominados detestam, decerto, aqueles que os dominam, enquanto aqueles que os dominam devem necessariamente reprimir, e em conseqüência oprimir os que estão submetidos à sua dominação.
    Tal é a eterna história do poder político, desde que este poder foi estabelecido no mundo. É também o que explica porque e como, homens que foram os democratas mais vermelhos, os revoltados mais furibundos, quando se encontram na massa de governados, tornam-se conservadores excessivamente moderados tão logo ascendem ao poder. Atribui-se, de hábito, essas palinódias à traição. É um erro; elas têm como causa principal a mudança de perspectiva e de posição, e nunca esqueçamos que as posições e as necessidades que elas impõem são sempre mais poderosas do que o ódio ou a má vontade dos indivíduos”.
    (Mikhail Bakunin – Os Ursos de Berna e os Ursos de São Petesburgo – 1870)

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