O povo norte-africano e árabe converteu-se em um ator político que já não pode ser ignorado. Aconteça o que acontecer, já escreveram a história. Por José Antonio Gutiérrez D.
Sem sombra de dúvidas, as esplêndidas manifestações e mobilizações de massa que hoje agitam o mundo árabe representam um dos acontecimentos mais significativos desde o colapso dos chamados “socialismos reais” em 1989-1990. Poderíamos dizer que se inaugura uma nova era para os povos de todo o mundo, não somente por sua radicalidade, mas também pela importância estratégica do Oriente Médio no cenário internacional. O alcance que estas mobilizações podem ter é inimaginável.
O que começou na Tunísia como um protesto contra o aumento do custo de vida, o desemprego e o preço dos alimentos rapidamente se espalhou até converter-se em uma demonstração formidável de poder popular e de desafio às ditaduras senis, generosamente abençoadas pelos dólares dos imperialismos francês e norte-americano. Partindo da Tunísia, as manifestações se estenderam à Argélia, Jordânia, Yémen e Egito [1].
Este fantasma revolucionário que está assolando o mundo árabe fez com que as ditaduras da região tremessem, ao ponto de um velho autocrata como o rei Abdullah da Jordânia, em meio aos primeiros sintomas de descontentamento em seu país, trocar seu primeiro-ministro como forma de se livrar um pouco da pressão antes que a as mobilizações irrompessem em seu reino. Nada está seguro, sequer o vacilante regime colaboracionista de Abu Mazen (M. Abbas), cuja “autoridade palestina” – disposta a ceder tudo em troca de nada – fora recentemente desmascarada, graças ao Wikileaks, em suas vis negociações feitas às costas do povo palestino. Este cenário incerto causa calafrios em Washington, Tel Aviv, Bruxelas, Paris, que durante décadas têm acreditado que a linha dura manteria o povo árabe jogado a escanteio.
Ainda que se possa dizer que estas mobilizações tenham sido “inesperadas”, ao menos em sua extensão e profundidade, são parte de um profundo mal-estar que vem sendo acumulado há décadas e que estava aguardando o momento propício para se manifestar. Ao menos no Egito, estas manifestações vêem coroar cinco anos de lutas locais e parciais, desde greves muito combativas até os pequenos levantamentos de Mahalla e Borollos em 2008. O mesmo ocorre em outros países do Norte da África, onde o sindicalismo se caracterizou por um aumento em seu nível de combatividade nos últimos anos e onde a base militante tem ganho considerável autonomia, apesar das mansas direções. Se a isto somarmos o crescente mal-estar provocado pela “Guerra contra o Terrorismo” e as agressões imperialistas no Oriente Médio, assim como a corrupção, a crescente pobreza e o desemprego, podemos ver que todas as condições para as manifestações existiam desde há bastante tempo, e restava somente a faísca para incendiar este barril de pólvora.
Mubarak cai, o povo permanece! Rumo a um “Argentinazo” egípcio?
O Egito tem sido agitado por manifestações de grande envergadura, que crescem dia após dia. Hoje, 1 de fevereiro, mais de um milhão de pessoas saiu às ruas para derrubar Mubarak. É de se esperar que nos próximos dias estes números continuem crescendo e que as manifestações de rua sejam acompanhadas por uma greve geral. Estas mobilizações lembram-nos as que há uma década puseram em causa o Consenso de Washington na América Latina, reconfigurando o panorama político regional, derrubando mais de um governo e abrindo caminho para experiências radicalizadas de poder popular construído a partir das bases em luta. As palavras de ordem proclamadas pelos manifestantes parecem um eco do “Que se vayan todos!” gritado pelo povo argentino em dezembro de 2001.
Da mesma forma, estes protestos têm sido impulsionados pelas pessoas comuns, sem organizações que liderem a crescente onda de manifestações, que atinge quase toda a população, independentemente de crenças religiosas, gênero, faixa etária ou de tradições políticas; até mesmo a classe média e setores da elite estão se somando às manifestações fundamentalmente alimentadas pelos setores mais empobrecidos do Egito, trabalhadores, desempregados e estudantes.
O bloqueio do acesso à internet e à rede de celulares [telemóveis] não impediu que as manifestações continuassem a aumentar e que as notícias circulassem por outros canais de comunicação, inclusive o tradicional “correio boca a boca”. A repressão policial dos primeiros dias não foi capaz de conter os manifestantes, ainda que se calcule que já existam mais de 300 pessoas mortas. Além disso, quando alguns policiais começaram a se juntar aos manifestantes, Mubarak decidiu colocar o exército nas ruas – mas as imagens de confraternização com o povo em luta não tardaram a circular pelo mundo. Ainda em meio à grande mobilização convocada hoje, o exército assegurou que não reprimiria a população e que suas reivindicações eram legítimas: segundo certas autoridades norte-americanas, alguns oficiais vinculados ao regime estariam tentando desgastar as manifestações mediante a indiferença, mas isto não passa de mera especulação. O fato é que, neste momento, o exército não está reprimindo e tem entregue as ruas às mobilizações. Por quanto tempo? Isso é algo que não sabemos e seria um grande erro que o povo egípcio contasse com a natureza “nacionalista” de seu exército, pois afinal de contas é um exército alimentado por Washington e, como toda estrutura da classe dominante, em última instância seu objetivo é defender o status quo e não derrotá-lo.
Este cenário não deixa outra alternativa ao desanimado Mubarak que avançar com certas reformas de modo a acalmar a situação. Depois de quase uma semana de crescentes manifestações, modificou seu gabinete e anunciou a sua disposição em dialogar com a oposição, com o objetivo de partilhar algum poder. Mas de nada serviram estas concessões de última hora ante a determinação de luta de um povo em fúria e farto de tolerar sua tirania de três décadas: o povo respondeu fortalecendo a manifestação até ele se demitir, dando-lhe como prazo final esta sexta-feira.
Já era tarde demais para mudar o rumo; já não se podia voltar atrás. Agora, a única coisa a discutir é a saída de Mubarak; há alguns minutos ele anunciava na rede nacional de rádio e televisão que não pleitearia outro mandato e que se esforçaria até setembro para assegurar uma transição pacífica. Fica em aberto qual será a reação popular ante este anúncio, mas o povo egípcio sabe que não pode perder o embalo e que dificilmente este momento se repetirá. Podemos afirmar com certeza que este novo intento de esfriar o movimento dará com os burros na água e será abatido pela verdadeira palavra de ordem do momento: “Fora Mubarak já! Não em Setembro, Agora!” Espontaneamente, as massas apareciam nos televisores cantando “Por Deus, Por Deus, que esta seja sua última noite”.
A dimensão ianque-sionista da crise: buscando uma “mudança” cosmética
Não é por acaso que entre as palavras de ordem gritadas na praça Tahrir na cidade do Cairo, epicentro das manifestações, as menções a Mubarak como um “covarde” fantoche dos EUA e de Israel sejam predominantes, ou que Mubarak seja representado por figuras com dólares em seus bolsos e com estrelas de David em seu traje e em sua gravata. O Egito é um dos dois países na região, junto com a Jordânia, que firmou um tratado de paz com Israel e é o segundo maior beneficiário da cooperação militar por parte dos EUA, embolsando nada mais nada menos do que US$ 1.300.000.000 anualmente, somente por este tratado.
Obviamente que os EUA estão preocupados com a situação atual. Suas declarações hipócritas na semana passada, dizendo que esperavam que Mubarak realizasse reformas democráticas profundas, não enganaram ninguém. Tais demandas norte-americanas de reformas ao regime egípcio não só chegaram com três décadas de atraso, como também seu cinismo se evidencia pela sistemática ajuda militar que tem proporcionado à ditadura de Mubarak, o qual jamais teria se mantido no poder por tanto tempo sem o respaldo ianque; e também porque até à pouco Washington não desperdiçava nenhuma oportunidade de lisonjear seu “fiel aliado” Mubarak, como o próprio Obama demonstrou em sua visita de 2009 ao Egito ou quando recebeu Mubarak em setembro passado em Washington.
Por sua vez, o primeiro-ministro de Israel, “Bibi” Netanyahu, já manifestou sua preocupação pelos acontecimentos no Egito, país que tem sido chave no bloqueio medieval a Gaza e que é seu mais firme aliado político e militar na região. Israel não deixa de ver com preocupação que um regime político egípcio que não seja considerado “amigo” teria à sua disposição um modelo de exército desenvolvido graças a várias décadas de ajuda militar norte-americana. Da mesma forma, a instabilidade política regional está tendo grandes repercussões sobre a juventude de Gaza e da Cisjordânia, onde muitos jovens palestinos vêem que chegou a hora de uma nova intifada. Segundo todos os cálculos, seja qual for o regime que se imponha no Egito, haverá um sério revés para a criminosa política de bloqueio contra Gaza, com todas as repercussões que isto possa ter para Israel e para a luta do povo palestino.
Os EUA enviaram Frank Wisner, ex-embaixador e amigo pessoal de Mubarak, para comunicar-lhe que chegara sua vez e que, depois de pesar o custo político de manter seu aliado, acabaram por se convencer de que sua estratégia regional pode ser melhor servida por uma limitada “abertura democrática”. O imperialismo, afinal de contas, não possui amigos e sim interesses. A necessidade de impulsionar esta “abertura democrática” de maneira controlada a partir de Washington tem sido enfatizada por diversos estadistas ocidentais, que têm chamado a atenção para uma transição “ordenada”, eufemismo utilizado para afirmar o intuito de mudar as coisas cosmeticamente, para que nada mude em realidade. Os esforços diplomáticos neste sentido parecem se encontrar em um estado avançado e os EUA entraram em uma fase de contatos frenéticos com setores do exército e da oposição: a embaixadora norte-americana no Egito, Margaret Scobey, já deu início às conversações com o líder reformista Mohamed ElBaradei, o principal candidato para suceder no poder ao tirano Mubarak. Dessa forma esperam, talvez, forjar as condições para uma mudança de regime que garanta os interesses geopolíticos do imperialismo e do regime sionista.
O que preferem ignorar com estes malabarismos diplomáticos é que milhões de egípcios já estão nas ruas e são eles, a essa hora, quem têm a iniciativa nas mãos e quem estabelecerá limites ao processo político posterior à queda iminente de Mubarak. Obviamente, o povo egípcio está consciente de que sua mensagem deve ser escutada em Washington, pois é ali onde reside o amo, do qual Mubarak não passa de uma marionete: por isso que vemos uma imensidão de cartazes em inglês nas manifestações.
Rumo a um internacionalismo com características renovadas
Essas colossais manifestações têm amplas repercussões em todo o mundo e devem nos levar a repensar o âmbito de um novo internacionalismo na era do capitalismo globalizado. Primeiramente, e de forma mais evidente, essa onda de manifestações ocorre em ditaduras submissas aos EUA e que colaboraram de maneira entusiasta com a “Guerra contra o Terrorismo”, o que tem significado uma habilidosa desculpa para suprimir sua própria dissidência interna. Por isso, implica um duro golpe para a estratégia dos EUA no Oriente Médio, a qual está em colapso e caindo aos pedaços. O golpe político que significaria a queda do principal aliado árabe dos EUA, Mubarak, se somaria ao golpe que já receberam no Líbano com a queda de Hariri e a ascensão ao poder de um primeiro-ministro aliado ao Hizbullah, além dos golpes militares que os atingiram incessantemente no Iraque e no Afeganistão.
Quiçá tentem se adaptar a este cenário de transição, substituindo o Egito como seu principal pilar no mundo árabe pela Arábia Saudita, país com o qual os EUA estão assinando neste momento seu maior acordo comercial-militar de todos os tempos, com uma venda de US$60.000.000 em aviões militares, acrescida das negociações que têm mantido em relação a sistemas de defesa antimísseis e de renovação da força naval [2].
Mas, além das óbvias implicações que esta autêntica revolução provoca na estratégia geopolítica norte-americana para o Oriente Médio, o alcance internacional destas manifestações não pode ser minimizado se considerarmos que estão inseridas em um contexto de crise global do capitalismo. Não se trata aqui de um mero episódio árabe, como tentou nos convencer a CNN. Estamos ante protestos cujas origens se encontram em um problema tão universal como é o preço dos alimentos, que foi o catalisador das grandes mobilizações de 2008 em lugares tão distintos e distantes como Filipinas e Haiti. Obviamente, em cada país o descontentamento assume caráter e feições distintas, de acordo com as condições locais, mas devemos nos deter nos fatores comuns em jogo para atingir uma visão de conjunto da floresta, que não seja obscurecida pelos particularismos de cada árvore isolada.
O significado real do que se passa no Norte da África pode ser melhor apreciado com um pouco de perspectiva histórica, entendendo este processo, em última instância, como parte de um processo de lutas inacabado, aberto na Argélia em 1956 em oposição ao colonialismo. Hoje se luta contra o neocolonialismo e o sistema político-econômico que ele gera. Os povos da Tunísia, do Egito, da Argélia, etc. têm demonstrado com sua luta o erro dessa caricatura paternalista e colonialista, que permeia a esquerda ocidental, de uma população incapacitada de lutar devido ao seu “atraso político” (o qual estaria supostamente arraigado em sua cultura e religião). Estão reafirmando sua capacidade política e demonstrando que a luta popular é patrimônio de todos os povos do mundo, e que a luta revolucionária no Egito terá características particulares e haverá, necessariamente, que responder à sua idiossincrasia. Ainda que devamos aprender uns com os outros, não devemos esperar que a nossa visão se ajuste mecanicamente à visão que surge neste momentos das lutas em Suez, em Alexandria ou no Cairo.
As repercussões desta luta devem necessariamente ser globais. O povo árabe está dando um exemplo a ser seguido, não somente para os demais países da região, que é a mensagem que os grandes meios de comunicação buscam nos passar com a clara intenção de conter as consequências destas manifestações. Seu exemplo suscita esperança em todos os povos e é um exemplo a se seguir nos quatro cantos do mundo, independentemente das particularidades que existam e dos discursos sobre os supostos “choques de civilizações”.
Dimensão e limites das manifestações espontâneas
Como já temos afirmado, um exemplo notável desta nova “Intifada” é o seu caráter espontâneo. Sem sombra de dúvidas que a experiência passada de lutas foi consolidando o caminho para estas novas manifestações; sem sombra de dúvidas, a experiência de solidariedade com a luta do povo palestino e contra as aventuras imperiais em países como o Iraque e o Afeganistão consolidaram, ideologicamente, a resistência a estes regimes neocoloniais cúmplices do imperialismo. Mas também é inegável que a luta se desenvolveu sem seguir um plano traçado de antemão e que as massas que tomaram as ruas em vários países árabes não obedecem a um centro nem a líderes carismáticos. É a raiva, a frustração, a fome o que mantém o povo nas ruas, e é um sentimento adquirido de seu poder coletivo o que proporciona a coesão em torno da demanda de mudança do regime.
E este é um dos fatores mais importantes: que o povo no Egito, na Tunísia, na Argélia e em outros países tem tomado consciência de seu poder. E pela primeira vez em muito tempo está exercendo este poder para se converter em sujeito de sua própria história; esta é uma transformação em si revolucionária e nada continuará igual depois destas manifestações, porque o povo se constituiu em ator político autônomo por direito próprio. Como afirma um cartaz que foi visto durante as manifestações egípcias, “Os egípcios já provaram o gosto da liberdade. Não há retorno”.
Mas uma coisa é ganhar as ruas e outra é tomar as rédeas dos meios de produção, das minas, das fábricas, das empresas, das oficinas, dos supermercados. É nestes locais que se disputa a batalha definitiva, a qual não é outra coisa se não uma batalha contra o capitalismo, pois em última instância este regime, ou outros que possam suceder-lhe, estão enraizados neste modelo social e econômico baseado na miséria e na desigualdade.
Quiçá um dos elementos que mais proporciona esperança é que o povo, tanto na Tunísia como no Egito, tem formado comitês populares de maneira espontânea, os quais se converteram de fato em organismos de duplo poder, enfrentando as instituições autoritárias. Graças à espontaneidade das manifestações, a criatividade popular se expressou sem entraves de nenhum tipo e o “soberano” pode demonstrar de forma plena sua capacidade política. Mas a espontaneidade, ainda que tenha permitido o desenvolvimento incipiente destas novas instituições libertárias, gera a seguinte limitação objetiva: na ausência de projetos históricos que se traduzam em programas revolucionários, que possam constituir alternativas estratégicas ao atual sistema político-social, a iniciativa espontânea das massas apenas se desenvolve para cobrir o vazio de poder objetivo, mas não para projetar-se estrategicamente. Assim, o duplo poder é compreendido como uma tática de luta, mas não como o gérmem da sociedade a se construir. É quando se dá este salto que estamos ante um movimento conscientemente revolucionário.
Anteriormente, já fizemos reflexões semelhantes a respeito da experiência argentina [3] e boliviana no início do século XXI, onde a iniciativa popular formou redes sociais horizontais, libertárias, um poder popular efetivamente emanado de baixo, à margem do controle estatal e em clara contradição com o mesmo, para que logo esta criatividade se canalizasse em função da conquista do velho aparelho de Estado. Como expressávamos em um artigo de 2005 sobre a Bolívia:
“várias mobilizações nos últimos anos têm adquirido um indubitável radicalismo, têm posto em causa na prática as próprias bases do sistema e têm esboçado mecanismos libertários e populares de organização e luta. Mas nos momentos decisivos, a visão reformista (o Estado pode ser reformado, se reivindica uma Assembléia Constituinte, se exigem nacionalizações, como se tudo isto fossem soluções por si próprias, ou inclusive, passos invitáveis para tais soluções) tem conquistado terreno e se imposto […] Novamente, o povo boliviano parece não haver alcançado uma consciência orgânica de que as soluções para os seus problemas profundos assenta somente nele mesmo, à margem de instituições concebidas para excluir as maiorias e correspondentes aos interesses das elites republicanas. Esta consciência é a única que pode dar uma projeção estratégica, e portanto revolucionária, às [suas] iniciativas [de organização durante a luta].” [4]
O desafio não é menor; como comprovamos de forma igualmente trágica na Argentina, ante a ausência de um programa revolucionário que permita uma saída definitiva da crise em favor do povo, o sistema – com todos os seus políticos e empresários por detrás – conseguiu se recompor a médio prazo, com suas instituições fortalecidas após a crise. Não pretendemos com isto dar uma receita, de que não dispomos, mas estamos simplesmente indicando o perigo de, na ausência de um projeto forjado pelo povo em luta, restabelecer-se obrigatoriamente o velho regime que se pretendia derrotar.
No caso egípcio, pelo menos, o papel do exército é visto pelo povo como o de um árbitro, o qual pode dar à atual crise uma saída afim aos interesses populares. É necessário reafirmar que nem no Egito nem em qualquer outro lugar do mundo a instituição castrense desempenha um papel neutro ou afim a um projeto emancipador. Confiar a solução política às mãos do exército é um ato suicida. Também a propósito do caso boliviano afirmamos:
“Uma crise institucional e do sistema, que perpetue a incapacidade burguesa para manter uma sociedade funcional, mas que revele a falta de maturidade do proletariado para sacudir o jugo de sua opressão de classe, traz consigo o risco da ordem burguesa manu militari [por obra do exército]. Historicamente, a ausência de uma classe organizada e forte, ao mesmo tempo consciente de seu papel histórico, com projetos que o representem integral e organicamente – abre caminho aos caudilhos militares, sejam de esquerda ou de direita […] Hoje, a falta de visão estratégica e revolucionária em uma classe trabalhadora e em massas populares que se sublevam e exigem seu direito a uma vida livre e digna pode levar ao risco de aparecer o caudilhismo militar, em um momento em que o poder de uma classe se desvanece e o de outra começa a se delinear. Não podemos deixar de ver com um pouco de preocupação que certos setores da esquerda boliviana não encarem com maus olhos uma saída cívico-militar para a crise, ou as declarações do almirante Aranda, que mostram uma certa predisposição para esta saída. Isto confere maior urgência à necessidade de um projeto nascido no seio da classe trabalhadora e que conte somente com seus próprios meios.” [5]
A única lição que podemos compartilhar com nossos companheiros do Egito é que não se devem esperar soluções vindas de cima nem nos estreitos limites das instituições vigentes. As únicas respostas surgirão do próprio povo, que em sua luta vem criando as suas próprias instituições, as quais hão de ser modelo para seu próprio futuro. Nesta luta, é necessário que busquem um espaço para que os diversos atores sociais, políticos e religiosos participantes deste protesto consigam encontrar uma base de acordo, uma plataforma básica, em torno da qual reúnam as reivindicações populares mais profundas.
E para forjar este pacto de luta básico enfrentam uma corrida contra o tempo, pois ainda que as revoluções se desenvolvam em períodos relativamente prolongados, durante os quais o povo adquire experiência de luta e se acumulam tensões, o período de crise revolucionária aberta, em que a realidade social se torna plástica e a criatividade popular pode dar forma a uma visão alternativa de sociedade, é relativamente curto. Desperdiçado esse momento, a iniciativa regressa aos que monopolizam o poder; é nesse breve período que devemos aprender a fazer a balança inclinar o máximo possível para o lado do povo: “A história não demonstra misericórdia com o movimento revolucionário, nunca esperou que se constitua a vanguarda necessária, a direção correta, para que a classe atue como um só bloco; não importa o quanto se possa sonhar como poderia ter sido o movimento. As revoluções, as insurreições são o que são e devemos aprender a canalizá-las em um sentido afim aos interesses populares.” [6]
A crise está aberta; sua resolução está agora nas mãos do próprio povo egípcio e, consoante o que suceder nos próximos dias, dependerá o efeito de dominó nos países árabes. Os EUA e os tiranos da região estão conscientes da necessidade de frear esta escalada em algum momento. Podemos esperar que para isso exerçam todas as medidas diplomáticas e políticas necessárias e que, se estas não produzirem os resultados desejados, acabem em breve por recorrer à força bruta. Mas o povo egípcio tampouco parece disposto a ceder a qualquer tipo de pressões. Os próximos dias serão decisivos para o futuro da região.
O que está claro é que o povo norte-africano e árabe se converteu em um ator político que já não pode ser ignorado. Aconteça o que acontecer, já escreveram a história.
PS. Ao finalizar estas notas, não posso disfarçar minha enorme alegria ante estes acontecimentos. Vivemos tempos de aguda crise e sentimos que as lutas em nossas terras nem sempre vão tão longe quanto gostaríamos. É por isso que esta nova intifada nos devolve a alma ao corpo, nos enche de esperança ante o porvir, em meio das dificuldades que vivemos e que nos recordam que as revoluções começam onde menos as esperamos. A única coisa que podemos fazer, enquanto isso, é preparar o terreno onde quer que nos encontremos.
1º de Fevereiro, 2011
Notas
[1] Sobre a rebelião da Tunísia, verificar o seguinte artigo http://www.anarkismo.net/article/18462 e a seguinte declaração http://www.anarkismo.net/article/18662. [Nota do Passa Palavra: Também sugerimos a leitura do artigo: http://passapalavra.info/?p=34893]
[2] http://www.lavanguardia.es/internacional/noticias/20101….html
[3] Sobre a Argentina, verificar o artigo “Workers without Bosses”, publicado na revista Red & Black Revolution No. 8, 2004.
[4] http://www.anarkismo.net/article/1674
[5] Ibid.
[6] Ibid.
Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves
Publicado originalmente em: http://www.anarkismo.net/article/18678
O texto peca por falar somente povo de tal o tal pais. O conceito de proletariado é esquecido, mesmo quando se fala de internacionalismo.
Mas quem é o “proletariado” senão o povo?!?!?!
Como por aqui se define classe à vontade do freguês, para por exemplo, redefinir o nacionalismo como luta de classes, não espanta que se ponha proletariado entre aspas e se fale em povo sem vergonha nenhuma.
Classe-que-vive-do-trabalho de Ricardo Antunes é um conceito mais apropriado.
Juliana,
Um gerente vive do trabalho? Então ele é proletário? E o burguês que diz trabalhar adoidado para conseguir auferir seu lucro, também ele não vive do trabalho? Com esse critério meio vago, todo mundo que vive do trabalho, alheio ou próprio, vira proletário.
“Se identificarmos o proletário com o operário de fábrica (ou pior: com o trabalhador manual) ou com os pobres, não veremos o que é subversivo na condição proletária. O proletariado é a negação desta sociedade. Não é o conjunto dos pobres, mas daqueles que estão desesperados, aqueles que não têm reservas (les sans-réserves em francês, ou senza riserve, em italiano), que não têm nada a perder senão suas próprias correntes; aqueles que não são nada, não têm nada e que não podem se libertar sem destruir toda a ordem social.
O proletariado é a dissolução da sociedade atual, desta sociedade que o priva de quase todos os seus aspectos positivos. Mas o proletariado é também sua autodestruição. Todas as teorias (burguesa, fascista, stalinista, de esquerda ou “esquerdistas”) que de algum modo glorificam e exaltam o proletariado, reivindicando o papel positivo do proletariado na defesa dos valores e regeneração da sociedade, são contra-revolucionárias. A exaltação do proletariado tornou-se uma das armas mais eficientes e perigosas do capital. A maioria dos proletários tem salários baixos, uma parte trabalha na produção, mas sua emergência como proletariado deriva não de serem produtores mal pagos, mas de serem alienados, de não terem controle sobre suas vidas ou sobre o que fazem para conseguir sobreviver.
Definir o proletariado tem pouco a ver com a sociologia. Sem a possibilidade do comunismo, as teorias do “proletariado” seriam equivalentes à metafísica. Nosso maior argumento é que, toda as vezes em que interferiu autonomamente no curso da sociedade, o proletariado repetidamente agiu como negação da atual ordem de coisas, não ofereceu valores positivos ou papéis, buscou outra coisa.
Sendo produtor de valor, pode destruir o mundo baseado no valor. O proletariado inclui, por exemplo, os desempregados e muitas donas-de-casa, pois o capitalismo utiliza o trabalho desses últimos para incrementar a massa total de mais-valia.
Os burgueses são a classe dominante, mas não porque são ricos. Ser burguês os faz ricos, não o contrário. Eles são a classe dominante porque controlam a economia – os trabalhadores e as máquinas. A propriedade, estritamente falando, é uma forma de poder de classe e aparece em outras variantes do capitalismo.
O proletariado não é a classe operária, mas a classe da crítica do trabalho. É a sempre presente destruição do velho mundo, mas ainda potencialmente, que só se torna atual num momento de tensão social e revolta, quando é compelido pelo capital a ser agente do comunismo. Ele unicamente se torna a subversão da sociedade estabelecida quando se unifica e se auto-organiza, não para ser a classe dominante, como a burguesia o fez, mas para destruir a sociedade de classes. Neste momento, só há um agente: a humanidade. Mas fora de tal período de conflito e do período que o precede, o proletariado é reduzido à condição de elemento do capital, um parafuso dentro de um mecanismo (e é precisamente este aspecto que é glorificado pelo capital, que exalta o operário como parte do sistema social existente).
Embora não isento de obreirismo (reverso do intelectualismo), o revolucionário nem pensa em elogiar a classe operária ou o trabalho manual como felicidade infinita. Ele vê os operários produtivos como uma parte decisiva (mas não exclusiva) porque seu lugar na produção os coloca na melhor situação para revolucioná-la. Somente neste sentido, os proletários (freqüentemente usando gravata) assumem um papel central, pois sua função social lhes permite realizar diferentes tarefas. Mas, com a generalização do desemprego, do trabalho informal, do aumento da escolarização, dos estágios e do trabalho por tempo parcial, da aposentadoria prematura – estranha mistura de bem-estar e opressão, na qual as pessoas passam da miséria assalariada à pobreza assistida, quando a esmola institucional algumas vezes equivale ao mais baixo salário – é cada vez mais difícil distinguir o trabalho do não-trabalho.” Jean Barrot
Povo é massa indistinta que compõe a nação, o conjunto dos eleitores, o conjunto dos indivíduos atomizados arrebanhados pela ideologia nacionalista. No Egito, já se começa a ver aqueles que entre o povo apelam a que se retorne ao trabalho, que se trabalhe muito, e aqueles que insistem nas greves e não se identificam com o discurso patriótico.