Apresentada como uma conquista do povo, a democracia burguesa constitui sobretudo o mais sólido bastião contra as forças que podem ameaçar a ordem estabelecida. Por Raoul Victor

A importância e a repercussão dos movimentos sociais na Argélia, na Tunísia e no Egipto avaliam-se a uma escala mundial. As autoridades chinesas censuram as pesquisas na internet respeitantes à palavra «Egipto» [1]. Enquanto que desde há mais de dois anos o capitalismo em crise impõe aos explorados e marginalizados do planeta uma excepcional degradação das condições de vida, enquanto que as lutas dos assalariados nos países capitalistas mais antigos parecem impotentes e débeis, a explosão social que agitou aqueles países, com a sua espontaneidade, a sua coragem e a sua determinação, constituiu uma lufada de ar fresco, uma demonstração arrasadora dessa realidade simples, a de que os de baixo, quando querem, são capazes de abalar os poderes mais bem estabelecidos.

maghreb-4No ponto de partida da explosão está a revolta dos mais pobres, dos desempregados, dos proletários, mas igualmente de uma parte das classes médias, dos jovens licenciados que também sofrem as consequências do agravamento do desemprego. Em geral, as gerações jovens têm desempenhado um papel de primeiro plano. Trata-se de uma reacção contra a degradação das condições económicas de vida provocada pela crise mundial, mas também contra o reino de terror quotidiano, à ameaça de ser despedido [demitido], de ser preso ou morto, se mostra o descontentamento contra os abusos de uma polícia omnipresente e corrupta, que pratica extorsões em todos os níveis [2].

No entanto, o movimento arrastou também outras camadas populacionais: sectores das classes médias altas, que sofrem as exacções dos poderes instituídos, e mesmo fracções da classe dominante, inclusive nas forças armadas, que encontram assim um meio de se desembaraçar de clãs que monopolizam o poder em detrimento dos restantes.

Os órgãos de informação e os governos de todo o mundo depressa classificaram estes movimentos como «revolução», «revolução de jasmin» no caso da Tunísia, e evidentemente que não o fizeram para lhes abrir a perspectiva da única revolução capaz de pôr termo à miséria que suscitou o levantamento, uma revolução anticapitalista, mas para encerrá-la na via estreita e inofensiva de uma «democratização» da gestão do capitalismo.

O aparecimento espontâneo de «comités de bairro», numa dinâmica de auto-organização, do mesmo modo que a «fraternização» entre a população em luta e o exército, puderam a certa altura fazer com que algumas pessoas evocassem uma dinâmica revolucionária proletária, como sucedeu em 1905 ou em 1917 na Rússia, por exemplo. Mas os «comités de bairro» limitaram-se principalmente — se bem que não exclusivamente — a tarefas de autodefesa contra as exacções das «milícias» de Ben-Ali ou de Mubarak e contra as suas polícias.

Quanto à «fraternização» com o exército, a recusa de disparar sobre os manifestantes não resultou de qualquer revolta dos soldados contra a hierarquia (como sucedeu em 1905 ou em 1917) — o que constitui um dos principais critérios para começar na verdade a falar de revolução — mas de ordens provenientes dessa hierarquia.

maghreb-3O termo revolução pode definir-se de muitas maneiras, consoante se privilegiar o carácter das acções das forças em movimento, os resultados dessas acções ou ainda outros aspectos. Mas, se bem que as lutas sociais estejam longe de ter terminado tanto na Tunísia como no Egipto e que prossigam ou mesmo se desenvolvam greves, não se pode falar de revolução proletária, no sentido histórico do termo.

Poder-se-á então falar de revolução burguesa? Não, porque a burguesia já está desde há muito no poder na Tunísia, tal como no Egipto e em todos os países árabes. Uma revolução democrática? Formalmente, os regimes na Tunísia e no Egipto são democráticos, com constituição, partidos, parlamento, eleições de sufrágio universal, etc. Ironicamente, os partidos de Ben-Ali e de Mubarak têm no nome a palavra «democrático»: União Constitucional Democrática, para o primeiro, Partido Nacional Democrático, para o segundo. Ambos os partidos pertenciam à Internacional Socialista, até à sua recentíssima expulsão, já durante os acontecimentos.

Trata-se de um movimento que contém em si diferentes aspirações e diferentes classes e interesses. Até agora a unidade realizou-se em torno dos objectivos de derrubar o governo constituído e de ampliar as «liberdades». Mas enquanto que para os de baixo se trata de uma luta contra a miséria, a exploração e a opressão quotidianas, para os de cima trata-se de uma luta pela repartição do acesso ao poder e à riqueza, ao mesmo tempo que é criado um aparelho político-sindical capaz de enquadrar, canalizar e esterilizar as lutas sociais.

Democratizar a vida política dos países capitalistas menos desenvolvidos não é simples. Não porque, como dizem as burguesias locais, «o povo não esteja suficientemente educado» (elas sabem pôr imagens nos boletins para fazer os analfabetos votar), mas porque muitas vezes as classes possuidoras são incapazes de se estruturar, de organizar o espectáculo democrático, e de estabelecer ao mesmo tempo mecanismos de alternância na gestão do Estado. À falta de uma economia suficientemente forte e estruturadora, é o aparelho de Estado, e em primeiro lugar as forças armadas, que cumpre o papel de coluna vertebral da organização social do país, e antes de mais, da classe dominante. Mas a gestão do Estado é uma fonte de enriquecimento demasiado importante para não ser alvo da infinita ganância das várias facções dominantes. As próprias forças armadas estão frequentemente divididas e a vida política pode assumir a forma de confrontos entre facções das forças armadas. É o que se passa agora na Costa do Marfim, outro país em vias de democratização, como se passou na Tunísia (contra a guarda pretoriana de Ben-Ali). No Egipto os órgãos de informação falaram a certa altura da oposição nas forças armadas entre, de um lado, a guarda presidencial e a aviação e, do outro lado, as restantes forças armadas.

maghreb-5A democratização da vida política nesses países será difícil e com frequência caótica até que os novos pretendentes ao acesso aos comandos do aparelho de Estado consigam limitar a sua ganância e os seus conflitos internos e organizar um espectáculo democrático credível.

Em vez de terem posto fim ao movimento social que as provocou, as quedas de Ben-Ali e de Mubarak ampliaram-no e intensificaram-no no proletariado de ambos os países. Aliás, no Egipto foi uma nova expansão das greves que levou à demissão definitiva de Mubarak. Das aspirações dos proletários e dos mais pobres, que deram origem ao movimento, nenhuma foi realizada, a não ser a liberdade de expressão e de actuação, que de facto foram — por enquanto — impostas na rua e pela rua. Os proletários da indústria e dos serviços entraram maciçamente em luta por todos os pontos do país. As suas reivindicações são tanto de ordem económica como política, dizendo respeito tanto a questões salariais e a condições de trabalho como à demissão de responsáveis políticos ou de responsáveis de empresas, à abolição das leis repressivas e ao direito de organização sindical.

O proletariado será confrontado com três combates simultâneos: para impor a manutenção das liberdades de expressão e de acção conquistadas na rua; para obter melhorias nas condições de trabalho e de vida; para não se deixar mobilizar, dividir, enquadrar e finalmente paralisar pela variedade de forças democráticas, patrióticas, políticas e sindicais, que prosseguem as suas operações de normalização.

Apresentada como uma conquista do povo, a democracia burguesa constitui sobretudo o mais sólido bastião contra as forças que podem ameaçar a ordem estabelecida.

Para abrirem caminho, as aspirações e as reivindicações dos proletários terão de enfrentar muitos dos que falam hoje em seu nome. Infelizmente, como nos mostra a experiência das numerosas democratizações prosseguidas desde a década de 1970, na Espanha e em Portugal, até aos últimos Países de Leste, o combate é raramente vitorioso.

A utilização das novas tecnologias

maghreb-1Uma das características dos movimentos sociais na Tunísia e no Egipto é a importância do recurso às novas tecnologias de comunicação, especialmente a internet e os telemóveis [celulares]. Os órgãos de informação falaram, a propósito da Tunísia, da «primeira ciber-revolução». Na Tunísia a densidade do acesso à internet é particularmente elevada em comparação com os demais países da região, mas mesmo no Egipto essas novas tecnologias desempenharam um papel importante. Elas permitiram uma propagação fulgurante e uma certa auto-organização do movimento. No fundamental, as mobilizações, a coordenação das acções e a circulação das informações ocorreram exteriormente aos aparelhos dos partidos e dos sindicatos existentes. Na Tunísia, o site Takriz, que desempenhou um papel importante nos acontecimentos, teve quase 2 milhões de visitas só durante o dia da queda de Ben-Ali [3].

Entre toda uma parte dos participantes no movimento, especialmente entre os jovens, que de bom grado se declaram «apolíticos», é bastante generalizada a desconfiança relativamente a toda a espécie de partidos, que pretendem «apoderar-se da nossa revolução». Os novos meios de comunicação permitiram que esta desconfiança se concretizasse e desse lugar a uma liberdade de novo tipo. A este nível, o mais interessante são as experiências, ainda que de âmbito muito limitado, de auto-organização de serviços públicos, como sucedeu na Tunísia com a recolha do lixo. Mas os acontecimentos mostraram também a fragilidade desse poderoso meio de auto-organização. Tanto na Tunísia como no Egipto os governos demonstraram que tinham na prática a possibilidade de interromper à vontade o funcionamento daqueles meios de comunicação. Ainda que isto tivesse acarretado prejuízos económicos colossais, já que a vida de todas as empresas e administrações depende totalmente da internet e dos telemóveis [celulares], ficou clara também a necessidade de inventar soluções para responder a esse tipo de bloqueio.

O papel dos Estados Unidos

É impossível compreender a forma como os acontecimentos se desenrolaram na Tunísia, no Egipto, na Jordânia, no Iémen, etc., sem levar em conta a reorientação da diplomacia norte-americana na região e mais globalmente em relação aos países islâmicos. No seu discurso «histórico» no Cairo, Barak HUSSEIN (tal como ele o lembrou na sua alocução) Obama traçou as principais linhas de um «novo início» nas relações entre os Estados Unidos e «o Islão». Entre elas, indicou explicitamente a necessidade da democracia e a crítica aos regimes que não respeitam os direitos do homem, etc. [4]. Esta pretende ser uma política em confronto aberto com a de Bush e com a imagem de uns Estados Unidos em guerra contra «o Islão». Trata-se de promover a imagem de uns Estados Unidos que querem partir de uma base nova, ajudando e estimulando a vida dos países muçulmanos, em especial no que diz respeito à democracia. No seu recente discurso sobre o estado da Nação, Obama insistiu no facto de que os Estados Unidos devem ser «um farol» para o mundo.

maghreb-6As explosões sociais na Argélia, na Tunísia e no Egipto não se deveram a quaisquer manipulações da diplomacia norte-americana. Elas foram realmente desencadeadas pelo agravamento da miséria. Mas o governo norte-americano, ainda que tivesse sido apanhado de surpresa, reagiu integrando os acontecimentos numa estratégia global, pensada e amadurecida desde há muito, e aperfeiçoada com a chegada ao poder da administração Obama. Os homens que indicaram a Ben-Ali a necessidade de se ir embora do país, o chefe do estado-maior do exército, Rachid Ammar, o mesmo que se recusara a dar ordem de disparar contra a população, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Kamel Morjan, mantiveram-se em contacto permanente com o governo norte-americano durante o decurso dos acontecimentos. São também permanentes os contactos entre a administração norte-americana e alguns sectores determinantes do exército egípcio. O vice-presidente Biden deu abertamente conselhos precisos ao seu homólogo Souleimane.

*

Aquando de uma manifestação em Portugal, em 1975, em plena Revolução Democrática dos Cravos, alguém levava um cartaz que dizia mais ou menos: «Desconfiemos! Temos demasiados amigos!». Este é um aviso inteiramente adequado para os trabalhadores da Tunísia e do Egipto, que contribuíram para pôr no poder os seus amigos do exército, sob o olhar comprometido do império norte-americano.

14 de Fevereiro de 2011

Notas

[1] As pesquisas com a palavra «Egipto» passaram a dar lugar à mensagem seguinte: «Segundo as leis em vigor, o resultado da sua pesquisa não pode ser comunicado». [Veja a este respeito http://passapalavra.info/?p=36246 Nota do Passa Palavra].

[2] O filme O Caos, do realizador [diretor] egípcio Youssef Chahine, descreve bem esta realidade cruel. O elevado número de esquadras [delegacias] da polícia incendiadas e destruídas pela população não se deveu apenas ao papel desempenhado pela polícia nas repressões sangrentas no início dos movimentos actuais. Esta raiva resultou também do ódio acumulado durante décadas de extorsões praticadas sobre a população.

[3] Ver http://www.michelcollon.info/La-Tunisiepremiere-cyber.html

[4] Ver, em inglês: http://www.youtube.com/watch?v=ANk9qydfGe4, em especial a partir do 35º minuto.

Este artigo foi publicado originalmente em Infobref. Bulletin sur la lutte de classe dans le monde, nº 300. Tradução do francês de Passa Palavra.

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