Certamente não há nada de novidade em se usar um discurso ou teoria anticapitalista para fundamentar numa ‘razão revolucionária’ práticas de pretensas burocracias e gestores. Por Leo Vinicius
A polêmica em torno do texto A Esquerda fora do Eixo do Passa Palavra gerou um outro de Ivana Bentes, supostamente em resposta. Nele, nitidamente percebe-se que a autora bebe de um referencial teórico vindo do pós-operaísmo, que tem em Antonio Negri, Michael Hardt, Maurizio Lazzarato e Paolo Virno os nomes atualmente mais conhecidos. Enquanto o foco principal do artigo do Passa Palavra parecia ser o de revelar o que seriam gestores, ou empreendimento capitalista em meio a movimentos sociais, o artigo de Ivana Bentes se limitou a descrever o quadro do que seria o pós-fordismo, a partir desse referencial pós-operaísta. Considerando que buscamos uma transformação em direção a uma organização social em que a gestão da vida, em todas as suas esferas, incluindo a econômica, seja feita por todos, o que implica a ausência de classes e de separação entre governantes e governados, exploradores e explorados, subordinadores e subordinados, é fundamental saber distinguir ou ao menos tentar fazer a distinção elementar entre um empreendimento capitalista e um movimento social, seja de qual referencial teórico se pretende partir.
Antes de prosseguir, para o leitor ter uma noção da minha posição em relação às teorias pós-operaístas, posso dizer que sou no mínimo simpático a elas, em parte por serem conseqüência de um esforço de ir além do já dito dentro de meios anticapitalistas. Sim, concordo que, como afirma Paolo Virno, se um dia foi a organização fordista que deu forma à indústria cultural, hoje é o modelo da indústria cultural que dá forma à organização dos empreendimentos capitalistas. Concordo que o empreendimento capitalista hoje em dia tende a consistir na captura de fluxos pré-constituídos (à empresa). Concordo que hoje tendemos cada vez mais a uma indistinção entre o tempo de trabalho e o tempo de não-trabalho, em termos de produção de valor: é a vida que é posta a trabalhar; e que o corolário dessa nova configuração deveria ser a emergência de novos direitos sociais, para além daqueles constituídos no fordismo, como a desvinculação entre renda e trabalho/emprego. Todas essas concepções expressas, estão ou estiveram no próprio âmago do pensamento de Lazzarato, Negri, Virno…
Ora, o que os pós-operaístas estão dizendo é que o processo de produção capitalista foi além da fábrica, dos locais de trabalho, e engloba toda a vida, toda atividade social. E é preciso ter claro que até mesmo o “ativismo político” é incorporado diretamente ao ciclo de produção de valor, em geral valor da marca, de empresas e produtos. Ilustrativo o caso do artista italiano Graziano Cecchini, que despejou 500 mil bolas de plástico coloridas em um ponto turístico de Roma para protestar contra o problema da coleta de lixo na Itália. Ação patrocinada por uma empresa que vende músicas para celular, com o valor de 20 mil euros [1].
Para não falarmos apenas de exemplos de mega-ferramentas que capturam valor da atividade social (não remunerada) como o Google ou o Youtube (ao colocar um vídeo no youtube um usuário está “trabalhando” para o Google), ou da atividade de coolhunter, podemos ilustrar essa captura com o excelente estudo de caso feito por Adam Arvidsson [2], sobre o lançamento de um novo modelo Fox da Volkswagen, que ficou conhecido como Projeto Fox.
A “classe criativa” como classe de gestores
O projeto consistia no que é chamado em publicidade e marketing de event bureau, eventos que reúnem pessoas e os produtos em um mesmo ambiente, como festas, exibições, competições esportivas etc. No caso, o Projeto Fox duraria vinte dias em três distintas locações de Copenhagen, Dinamarca: um hotel, um restaurante/boate, e um estúdio. A idéia era explorar – e aqui usamos essa expressão propositalmente – a imagem da criatividade urbana underground de Copenhagen, que se tornara notória. Para tanto, muito resumidamente, contrataram artistas e pessoas-chave do underground de Copenhagen e, logicamente, financiaram os eventos. Como Arvidsson mostra e aponta muito bem, o Projeto Fox se apropriou da criatividade, do estilo, da cultura, da linguagem produzidos pelo underground de Copenhagen, na qual os artistas e pessoas remuneradas funcionavam como uma espécie de classe administrativa dessa economia de criatividade, formada por uma rede de produção imaterial não remunerada. O objetivo era ligar as formas de produção criativa (relativamente) autônomas do underground aos circuitos de valor da economia capitalista, o que o projeto conseguiu com sucesso. Importante frisar que apenas uns poucos eram remunerados, enquanto o valor era extraído de uma rede underground muito mais vasta, e da própria vida do ambiente urbano posta em movimento. Essa classe administrativa que bem observa Arvidsson no seu estudo de caso, é certamente aquilo que, usando o conceito de João Bernardo, forma uma classe de gestores, que se apropria da mais-valia (sendo por isso uma classe capitalista). No entanto, não se trata de mais-valia absoluta nem de mais-valia relativa (pois ela não é dada pelo controle do tempo, organização ou ritmo de trabalho). Uma mais-valia que eu então chamaria de mais-valia difusa. Trata-se portanto, para usar uma expressão mais cool, de uma classe de gestores 2.0, os capturadores de mais-valia difusa.
Em meio à revolta que tomou conta das periferias de cidades francesas entre outubro e novembro de 2005, produzindo o espetáculo de milhares de carros queimados e outras coisas destruídas, muitos artigos foram produzidos para tentar analisar ou explicar o fenômeno. Mas o que me pareceu mais interessante passou muito pouco percebido. A certa altura, os próprios jovens locais (ou parte deles, ou alguns deles) filmavam e gravavam os acontecimentos (pois eles melhor do que ninguém sabiam onde iriam ocorrer), criavam equipes de segurança para os jornalistas circularem e agências de entrevistas onde colocavam em contato o jornalista e o perfil que estes buscavam para entrevistar. Tudo cobrado, evidentemente [3]. Seria isso apenas uma histórica tomada de consciência de que sua rebeldia e suas práticas produzem valor, um embrião de “controle operário” do espetáculo ou a formação inicial de uma classe gestora vinda da base, apropriadora de parte do valor econômico que era produzido pela revolta coletiva? Fenômeno talvez muito efêmero para extrair respostas…
A Empresa da Revolução
O período em que participei do movimento pelo Passe Livre em Florianópolis, entre 2004 e 2007, foi muito rico em experiências. L.O. foi uma das principais figuras da Campanha pelo Passe Livre (no transporte coletivo) em Florianópolis na década passada. Reunia um conjunto de habilidades políticas à iniciativa e à entrega. Foi o principal idealizador do que chamou de “A Empresa da Revolução”, que, apesar do nome, nada mais foi do que a tentativa de autofinanciar as atividades da Campanha vendendo principalmente camisetas (com temas de esquerda além do próprio Passe Livre). Havia no horizonte o objetivo de que com a Empresa da Revolução fosse possível também ‘liberar militantes’, ou seja, que eles conseguissem se manter economicamente através dela.
No final de 2004, talvez até mesmo pela precariedade econômica da sua vida entregue à militância, L.O. se direcionou com muito mais obstinação a extrair valor econômico, isto é, renda, através da bandeira Passe Livre e da subjetividade da juventude. Suas parcerias começaram a indicar que sua preocupação maior era essa, e o discurso aparente de esquerda parecia apenas tentar dar uma ‘razão revolucionária’ ao seu empreendedorismo (o mesmo que fazem comumente políticos de partidos de esquerda ou burocratas sindicais para justificar suas atividades não em termos econômicos, mas de transformação social). L.O. acabou afastado e se afastando do grupo amplamente majoritário da Campanha pelo Passe Livre. Em seguida colocou em prática a mal-sucedida Aventura pelo Brasil, nome anódino de uma idealizada caminhada que iria de Florianópolis até Brasília para promover o passe livre estudantil, tentar mobilizar uma juventude e atrair patrocínios e financiamentos, não necessariamente nessa ordem. Assim se sucederam projetos que, teoricamente em nome do passe livre estudantil, tentavam angariar recursos de empresas, fossem quais fossem, e de qualquer um que quisesse investir neles.
L.O. tem sido de anos para cá um dos impulsionadores da Marcha da Maconha em Florianópolis. Declara para quem quiser ouvir que a intenção desse seu ativismo e mobilização juvenil é legalizar o produto com as patentes já encaminhadas.
Negri e os gestores
De fato, como apontam certos críticos, a separação de classes fica um tanto obscurecida em meio aos conceitos pós-operaístas. A definição de proletariado de Antonio Negri e Michael Hardt [4] é por demais vaga (principalmente na medida em que deixam em aberto o que seria estar “subjugado a normas capitalistas de produção e reprodução”), e parece tão ampla a ponto de não definir o que pretende além de abranger dentro do conceito aquilo que apontamos como classe capitalista dos gestores. Abrangência que aparentemente afeta também o conceito de multidão. Provavelmente na tentativa de corrigir essa deficiência ou dar uma resposta aos críticos, Negri, em Cinco Lições sobre o Império, buscou indicar os meios para se distinguir entre os gestores e trabalhadores dentro do conceito de multidão, uma vez que enquanto conjunto de singularidades produtivas na hegemonia do trabalho imaterial, isto é, quando a atividade social como um todo gera valor, ao menos a princípio, o conceito englobaria sem distinção todos na sociedade. A diferenciação entre “o gerente e o operário”, ou entre o gestor e o trabalhador, seria dada então pelo comum: “é somente a afirmação do ‘comum’ que nos permite orientar de dentro dos fluxos de produção e separar os capitalistas, alienantes, dos que recompõem o saber e a liberdade. O problema será então resolvido por uma ruptura prática, capaz de reafirmar a centralidade da práxis comum” (Antonio Negri, Cinco Lições Sobre o Império. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.227).
Em outras palavras, essa separação só se daria através de uma prática que os diferenciaria, na qual os trabalhadores se reconhecessem através do que têm em comum e produzem em comum, contra a apropriação privada dos capitalistas. Assim sendo, não se trataria do fim da luta de classes: “Exploração deverá significar de fato, apropriação de uma parte ou de todo o valor que foi construído em comum. (Este “em comum” não quer dizer que, na produção, trabalhadores e patrões estejam juntos: absolutamente não! A luta de classe continua!) A emergência do comum que se dá no processo produtivo não elimina o antagonismo interno à produção, mas o desenvolve – imediatamente – no nível de toda a sociedade produtiva. Trabalhadores e capitalistas se chocam na produção social, porque os trabalhadores (a multidão) representam o comum (a cooperação), enquanto os capitalistas (o poder) representam as múltiplas mas sempre ferozes – vias de apropriação privada” (idem, p.266-7).
Seria isso suficiente para evitar que o marxismo de Negri venha a se tornar um discurso (pós)moderno usado para justificar velhas práticas? Certamente não há nada de novidade em se usar um discurso ou teoria anticapitalista para fundamentar numa ‘razão revolucionária’ práticas de pretensas burocracias e gestores. O marxismo do próprio Marx teve essa função a direções de partidos e gestores, e no que veio a ser o “comunismo real”. Fazer passar o empreendedorismo, mesmo que das margens ou sobras do capitalismo, como prática de esquerda ou revolucionária, não poderá levar a nada além de outro simulacro de comunismo. O pensamento dos pós-operaístas merece melhor sorte.
Notas
[1] “Ativista lança 500 mil bolinhas de alto de escadaria em Roma”. Folha Online, 16/01/2008. Em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u364102.shtml>.
[2] ARVIDSSON, Adam (2007). Creative Class or Administrative Class? On Advertising and the ‘Underground’. Ephemera, v.7, n.1, feb; pp. 8-23. Disponível em <http://www.ephemeraweb.org/journal/7-1/7-1ephemera-feb07.pdf>.
[3] “Jovens tiram proveito de distúrbio”, Estado de São Paulo, 11/11/2005, p. A18.
[4] Para Hardt e Negri o proletariado é “uma vasta categoria que inclui todo trabalhador cujo trabalho é direta ou indiretamente explorado por normas capitalistas de produção e reprodução, e a elas subjugado” (Império, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 71). Deve-se ter claro também que o conceito de trabalho para eles é amplo, incluindo atividades e fazeres que tradicionalmente são postos na esfera da cultura.
Aê Leo Vinícius! Ressuscitando o L.O.! Está aí um “case” muito mais factível do que o papel que estão dando para o Fora do Eixo nessa história. Seja para o bem ou para o mal… O que só foi possível pelo distanciamento histórico. Creio que este mesmo distanciamento seja necessário agora, em vez de acender tanta fogueira.
Olá,
Gostaria de parabenizar o autor pelo belo artigo produzido em particular e também a equipe do passa-palavra em geral pela iniciativa em problematizar os limites dessa “revolução 2.0”.
Força na luta real, galera!
Turismo pela revolta. Gostei muito do exemplo da França. Um dos grupos de rap mais badalados atualmente e que estão ganhando uma grana enorme é o ODD Future. Eles possuem letras sobre a revolta na França, fizeram daquilo um produto.
Skarnio o Léo não está ressuscitando o LO, mas uma discussão que em Floripa não fizemos ainda nas esferas dos coletivos mais novos como é o caso da Rádio Tarrafa, de 2005 a 2011, vejo que muitas das discussões que se pautavam em táticas e estratégias de não reprodução dos velhos vícios da esquerda leninista, copyleft e movimentos sociais foi se perdendo, ao tempo, que as plataformas corporativas, os gestores e o fetiche pela produção cultural “independente” (nada mais que mainstream em pequena escala)se fortaleceu.
O que o Léo coloca é um dos elementos da discussão, não o único, para uma reflexão sobre o fazer político nos coletivos de mídia independentes do mercado e estado.
O L.O. só não é o Pablo Capilé de Floripa porque uma turma ligada ao DCE da UFSC apareceu antes e ocupou o espaço. Chegaram em cardume trazendo boas novas: na política pretendem-se os evangelizadores de uma tal “nova práxis”; no cenário cultural tornaram-se gestores de eventos variados e de bandas alternativas.
Olá,
Saindo do caso específico de Florianópolis – e olhando, assim, para a temática desenvolvida pelo Léo de forma mais ampla -, é impossível não ler esse texto sem se remeter a outro (de autores ligados à administração de empresas e gestão cultural):
“Equilíbrio em cena: o que aprender com as práticas organizacionais das indústrias culturais”
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-75902009000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
Para quem quiser conhecer mais, eis aí um resumo do artigo (e vejam só a tentativa de teorização de algumas das práticas aqui relatadas pelo Léo)
“RESUMO: Neste artigo, delineamos cinco polaridades que envolvem as práticas organizacionais em indústrias culturais. Em primeiro lugar, os gestores devem reconciliar a expressão de valores artísticos com a viabilidade econômica do entretenimento de massa. Segundo, devem buscar inovações que diferenciem seus produtos sem torná-los fundamentalmente diferentes de outros da mesma categoria. Terceiro, devem analisar e atender a demanda existente e ao mesmo tempo usar a imaginação para expandir e transformar o mercado. Quarto, devem equilibrar as vantagens da integração vertical das diferentes atividades e a necessidade de manter uma vitalidade criativa por meio de especialização flexível. Finalmente, devem desenvolver sistemas criativos para apoiar e comercializar os bens culturais, mas não permitir que esses sistemas suprimam a inspiração individual que está na raiz da criação de valor na indústria cultural.
Palavras-chave: Bens culturais, Arte, Indústria do entretenimento, Criatividade”.
Como arremate do comentário, destaco a epígrafe escolhida pelos autores do artigo citado acima (melhor síntese, impossível):
“… atualmente nos movemos rapidamente de uma era na qual os negócios eram a nossa cultura para uma era em que a cultura será o nosso negócio.” Marshall McLuhan
Abraços – e parabéns pela reflexão, caro Léo.
Mas quando Mauricio Lazzarato diz que esta é única revolução possível – desenvolver o trabalho imaterial -, não seria esse o “regresso” da esquerda (entre aspas pois nunca abandonou) a velha ideia do desenvolvimento das forças produtivas para chegar no reino da abundância e do socialismo? Será que esquecem das relações de produção? Ou a China estaria mais próxima do comunismo, ou aliás, de uma sociedade de livres produtores e livres associados?
A teoria dos pós-operaístas tem servido como ideologia tanto do desenvolvimento nacional brasileiro quanto do neoliberalismo: por um lado políticas públicas para financiar essa flexibilização e, por outro, entregam ao mercado via empreendorismo os novos precários. O que é que vai sair disso aí?
Caro Léo Vinicius,
Fiquei com uma dúvida. Senão não é mais-valia absoluta e nem mais-valia relativa, pois que não é dada pelo controle do tempo, organização ou ritmo de trabalho, o que seria essa mais-valia difusa?
Boa pergunta Tales,
Ela é um anticonceito, que serve mais para mostrar os limites do conceito de mais-valia do que outra coisa.
Chame-se do que quiser, mas existe valor que é produzido pela atividade social como um todo, fora do tempo de trabalho. E esse valor é cada vez menos desprezível. Existe atividade fora do trabalho que produz capital. Como chamaríamos isso?
Mais-Valia Pós-Mais-Valia? Mais-Valia 2.0 ? Mais-Valia Tesuda?
A gente tem toda Liberdade pra escolher o nome que for mais a nossa cara.
Mas, Leo, no seu entendimento, por que essa atividade social não pode ser concebida como trabalho? Apenas pelo fato de ela não ser executada dentro das quatro paredes da fábrica/empresa ou decorrer no tempo contratual de trabalho?
Abraços,
Taiguara
Taiguara, pode-se chamar de trabalho se quiser (ou seja, chamar tudo que fazemos 24 horas por dia de trabalho). Só que para algumas possíveis implicações o problema é que daí misturam-se duas coisas diferentes do ponto de vista da nossa liberdade: uma atividade controlada e subordinada e uma atividade não controlada e não-subordinada. Mas pelo menos hoje em dia, trata-se de apenas uma questão mais filosófica.
Sobre o comentário do Ronaldo, ele tocou numa questão interessante. Os que usaram Negri e cia. para chamar o Passa Palavra de dinossauros teóricos parece que não se deram conta de que o marxismo dos pós-operaístas contém traços muito nítidos de alguns “arcaísmos” do pensamento de Marx, como uma teleologia e a idéia de que é nos locais mais desenvolvidos que há possibilidade de revolução. Fora algumas concepções leninistas que se mantém até hoje. Sobre essa relação com o pensamento de Lenin, recomendo por exemplo o artigo do próprio Michael Hardt no livro que se acha na internet “Resistance in Practice: the philosophy of Antonio Negri”.
Se alguém se interessar em algumas citações em que Negri diz que a ‘multidão’ não pode existir na África ou em alguns lugares no chamado terceiro mundo, depois posto aqui. Não me pareceria nada moderno uma teoria dessas. Tal conclusão é resultado do antiterceiromundismo que está no cerne da metodologia pós-operaísmo, herdado do operaísmo. Sobre isso escrevi algo em http://passapalavra.info/?p=17173
Tenho evitado, neste artigo como noutros sobre o mesmo assunto, intervir numa questão acerca da qual já escrevi muito e já falei muito. Cansei-me. Mas o debate chegou a um tal ponto que não consigo manter-me em silêncio.
Tempo de trabalho é uma coisa, mensuração do tempo de trabalho é outra. Quando se fala em trabalho qualificado e complexo, por oposição a trabalho não-qualificado e simples, isto significa que uma hora de trabalho complexo equivale a várias horas de trabalho simples. Quando se fala de intensificação do trabalho, isto significa que uma hora de trabalho mais intensivo equivale a várias horas de trabalho menos intensivo. O relógio aqui serve apenas para termo de comparação e para mais nada. As medidas são outras.
Na Rússia, nos primeiros anos do regime bolchevista, houve tentativas de mensuração rigorosa daqueles vários tipos e níveis de tempo de trabalho, medindo o dispêndio de energia física e intelectual de cada um e em cada circunstância. Rapidamente foi posto termo a essas tentativas, mas os economistas, os administradores de empresa e os engenheiros de produção têm formas menos exactas mas nem por isso menos eficazes de calcular as diferentes produtividades dos vários tipos de trabalho durante uma hora de relógio. Tudo o que numa empresa diz respeito à organização do pessoal tem a ver com a avaliação das diferentes produtividades de uma hora de trabalho.
Note-se que tudo isto é completamente independente das características físicas do produto. Trata-se apenas de relações sociais, ou seja, da relação de expropriação do tempo de trabalho. E é nessa relação de expropriação que ocorre a mais-valia. Não importa para o caso que os trabalhadores produzam bens sujeitos à força da gravidade e susceptíveis de armazenamento, como nas indústrias clássicas; ou bens que só se podem consumir no acto de produção, como os serviços clássicos; ou bens que não são sujeitos à força da gravidade mas que se podem armazenar, como no trabalho em computador.
Em 1985 publiquei na Revista de Economia Política [São Paulo], vol. 5, nº 3, o artigo «O Proletariado como Produtor e como Produto», onde pela primeira vez formulei a produção de força de trabalho em termos de produção de mais-valia. Mas a forma como apresentei a questão nesse artigo padecia de algumas inconsistências e aperfeiçoei o modelo em 1989, no artigo «A Produção de Si Mesmo», publicado em Educação em Revista [Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte], ano IV, nº 9. Entretanto dei vários cursos acerca do assunto, e o debate com os alunos permitiu-me ir melhorando o modelo até ele chegar à forma que considero final, e que se encontra num dos capítulos de Economia dos Conflitos Sociais [1ª ed. Cortez, 1991; 2ª ed. Expressão Popular, 2009]. Neste modelo toda a vida do trabalhador ou do futuro trabalhador fica inserida no quadro da produção de mais-valia, não só dentro dos muros das empresas e dentro das paredes das escolas como igualmente durante os chamados lazeres, que apresentei como elementos formadores da qualificação da força de trabalho a partir do momento em que se generalizaram os computadores.
E aqui se levanta a mesma questão. Não existem mensurações exactas, mas existem avaliações relativas de produtividade do tempo empregue para formar a força de trabalho, e todas as teorias do capital humano convergem nesta direcção.
O que significa, em conclusão, que estas coisas se devem estudar sobre a base empírica da economia e das teorias de administração e não sobre especulações.
haha isso aí, boa investigação. Mas ainda é preciso uma ciência laica (sem idealismos de esquerda e direita). E também uma que considere a felicidade, o sexo e a transmissão irrefreável do exemplo.
Lucas de Oliveira