Por José Antonio Gutiérrez D.

Sobre a colaboração colombo-venezuelana, as extradições e o seu significado, podem consultar-se os artigos disponíveis através dos links em seguida indicados, e outros também disponíveis no mesmo site: 1, 2, 3, 4 e 5.

Quando em 2009 comecei a denunciar as extradições dos combatentes colombianos, acusados de serem “guerrilheiros”, me deparei com a indiferença frente ao assunto por parte da maioria da esquerda. A captura e entrega “Express” pela Venezuela (ilegal, segundo a constituição venezuelana e DIH) do jornalista da ANNCOL Joaquín Pérez Becerra, justificada pelo próprio Chávez, fez soar o sinal de alerta. No entanto, nós que escrevemos para denunciar esta entrega, solidarizando-se com a vítima, fomos tratados em certos círculos quase como agentes da CIA, ingênuos utensílios do imperialismo, entre outras maravilhas. Agora, a captura e a eminente extradição de Julián Conrado, o “cantor das FARC”, faz com que os ainda incrédulos constatem que estamos frente a uma prática sistemática, uma “razão de ser do Estado”, como o próprio governo bolivariano denomina. Como corolário, a semana começou com operações militares conjuntas colombo-venezuelanas contra o ELN…

As justificativas destas ações de cooperação da Venezuela, por parte dos chavistas, com o governo que chama a si próprio de Israel da América Latina, mostram que algo está errado: desde aqueles que simplesmente culpavam a vítima por “dar mole”, os que lamentavam a entrega, mas não a criticavam porque criticar seria fazer o jogo do império (?!), até aqueles que aplaudiam a decisão e se uniam ao coro histérico anti-FARC, com um entusiasmo tão grande como qualquer uribista convicto.

Sem dúvida, o típico comunicado utilizado pelo governo venezuelano para anunciar as extradições de “guerrilheiros”, supostos ou de fato, é uma mostra desta falência moral e política:

“O Governo Bolivariano reafirma seu compromisso inabalável na luta contra o terrorismo, a delinquência e o crime organizado, em estrita observância dos compromissos e da cooperação internacional, sob os princípios da paz, solidariedade e respeito aos direitos humanos.”

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O oportunismo é caracterizado por sua hesitação em vai e vem (zigue zague). Em alguns anos a insurreição passou de uma “força beligerante”, no jargão chavista, a um “terrorismo delinquente e crime organizado”. Em alguns anos, o companheiro bolivariano deixou as montanhas da Colômbia para ocupar o Palácio de Nariño. A mudança de atitude sobre a insurreição se deu em três medidas: a primeira foi pedir a rendição imediata e incondicional. A segunda foi acusá-la de ser “desculpa” para o Império em seu plano de desestabilização da Venezuela; e a terceira foi trabalhar abertamente com o regime mais sanguinário e curvado ao imperialismo na região – desde 2009 (quer dizer, muito antes de Santos chegar ao poder) foram entregues cerca de 25 colombianos para a tortura e morte certas, sem nenhuma garantia de respeito aos seus direitos, como exige qualquer democracia digna deste nome.

Estas entregas, erroneamente denominadas de “extradições”, são partes de um processo de guerra suja contra a insurreição por parte do Estado colombiano, que desde 2002 decidiu fechar as portas ao diálogo político e optar pelo extermínio das forças guerrilheiras juntamente com o tecido social do qual vivem e se alimentam. Esta guerra não é somente contra a insurreição, e sim contra todos os que, de uma forma ou outra, são favoráveis ou contra o projeto de extermínio. É uma guerra contra a insurreição, contudo afeta todo o povo sob o lema “quem não esta comigo está contra mim”. Esta guerra tem diversos aspectos, incluindo o conceito de Guerra Legal contra quaisquer formas de oposição, defensores dos direitos humanos, jornalistas, juízes, etc., o que está incluído nos documentos políticos da DAS. O conceito de utilizar as extradições como estratégia de guerra, com a aberta intromissão do Executivo em encargos judiciais, é detalhado no terceiro ponto do chamado “Salto Estratégico”, política que define a estratégia militar de contra-insurreição do Estado colombiano desde 2009, com a qual se procura:

“articular o sistema judicial para que se produza resultados exemplares, que reduzam a moral das tropas das FARCs [e do conjunto da insurreição]. A extradição, em particular, é usada como ferramenta deste componente; outro mecanismo muito útil foi evitar o processo por rebelião promovendo a condenação por terrorismo (…) Ao mesmo tempo, procurou-se criar um sistema de proteção jurídica aos efetivos das Forças Militares, com o objetivo de prevenir a desmoralização da tropa frente às condenações eventuais por violações dos direitos humanos” (“La Guerra contra las FARC y la Guerra de las FARC”, Ariel Fernando Ávila Martínez, Revista Arcanos Nº 15, Abril 2010, p. 13.).

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Esta política de extradição, como dissemos, não se limita aos guerrilheiros, supostos ou de fato, mas também a civis que incomodam o regime. No começo de 2010, o Estado colombiano traçou uma estratégia para enfrentar as vozes dissidentes no estrangeiro. Nas palavras do então chanceler Bermúdez:

“Temos discutido com todos os embaixadores a importância dos governos estrangeiros estarem atentos a qualquer divulgação que faça apologia ao crime ou terrorismo. Também estabelecemos com os embaixadores pautas para que as comunidades de colombianos no exterior fiquem atentas a este tipo de manifestação”. (“Diseñan estrategia de política exterior en 2010”, El Espectador, 7 de Janeiro de 2010).

As extradições, portanto, cumprem um papel específico nesta internacionalização da guerra suja colombiana: isolar os atores insurgentes colombianos por todos os meios. Conforme expressei em um artigo anterior:

“A guerra suja da Colômbia fez grande parte deste trabalho em casa (genocídio da UP, A Luchar, Frente Popular, diversos movimentos sociais, etc.), por isso, a existência de interlocutores no plano internacional assume uma importância especial. Neste cenário, o assédio judicial (o que no jargão da DAS é conhecido como ‘guerra legal’) aos internacionalistas assume um papel central, mesmo quando não se alcançam todas as extradições solicitadas, consegue que os defensores dos direitos humanos, militantes de esquerda ou simpatizantes ideológicos da insurreição, tenham que passar para a defensiva, entrando no jogo de se defender no lugar de denunciar o regime. Cumpre também um efeito de intimidação, onde o temor da extradição acaba por inibir qualquer sombra de ‘simpatia’ (ou ainda ‘empatia’) com a insurreição, mesmo que seja somente o reconhecimento das origens históricas destas injustiças estruturais da sociedade colombiana. Esta política tem êxito em generalizar um discurso político (acima de tudo no campo das ONGs, que foram atacadas violentamente pelo uribismo) no qual se responsabiliza, acima de tudo, a insurreição por qualquer desgraça que aconteça na Colômbia.” (“De Asilos y Extradiciones: la internacionalización de la guerra sucia colombiana”, 24 de Novembro de 2010).

Agora Chávez, depois de dizer que a insurreição não era terrorista e que buscaria uma saída política, participa com gosto desta política de guerra suja patrocinada pelo “Império”.

Como explicar esta mudança de Chávez? Chávez parece ter-se esgotado como um fator político (como demonstra o fato de Humala, no Peru, fugir dele como se foge da peste), e tem procurado acomodar-se num palco de menor quantidade de mobilizações populares na região, como aquelas que caracterizaram seu primeiro ciclo de governo e, diante de Santos, procura controlar indiretamente o confronto com os EUA. De fato, os EUA, através do subsecretário para assuntos hemisférios Arturo Valenzuela, celebraram como “um passo importante” a extradição de Joaquín Pérez Becerra, mas se apressaram em dizer que continuavam a ver Chávez como um autoritário, continuando assim a isolar a ALBA (o que indica que todas as concessões que Chávez venha a fazer jamais serão suficientes). É assim que podemos ver a mudança para a estreita cooperação contra-insurreição da Venezuela com a Colômbia, com ações militares conjuntas na fronteira, entrega dos combatentes colombianos, ignorando todas as leis internacionais, como prova de amizade.

Mas, é preciso encontrar uma explicação mais profunda, uma vez que a política de Chávez se fundamenta num determinado modelo sócio-econômico, o nacional desenvolvimentismo. Sua intenção em desenvolver políticas soberanas o coloca em contradição com os EUA, mesmo quando afirma que o socialismo nunca questionou as relações de fundo ou a base material que sustenta o sistema imperialista e a oligarquia venezuelana. Então perguntamos: pode existir um anti-imperialismo que não esteja de mãos dadas com o anticapitalismo? Duvidamos disso. Devido ao fato de que o sistema capitalista é dominado pelas potências imperialistas, cedo ou tarde, quem é incapaz de pensar numa alternativa política, social e econômica, ou quem é incapaz de estabelecer as bases de um novo modelo, será obrigado a ceder às regras do jogo de quem está em condições de impô-las. Com isto, o discurso anti-imperialista inevitavelmente acabará cedendo, tal qual Gaddafi, à realpolitik da “coexistência pacífica”.

Portanto, estas extradições não são fatos isolados. Mais que isto, fazem parte de um processo crescente e inegável de degeneração burocrática, de sufocamento da iniciativa, do pouco que existe do poder popular, de direcionamento à direita das políticas e das formas de realizá-las. Em 7 de junho, milhares de venezuelanos, que participam de organizações do chamado processo bolivariano, marcharam contra a corrupção, a impunidade, o assassinato de vários dirigentes populares (todos estes, ou a grande maioria, partidários do processo), o cerco das mídias oficiais, a criminalização da luta popular e a entrega dos revolucionários colombianos. Esta marcha é muito significativa, pois demonstra que existe um importante setor que não se deixa enganar pelas motivações do Estado, estando disposto a se converter, por direito próprio e autônomo, num fator político dentro do processo. Mas os elementos verdadeiramente revolucionários do movimento bolivariano não podem se limitar a exigir “retificações” de Chávez, é preciso começar um profundo processo de auto-crítica, repensar a forma de construir o socialismo e acabar com o desesperador “culto à personalidade” que caracteriza a esquerda latino-americana. Se a servidão ideológica ao “chavismo” (seja o que for este conceito) continuar a se impor, a revolução latino-americana chegará a um impasse.

Não se pode ignorar que está acontecendo um processo de reação velada sob uma linguagem democrática imposta no continente. Com esta linguagem democrática de “luta contra o terrorismo” (quer dizer, contra todos que tentem desenvolver um projeto revolucionário por fora dos limites da institucionalidade burguesa), se constrói a “unidade latino-americana”, mas não a partir das bases exigidas pelo povo em luta, mas pelos interesses das elites econômicas criollas. Com esta linguagem democrática, Santos (um político tão reacionário quanto Uribe, mas muito mais habilidoso) conseguiu não só que Chávez colaborasse generosamente e com empenho para esmagar a insurreição e os movimentos populares colombianos, como também fez o Equador entrar no jogo e participar ativamente da estratégia de estrangulamento do exército colombiano, mobilizando 10.000 tropas equatorianas na fronteira. Enquanto lutam contra os insurgentes, os paramilitares estão autorizados a entrar e sair como se fossem donos do lugar, conforme denunciado pelas comunidades afroequatorianas de Esmeraldas, sobre a presença dos Águias Negras na região. A realidade que se vive na fronteira venezuelana com a Colômbia não é muito diferente.

A mesma dubiedade que se impõe no tema da cooperação militar (Equador e Venezuela lutam contra as guerrilhas, mas não os paramilitares) se impõe também com as extradições: não se exige o mesmo cuidado que o governo direitista panamenho teve ao extraditar a ex-diretora do DAS, María del Pilar Hurtado (que liderou a campanha de ameaças, assédio, intimidação espionagem e assassinatos de opositores e defensores dos direitos humanos, e que agora goza de todos os benefícios de asilo no país), ainda que a justiça colombiana reivindique sua extradição por crimes muito mais graves que aqueles de que são acusados Conrado ou Pérez Becerra.

Parece que o ciclo de lutas antineoliberal, aberto no final dos anos 90 e desenvolvido por grandes movimentos de massas que haviam empregado uma linguagem diferente, de democracia direta, anticapitalista, chegou ao fim, em parte pela própria insuficiência do movimento, mas em maior medida pelos governos nacionais desenvolvimentistas que se apropriaram das consignas políticas desenvolvidas pelo povo, justificando uma forma de política estatista onde muitos aspectos não se diferenciam do que tradicionalmente se conhecia. Está na hora de compreender que os governos progressistas atingiram seu auge, que podem ter feito algum esforço positivo em prol da maioria (fundamentalmente nas áreas da saúde ou educação, royalties dos recursos naturais), mas disto não passam, sendo que as tarefas do futuro, como a construção do socialismo e de libertação, serão tarefas da população, desenvolvidas diretamente por ela, sem dirigentes ou patrões. É hora de começar a caminhar com a mesma certeza de ontem, porém, com menos ingenuidade.

Artigo original (em castelhano) publicado no sítio Anarkismo.net.

Tradução de Daniel Augusto de Almeida Alves.

2 COMENTÁRIOS

  1. O texto é uma denúncia essencial, no entanto se contradiz em um aspecto: “Então perguntamos: pode existir um anti-imperialismo que não esteja de mãos dadas com o anticapitalismo?”
    Duvidar disto como se diz é não constatar a realidade de que o discurso anti-imperialista obscurece no mínimo a luta anti-capitalista. Assumir a luta capitalista como um todo é reconhecer que não há país capitalista que não almeje o dito “imperialismo”. É a concorrência e o monopólio levado aos Estados Nacionais. Para que um pais desafie outro que o subjuga ele não pode prescindir do sacrifício de seu proletariado, que será feita através da acentuação da exploração do mesmo.

  2. Meus parabéns pela tradução desta lúcida e rica análise de José Antonio Gutiérrez D. realizada por Daniel Augusto de Almeida Alves para Passa Palavra.

    Um dos melhores textos que li nos últimos tempos sobre a questão da Venezuela e a Colômbia.

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