A experiência goiana demonstra que a demanda sobre uma nova forma de organização não desponta sem uma disputa com as formas tradicionais. Por Passa Palavra

Antecedentes do 15-O

Em Goiânia, capital do estado de Goiás, a onda de manifestações conhecida como “acampadas”, que procuram chamar a atenção da sociedade para temas variados, como crise econômica, desemprego e corrupção, usando a internet como meio de divulgação, teve início no dia 12/10/2011, quando ocorreu uma “Marcha contra a corrupção”, que reuniu cerca de 1,2 mil pessoas de acordo com a AMT (Agência Municipal de Trânsito) [1]. Este movimento contou com a participação de pessoas e grupos mais variados e, segundo os organizadores entrevistados, foi um movimento nacional, originado a partir da iniciativa de três jovens de Brasília que lançaram uma convocatória via internet [2].

marcha-05Os diversos artigos que circulam pela rede não definem exatamente quem foram os organizadores desta marcha, que percorreu uma distância de cerca de 4 km, da Praça Universitária até à Praça Cívica, onde se concentram centros administrativos da cidade de Goiânia e do estado de Goiás. Mas destacam que este movimento contou com ampla e variada participação popular (estudantes universitários, professores, profissionais liberais e donas de casa) principalmente por ser um movimento apartidário, civil, pacífico, ético e democrático com o objetivo de denunciar a corrupção.

Reviravoltas

A continuidade desta mobilização ocorreu no dia 15/10/2011, quando, mais uma vez, uma convocatória feita pela internet (essencialmente via facebook), sob o lema “Democracia Real Já”, conclamava que as pessoas se reunissem na Praça Cívica às 14:00 horas e acampassem naquele local, somando força então ao movimento mundial chamado de 15-O. Das 523 pessoas que confirmaram presença via facebook, cerca de 50 pessoas foram de fato até a praça, ou seja, nem 10%. O curioso é que as pessoas que aderiram ao movimento não sabiam como havia sido a construção do ato, e nem por que grupos ou pessoas.

praca-civicaCom cerca de uma hora de atraso, as pessoas começaram a chegar na referida praça, e o que pudemos perceber é que diversos grupos, em geral ligados ao movimento estudantil e partidos políticos (Barricadas, Anel, DCE-UFG), mas também autônomos, como o Anonymous, seriam os autores desta convocatória. Carro de som, faixas, banheiros [WCs] químicos instalados…

Importante destacar aqui que neste mesmo movimento compareceram pessoas que, em busca de se inserir em movimentos sociais na cidade, responderam ao chamado. E estas, uma vez que não participaram da construção do ato, mal sabiam como havia sido estabelecida a pauta reivindicatória: fim da corrupção, 10% do PIB para a educação e mundo democrático e mais justo.

Desta forma, sem a construção coletiva de reivindicações, algumas destas pessoas começaram a questionar o que as unia naquele local, e disto decorreu que as discussões iniciais se apoiassem sobre temáticas amplas e questões como a corrupção, a Copa no Brasil e o Código Florestal. Os organizadores, que não se declaravam como tais (afinal, era um movimento espontâneo, supostamente sem direção), insistiam em sair para as ruas, proclamando algumas palavras de ordem quaisquer, mesmo que “novas” palavras de ordem fossem escolhidas democraticamente ali, na hora. A disputa entre os diversos grupos estava então clara e, após muitas controvérsias, chegou-se “aparentemente” a um consenso: não ir para a rua até que se discutisse o que unia todos ali e o que fazer a partir disso.

assembleia-coreto-01Iniciou-se então uma assembleia no coreto da praça. Em muitos momentos a redundância tomava conta da situação, retornando-se assim às pautas previamente tiradas e a insistência em ir para as ruas, mesmo com o número reduzido de pessoas. Era nítida a atuação destes grupos tradicionais, que faziam uma espécie de “revezamento”, ao usar a palavra, descer do coreto, conversar com seus companheiros, pedir a palavra novamente, insistir nas propostas iniciais e assim sucessivamente. Prática das mais antigas. A tentativa de burocratização era evidente, uma vez que, ao não conseguir impedir a formação de uma assembleia, propuseram que fossem divididos em pequenos grupos de discussão, e que após algum tempo, uma pessoa seria destacada de cada grupo para expor suas conclusões! Isto seria um despropósito, se considerarmos que no pico da assembleia tinham apenas 50 pessoas. Proposta sabiamente recusada.

Mas, como estas pessoas não conseguiram ter o controle total da situação, um fato inusitado conduziu este movimento inicialmente difuso, que objetivava mostrar sua indignação frente à corrupção, a novos e auspiciosos rumos: uma mulher, com a filha recém-nascida, pediu a palavra. Seu apelo indicou para alguns que o problema não era a corrupção, e sim os fundamentos e estrutura do sistema em que vivemos. Pedia ajuda às pessoas ali reunidas, uma vez que tinha ido a Goiânia em busca de tratamento médico para a criança e estava sem abrigo. Queria apenas um quarto para que sua filha pudesse dormir e tomar banho, já que isto não seria competência do sistema público de saúde.

O desconforto das pessoas reunidas para discutir a moralidade na política ficou exposto, não havia mais a possibilidade de ignorar as propostas já levantadas, mas rebatidas, de se pautar um movimento de base, em busca de uma ruptura real. Uma pessoa propôs que a situação desta mulher fosse incluída na discussão, e novas propostas de aproximação do movimento com a população ganhavam cada vez mais força, o que levava os organizadores “não-organizadores” a certo desespero, chegando ao ponto de o Barricadas aparecer com um técnico do Estado para explicar para as pessoas a importância de se pautar os 10% do PIB para a educação.

Talvez se não fosse a intervenção daquela mulher que necessitava de auxílio, a movimentação poderia ter descambado no mais raso deleite estético, mas conseguiu-se, com muito custo, colocar em votação a realização de uma nova assembleia para a semana seguinte, só que desta vez em um terminal urbano da cidade (Terminal da Praça da Bíblia). Proposta aceita pela maioria.

assembleia-coreto-02Seria este o objetivo daqueles que convocaram o 15-O de Goiânia? Aparentemente a resposta é negativa, uma vez que, mesmo “aceitando” a decisão coletiva de nova assembleia, decidiram por permanecer acampados na Praça Cívica, desqualificando as pessoas que foram embora a partir da adesão à decisão tomada coletivamente. Sobre o desfecho desta acampada não temos muito que dizer: o grupo de mais ou menos 15 pessoas não conseguiu manter a ocupação por mais de 12 horas, sendo que o motivo, de acordo com o que circulou no facebook, não foi a falta de apoio. Durante a madrugada do dia 16/10 surgiram algumas divergências, não muito claras, com moradores de rua, que já costumavam usar o coreto como abrigo (uma vez que nesta época chove muito em Goiânia).

A repercussão pela rede deste sábado em Goiânia e da acampada foi grande. Alguns manifestantes estavam insatisfeitos, porque para eles o movimento havia degenerado o objetivo inicial (passeata), e muitos, ao chegar ao coreto e ver a assembleia, decidiram não participar. Argumentavam, via facebook, que se a manifestação se transformou em um debate, já havia perdido suas forças. É claro que muitas destas pessoas faziam referência aos grupos tradicionais, que embora não identificassem suas ligações partidárias, tentavam aparelhar o movimento.

Esta estrutura de mobilização não é exclusividade da cidade de Goiânia. Existe uma forte tendência na atualidade de se pautar que a própria manifestação pública já aponta para a construção de uma nova sociedade, sendo os debates associados às práticas tradicionais de movimentos hierarquizados e controlados por um pequeno número de dirigentes. Talvez a tentativa de buscar um movimento que não seja aparelhado se apresente como a melhor proposta destas manifestações, que em geral são compostas, pelo menos no Brasil e mais especificamente em Goiânia, de jovens “autônomos” em busca do “novo”.

A experiência goiana relatada acima demonstra que a demanda sobre uma nova forma de organização não desponta sem uma disputa com as formas tradicionais, mas também evidencia a necessidade de se estruturar e construir coletivamente este “novo”. É possível que isso relegue o papel dos debates e assembleias no processo de construção? Talvez fosse o caso de tentar não perder de vista uma questão mais essencial do que a irrefletida rejeição das formas tradicionais. Estes jovens militantes, que muitas vezes participam pela primeira vez de uma manifestação e estão iniciando sua formação, têm a ânsia de não permitir o aparelhamento do movimento. A inexperiência e a vontade de mudança podem obscurecer o fato de que este aparelhamento apareça por vias não muito claras? As pautas reivindicatórias destas manifestações (corrupção, melhoria da educação) são bem aceitas pela população em geral e pelos meios de comunicação. Porém são pautas ingenuamente moralistas, pois partem do princípio que se os indivíduos seguissem corretamente as regras do jogo resolveríamos o problema da opressão e da exploração. Contudo a questão é outra, pois independentemente do cumprimento ou não das regras, o que importa questionar são as próprias regras e não o seu bom ou mau funcionamento. Desta forma, a associação que se faz da causa do problema com a corrupção é recebida com um largo sorriso por aqueles que buscam a manutenção do sistema de opressão e exploração.

Desdobramentos

Terminal da Praça da Bíblia
Terminal da Praça da Bíblia

Os manifestantes de Goiânia que compareceram no 15-O assumiram um compromisso de construção coletiva do movimento e aproximação da população ao aprovar a realização de uma próxima assembleia (dia 22/10/2011) no Terminal da Praça da Bíblia para discutir os próximos passos a serem tomados. Haviam decidido que seria feita uma nova convocatória pelo facebook e uma lista de e-mails seria criada para circular os apontamentos tirados e para melhorar a comunicação.

Boa parte já sabia que esta nova convocatória não teria a mesma adesão que obtivera a primeira, principalmente pelos desacordos já descritos. Outra coisa que muitos também já imaginavam é que a lista de e-mail não seria criada. Mas, mesmo com tantos empecilhos, 39 pessoas confirmaram virtualmente sua participação. Transparece destes fatos que um movimento de base, com discussões e propostas de ação coletiva, não era demanda dos organizadores da manifestação e da acampada do dia 15/10.

Destas pessoas que confirmaram a presença, somente 18 compareceram no Terminal da Praça da Bíblia, e dos grupos organizados que estavam no 15-O, somente os Anonymous estavam presentes. Fez-se força em acreditar que o número reduzido não simbolizava uma derrota; devemos considerar que, das confirmações virtuais, compareceram cerca de 46%, enquanto no dia 15/10 esta porcentagem seria de aproximadamente 10%.

Uma das dificuldades enfrentadas em Goiânia extrapola a questão relativa ao número de participantes. Talvez por ser a primeira participação em um movimento social, algumas pessoas afirmavam que responderam à convocatória para observar e só então decidir se participariam ou não. A abertura do espaço para a construção coletiva de uma mobilização parecia ser estranha aos participantes, e muitas vezes incompreendida. É possível que tenham sido estas brechas que permitiram novamente que um material pronto aparecesse, junto com mais uma tentativa de aproveitá-lo e iniciar a partir daí um ato. Sábia voz de uma das pessoas que se manifestou dizendo que não iria distribuir um panfleto que não sabia o que dizia, nem quem o tinha confeccionado. Retornava-se então à questão da importância da construção coletiva do movimento, refletindo que esta poderia ser uma das maneiras de se evitar o aparelhamento daquele movimento em formação.

Terminal da Praça da Bíblia
Terminal da Praça da Bíblia

Foi neste contexto que o pequeno grupo de pessoas presentes decidiu por pautar sua atuação na questão do transporte coletivo, tendo em vista a precária situação deste sistema na cidade de Goiânia e o potencial de abranger a população em geral, já que todos precisam se locomover. Com vista a ampliar o movimento para real participação de todos, foi decidido na assembleia que, para se construir uma pauta, era necessário verificar as demandas dos usuários de transporte coletivo. Logo, a primeira ação seria recolher relatos destes usuários em busca de elaborar um material com demandas da população, chamando-as para uma nova assembleia/ato para, assim, compor e construir um movimento coletivamente.

A internet, claro, foi pautada como meio de comunicação, mas foi dada a ênfase de que ela não poderia ser o único instrumento, uma vez que grande parte da população não tem acesso à mesma. Logo, além de circular os relatos via grupo de e-mail, uma reunião para a organização e confecção deste material foi marcada para o próximo sábado, dia 29/10, às 14h.

O desfecho

Não é possível, no momento, apreender a dimensão que este movimento irá adquirir em Goiânia. Talvez o número de participantes na próxima reunião poderá mostrar alguns caminhos. Mesmo com boa parte das pessoas sendo jovens estudantes e professores, o movimento aparenta ter uma preocupação com a ampliação para os diversos setores da sociedade. A procura de que sua estrutura seja formada coletivamente, sem a adesão a pautas prontas e formas pré-estabelecidas, mas sim pela construção conjunta das mesmas, pode se apresentar como uma das melhores possibilidades apontadas por um movimento que teve seu despertar no mundo virtual.

Contudo, fica a questão: perceberão os jovens militantes os motivos que podem levar as pessoas comuns a aderirem ao movimento?

Notas:

[1] http://g1.globo.com/goias/noticia/2011/10/marcha-contra-corrupcao-reune-cerca-de-12-mil-pessoas-em-goiania.html

[2] http://www.matogrossogoiano.com.br/site/politica/ultimas-noticias/goias/11592-marcha-contra-corrupcao-reune-12-mil-em-goiania

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