A análise do passado e do presente é imprescindível, e tem como objetivo não apenas saber do futuro, mas sabê-lo para, conhecendo suas tendências, agir imediatamente para que o indesejável não venha. Por Manolo
Com muita frequência, entre um período histórico e outro dez anos podem decerto ser tempo suficiente para revelar as contradições de um século inteiro. Portanto, às vezes temos que compreender que nossos julgamentos, nossa interpretação e mesmo nossas esperanças podem ter sido completamente equivocadas – equivocadas, e só.
Marlon Brando, na pele do economic hitman inglês Willam Walker, no filme Queimada!, de Gillo Pontecorvo (1969)
Com o recente movimento dos acampamentos, muitos da assim chamada “geração Seattle” voltaram não apenas a manifestar-se publicamente em defesa das mobilizações, mas a sentir-se novamente em casa nas ruas junto com outros mais novos que constroem espaços de militância nas praças e espaços públicos de todo o mundo.
Sou, eu mesmo, integrante da dita “geração Seattle”. Mais de dez anos se passaram desde os primeiros Dias de Ação Global em 1998 e 1999, quando achávamos – todos nós – que era agora ou nunca. As esperanças daqueles anos de mobilização intensa entre 1999 e 2001 foram abafadas à força de muita porrada, gás pimenta, prisões e mortes. Alguns recolheram-se às suas memórias, outros tantos debandaram sabe-se lá para onde, mas considerável quantidade segue nas lutas de hoje e participa como pode.
“Mas”, perguntaria um leitor intrigado, “por que ser tão rancoroso lembrando dessas coisas logo no começo de um artigo sobre um movimento tão jovem, alegre e vibrante quanto o dos acampamentos e ocupações de praças e espaços públicos?”
Até o momento, os acampamentos são, para uma geração que começa agora a envolver-se em atividades coletivas, de um lado, e na luta anticapitalista, de outro, algo que para nós da “geração Seattle” representaram tanto o levante zapatista em 1994 quanto a manifestação contra a Rodada do Milênio da OMC em 1999: um ponto de viragem, um marco histórico, um chamado à ação – chamem-no como quiserem, mas para as jovens mentes ativistas de então aquilo nos marcou como ferro em brasa. Alguns tomam esta semelhança como conclusão a ser defendida como posição política séria, quando não é nada além do ponto de partida para a reflexão e intervenção sobre o presente. Pululam artigos sobre a maravilha dos debates, sobre o inusitado das ocupações de espaços públicos, sobre o charme de um ou outro participante, sobre a retomada da “cidadania” por parte dos que lá estão, sobre a existencialmente refrescante experiência da construção destes espaços políticos…
Qualquer de nós presentes nas lutas de 1999/2001 deve lembrar-se do quanto fomos elogiados por retomarmos ações militantes, até que por volta de 2001 começaram a cobrar-nos “maturidade” (como se fossemos crianças brincando com fogo), “foco” (como se nossas lutas não o apontassem), “pauta” (como se não a conhecessem) e coisas do tipo. Construíram o Fórum Social Mundial por sobre a história de nossos corpos marcados, e o recrudescimento da repressão em nível global após os eventos do 11 de setembro dilacerou o que restava de nossos esforços. Para muitos, foi preciso começar tudo de novo.
A reflexão sobre aqueles dias tumultuosos de dez anos atrás, os rumos posteriores daqueles companheiros (e ex-companheiros) e a vivência destes dez anos de aparente marasmo impõem mudar o eixo dos debates sobre os acampamentos. (Digo “aparente” marasmo porque as lutas de lá para cá fragmentaram-se tanto que sequer se podia imaginar as ligações, reais ou virtuais, que seguiram existindo sob a aparência da calmaria e impulsionaram tantas lutas locais.) As razões dos manifestantes ou o elogio de sua iniciativa, aqui, saem de cena; entram algumas perguntas sobre o fazer-se das ocupações, tentando encontrar aí diferenças e pontos comuns com aquilo que vivemos há tanto e tão pouco tempo.
Os acampamentos pretendem-se permanentes, transitórios, ou não pautam esta questão? Para a “geração Seattle” a mesma questão talvez tenha sido pautada de outra maneira. Dada a forma de mobilização eminentemente transitória que escolheu (manifestações e assembleias paralelas, no tempo e às vezes no espaço, as cúpulas gestoriais mundiais), o que precisava ser permanente não era a presença nos territórios de luta, mas a mobilização em rede, para que pudéssemos deliberar, mesmo precariamente, sobre os próximos passos. Os debates sobre as formas de protesto que cada grupo pretendia empregar naqueles dias – marchas, ações contra alvos específicos (bancos, lojas, lanchonetes etc.) – tentavam garantir a segurança de cada grupo segundo a tática escolhida, mas, finalizadas as grandes manifestações, cada qual retornava a seu espaço de ação (coletivo, movimento social, rede, sindicato, partido, entidade estudantil, grupo de afinidade etc.) para retomar as atividades, embora com novo impulso e conhecendo incontáveis outros com quem buscar construir relações de solidariedade militante. Nos acampamentos de hoje, e até o momento, a permanência em determinado espaço físico, mesmo com curtos hiatos, é a forma adotada pelas mobilizações, o que impõe debater questões como a permanência e/ou revezamento de pessoas, alimentação, limpeza, resistência contra investidas policiais, proteção contra clima adverso etc.. Não estaria também gravitando sobre a cabeça dos acampantes, mesmo à sua revelia, a dificílima decisão sobre o tempo do protesto, e consequentemente de sua sustentação material e política? Ou o que se pretende, de fato, é fazer da praça pública uma ágora grega rediviva, conectada virtualmente com outras tantas enquanto for possível?
Qual a relação dos acampamentos com aqueles que já ocupavam o território onde se constroem? Para a “geração Seattle”, a questão era, de certa forma, simples. Salvo se já se tratasse de ativistas residentes na própria cidade onde se dariam os protestos – e foram centenas pelo mundo inteiro – ao definirmos uma zona de protestos e ao ocupá-la com ações diversas, das mais “militantes” às mais “bem-humoradas”, sabíamos que as relações com as pessoas que lá estavam seriam transitórias, existentes apenas enquanto se desse a reunião de cúpula que pretendíamos inviabilizar. Em alguns casos, as manifestações ocorriam em trajetos já tradicionalmente marcados por ações políticas diversas, o que terminava diluindo a potência do protesto; noutros lugares, pouco experimentados, vivemos situações inusitadas. No caso dos acampamentos, entretanto, é impossível pensar na construção de um espaço político sem perguntar-se algo neste nível e lançar esta pergunta tanto a fatos aparentemente incontroversos – como as razões para a escolha do local – quanto ao cotidiano do acampamento. Lá já estavam não apenas os vizinhos formais – lojas, restaurantes, lanchonetes, prédios comerciais ou residenciais, oficinas, fotocopiadoras, igrejas, museus, terminais ou pontos de ônibus etc. – mas sobretudo aqueles para quem a rua é espaço de sobrevivência e existência: catadores de material reciclável, artistas de rua, ambulantes, camelôs e especialmente aqueles que sequer existem oficialmente, a julgar pela forma como são tratados pelos Censos: os moradores de rua. Pelo que tenho visto em relatos, há interessantes relações estabelecendo-se, mas irão elas além do compartilhar um prato de comida, do convite à participação ou da solidariedade a casos emergenciais? De que forma, por exemplo, as defesas jurídicas à permanência nos espaços públicos pode estender-se aos moradores de rua, ou aos camelôs que em todas as cidades são perseguidos como a própria peste, ou aos tantos outros que são obrigados a submeter-se a toques de recolher oficiais ou oficiosos mundo afora?
Qual a relação dos acampamentos com movimentos sociais formalmente organizados (sem-teto, sem-terra, sindicatos, pastorais, coletivos artísticos etc.)? A “geração Seattle” não apenas organizou-se em formas próprias como também lançou-se abertamente à colaboração com movimentos sociais vários, e mesmo muitos dentre nós já os integravam anteriormente. Com a radicalização, inclusive, foi possível construir pontes antes inimagináveis, como entre o movimento do software livre (em suas várias vertentes) e os movimentos de luta pela reforma agrária, entre o movimento das rádios livres e o movimento anti-manicomial, entre coletivos ativistas e moradores de rua… Houve tensões de parte a parte, assim como muita ingenuidade; houve dentre nós quem pensou – e o disse em artigos públicos – que os movimentos correriam às ferramentas que criávamos como algo imprescindível às suas lutas. Vistas as coisas após dez anos, a tônica destas relações foi a de irmos até os movimentos como quem vai prestar-lhes serviços – serviços militantes, mas nem por isto menos serviços. (Não é de estranhar que muitos dentre nós – eu inclusive – trabalhem hoje no assim chamado “terceiro setor”, com variados graus tanto de compromisso militante quanto de picaretagem.) Hoje parece que o sentido foi invertido, pois sabe-se que em alguns lugares estão se desenvolvendo relações bastante solidárias dos movimentos para com os acampados, materializadas no empréstimo de materiais e na presença em certos eventos mutuamente acordados. É feliz que alguns acampamentos – não todos – estejam buscando este apoio e que o encontrem, mas isto é uma solidariedade “de fora para dentro” do acampamento; que formas de solidariedade “de dentro para fora” do acampamento podem ser articuladas sem degenerar apenas em “prestação de serviços”? O que se pretende com estes movimentos além da solidariedade material e de algumas falas críticas nas assembleias?
Os acampados têm algum tipo de crítica à dependência excessiva da informática que tem sido sua tônica? A “geração Seattle” foi talvez a primeira a empregar a internet como instrumento de mobilização, embora naquela época pouco se dispusesse além de correios eletrônicos, pequenos sites e grupos. A grande invenção daquele momento foi a estrutura colaborativa inaugurada pelo Indymedia/Centro de Mídia Independente, precursora em muitos aspectos das redes sociais hoje empregues como ferramenta de mobilização: um site aberto à publicação de relatos por qualquer pessoa que quisesse relatar o que quer que fosse a respeito dos protestos em que houvesse participado, ou publicar convocatórias, ou enviar fotos e vídeos etc.. (A rede Indymedia/Centro de Mídia Independente depois expandiu-se, adquiriu vida própria e segue com suas atividades.) Esta grande inovação, entretanto, tinha seus limites; em seus primeiros anos, por sinal exatamente aqueles de mais forte mobilização, era acessada quase somente por militantes e ativistas envolvidos com os protestos – com as “nobres” exceções de jornalistas atrás de fontes fáceis e dos onipresentes serviços de inteligência policial e militar. Para piorar, a crescente dependência de alguma técnica de comunicação – internet principalmente – por parte dos inúmeros grupos, coletivos e outras organizações gerou o fenômeno da “adhocracia geek”, ou seja, de uma “camada” social detentora de conhecimento técnico em informática difusa por toda a “geração Seattle”. Mesmo involuntariamente, a “adhocracia geek” transformou o conhecimento destas técnicas em meio de concentrar poder, ainda que por pouco tempo. Hoje, não é novidade para ninguém que a internet tem papel fundamental para a articulação dos acampantes; mas até que ponto a internet e a informática serve-lhes de limitação? A dependência de certa “militância virtual” que “curte” ou “confirma” participação nos acampamentos sem prestar-lhes qualquer outro apoio prático não arriscaria criar entre os acampantes expectativas de participação muito mais altas do que aquelas que são capazes de mobilizar? Não estaria sendo gestada aí, tal como na “geração Seattle”, uma nova “adhocracia geek”?
Como os acampados têm lidado com as diversas tentativas de cooptação de sua luta? A “geração Seattle” tentou conscientemente abandonar qualquer tutela sobre movimentos sociais e qualquer iniciativa que lhes impusesse uma pauta externa, mas foi rasgada internamente por questões semelhantes àquelas que tanto criticou – em especial se considerarmos sua forma preferida de organização, os grupos de afinidade, calcados explicitamente na extrema proximidade política e pessoal entre seus integrantes. Eles serviram muito bem como defesa contra o aparelhamento externo típico das organizações calcadas sobre o leninismo, mas ao mesmo tempo instauraram novas formas de conflito entre si próprios e outros grupos de afinidade presentes num espaço de decisão. Da mesma forma, grupos diferentes podiam articular-se previamente quanto a determinada pauta e comparecer às assembleias para agir como bloco; em se tratando de grupos diferentes (embora unidos por um propósito oculto comum), seria impossível a um participante desavisado percebê-los como tal. Graças a este artifício, o que antes era uma deliberação prévia por parte de certos grupos para orientar a assembleia em tal ou qual rumo poderia passar tranquilamente como uma deliberação democrática, surgida no calor da hora e tecida em longos debates tendentes ao consenso. Nisto, os grupos de afinidade diferiram pouco do mal senil do leninismo de que tanto quiseram se livrar. Hoje, já se tentou de tudo para dobrar os acampamentos a vontades externas, desde as recorrentes discussões sobre bandeiras de partidos até o mais simples domínio pessoal, como se dá em cidades onde os acampantes são poucos, mas os riscos em espaços “autônomos” seguem os mesmos: tem sido possível aos acampantes identificar os grupos e os blocos que se formam? Ou seria esta desconfiança causa de verdadeira paranoia num lugar onde tão poucos se conhecem previamente e há tantos desejos em jogo? E quanto às tentativas de cooptação vindas “de fora”, como os acampantes têm lidado com elas? Como lidar com as tentativas de cooptação vindas da imprensa que tenta impor, de fora, uma pauta aos acampantes, sob pena de anátema? Como lidar com as ofertas aparentemente “desinteressadas” de recursos e infraestrutura vindas do terceiro setor, cuja rejeição decerto fomentará acusações de “sectarismo” e “inabilidade de diálogo”? Como lidar com grupos empresariais ligados à economia da criatividade que tentam capitalizar para si a mobilização tão dificilmente construída?
Os acampamentos pretendem atrair mais pessoas, ou pretendem manter-se com a quantidade de pessoas que hoje os frequentam? A “geração Seattle”, na corda bamba entre a ação militante (que pedia linguagem e prática radicais) e a demonstração mais ampla de suas razões (que pedia linguagem e prática com maior capacidade de diálogo), viveu angustiadamente a tensão entre querer a mais ampla participação de todos nas lutas e o temor causado por certos tipos de ação direta demonizada pelos meios corporativos de comunicação. Embora houvesse grupos de afinidade decididamente voltados para qualquer destas alternativas, não foram poucos os que viveram esta contradição por dentro. Como em meios ditos “autônomos” a proximidade pessoal tem o efeito adverso de pressupor como certa a afinidade política, isto foi causa de um sem-número de “rachas”, brigas, anátemas e mesmo de perseguições, tudo somando para o esfacelamento das relações coletivas, mesmo quando algumas relações pessoais sobreviviam ao furacão. Vencemos ao atrasarmos certas deliberações de cúpula e ao pautarmos novamente, quando não a derrubada do capitalismo – e é preciso admitir que nem todos da “geração Seattle” desejavam-na – os efeitos perversos de seu funcionamento àquela altura; mas fomos derrotados em nossas tentativas de trazer mais pessoas para a construção de novas relações sociais capazes de subverter em definitivo o status quo. (Fosse o contrário, se houvéssemos conseguido construir estas novas relações com amplitude e força suficientes para derrubar o capitalismo, os acampamentos de hoje talvez nem existissem.) É curioso como os acampamentos vivem o mesmo problema sob outra forma. Embora muitos passem por perto, poucos param sequer para dar uma espiadinha; dentre estes últimos, poucos ficam para conhecer melhor; e dentre estes, poucos integram-se realmente à dinâmica do acampamento. Embora pareçam infinitamente menos radicais que os Dias de Ação Global, sua presença e permanência traz para alguns um misto de estranhamento, esperança, dúvida e ceticismo com o qual os acampantes ainda não deram mostras de saber lidar. Mas seriam estas pessoas ditas “comuns” quem os acampamentos pretendem atrair? Ou os acampamentos são um esforço conjunto para visibilizar a pauta de movimentos já existentes? Em qualquer dos casos, como conciliar a linguagem semi-técnica do ativismo – e quem pensa que o ativismo não cria seu próprio jargão vive na inocência útil – com aquela destas pessoas ditas “comuns”? Isto é realmente desejado pelos acampantes?
Como os acampamentos pretendem encaminhar suas reivindicações? A “geração Seattle” foi muitas vezes acusada de ter apenas uma “pauta negativa” sem apresentar uma “pauta positiva” – ou seja, de dizer o que quer destruir ao invés de dizer o que quer construir. A construção coletiva das mobilizações, o diálogo entre movimentos tão diversos quanto o dos anarcopunks e o dos camponeses bolivianos, as incontáveis formas de solidariedade prática, tudo isto era apagado para fazer dos dias de mobilização um raio no céu azul. Era mais uma tentativa de medir as mobilizações não pelo que apresentavam de novo, mas pela sua adaptação a um padrão segundo o qual toda mobilização deve apresentar um conjunto de reivindicações e negociá-la, paulatinamente, até alcançar seus resultados – em geral quando já são inócuos. O grupo que fundou o Fórum Social Mundial não apenas aproveitou-se desta crítica para criá-lo, como em grande parte foi ele mesmo a veiculá-la e disseminá-la. E aquilo que foi efetivamente construído pela “geração Seattle” – um grande esforço pela igualdade, coletivismo e solidariedade entre a militância – foi desqualificado sistematicamente como “baderna”. Hoje, o traço marcante de todos os acampamentos é o questionamento crítico a qualquer rotina que se pretenda estabelecer sem prévia deliberação coletiva. Ponto para este princípio básico da autogestão – palavra mágica que circula de boca a ouvido e de teclado a tela entre acampantes e suas redes de apoio. Segundo as informações que tenho recebido, alguns querem tirar uma pauta de reivindicações, seja trazendo-as prontas “de fora” e tentando impô-las aos acampados, seja tecendo-as ponto a ponto nas próprias assembleias. Outros pretendem que não haja pauta coletiva alguma, que não haja nenhuma deliberação “em nome” do acampamento. Todavia, enquanto algumas propostas podem ser imediatamente implementadas pelos acampantes e seus grupos de apoio, outras, talvez de construção ainda embrionária nas assembleias, precisam necessariamente da construção de formas de ação que ultrapassem os limites territoriais e virtuais dos acampamentos. Talvez seja este o problema mais duro a ser enfrentado: agora que nos juntamos e chegamos a alguns acordos, como fazer para tornar real aquilo que projetamos?
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Há outras perguntas, muitas, tantas quantos são os possíveis problemas. Algumas sequer são esboçadas nos acampamentos, outras são suas angústias mais dilacerantes. Não as apresento para fazer qualquer tipo de interrogatório ou acusação; são tentativas de ver o que temos de semelhante, nós da “geração Seattle” e estes que ocupam as ruas, para assim nos apoiarmos melhor, onde quer que estejamos. Digo isto por princípio político. Para quem se lança à luta anticapitalista, não importa com que corrente ideológica simpatize ou a qual tradição de lutas se integre; a análise do passado e do presente é imprescindível, e tem como objetivo não apenas saber do futuro, mas sabê-lo para, conhecendo suas tendências, agir imediatamente para que o indesejável não venha. Estas tentativas de antecipar o indesejável, para serem eficazes, precisam evitar as generalidades e lançar-se, sem temores ou expectativas, nos problemas e aparentes questiúnculas que atravessaram as lutas passadas, formadoras do presente, pois estes problemas e questões “menores”, tal como o diabo, moram nos detalhes. Mesmo estas precauções podem mostrar-se infelizmente inúteis, e o esforço de uma geração inteira de militantes pode terminar mais uma vez indo pelo ralo das derrotas. Por isto mesmo, analisá-las é tão importante quanto divulgar as vitórias.
O que acho estranho é que todo mundo que conheço é da geração seatle com mais de 30 anos.. e eu vou é para a revolução 3.0 ..
O que a “geração Seatle” teve de particular foi isto mesmo, ser a “geração seatle”. Me refiro a esse aspecto de marketing. Ainda, foi inovador por ser o mais global possivel, inclusive nos dias e horários e para tal fez uso da net. Mas a base de tal eram grupos já existentes, grupos de afinidade, que vão sumindo conforme passam os dez anos de validade do militante (17 aos 27?) e sumiram diante da repressão. Mas a principal paulada foi o Fórum, que captou o marketing, militantes e energia.
Enfim, foi um grande ensaio estético. Não havia base social sólida, foi uma comunhão de grupos. Uma greve global de operadores de vôo faria muito mais estrago. Mas teve um papel ao rasgar o imaginário, ao criar outra estética, dai que foi reprimido.
Manolo
Gosto de fazer reflexões, e gosto sempre dos seus questionamentos, suas indagações. Gostaria de pontuar dua coisas. 1)Bom exercício a comparação entre duas gerações e dois modos de fazer mobilização. Mas suas perguntas podem ficar reduzidas se olharmos apenas estas duas gerações. 2) Talvez se queira demais respostas para esta estratégia de luta, que é a mobilização. Precisamos saber de todas estas questões? Será que a própria mobilização não apresenta caminhos, descaminhos, novas conjunturas e possibilidades? As mobilizações seriam marcos da luta, mas não substituem as lutas diárias, de cada um destes grupos que fazem parte ou apoiam estas mobilizações. Podemos idealizar demais as formas de luta, e corremos o risco de tentar controla-las mais do que entender seus princípios, suas formas e suas limitações. abração
Tem um texto da Naomi Klein em que ela aborda alguns desses pontos, sobre a diferença entre as duas gerações. Um ponto que ela ressalta é que no fim dos anos 90 e início dos anos 2000 o neo-liberaliamos estava em pura ascenção, para não dizer no seu auge acompanhando por uma certa prosperidade econômica. Enquanto que hoje uma das motivações principais dos acampantes é justamente a crise econômica (apesar de que aqui no Brasil o foco acabou indo para a corrupção).
O link do texto (em inglês):
http://www.thenation.com/article/163844/occupy-wall-street-most-important-thing-world-now
Uma coisa que acho interessante na crítica que fazem de que é muito mais fácil “curtir” um movimento do que de fato participar nele é que esse argumento é muito parecido com uma das principais idéias dos críticos da pirataria: que uma música baixada é uma música a menos que será comprada. Mas a questão que se coloca aí é: mas essa música seria comprada inicialmente? Da mesma maneira, quem simplesmente “curte” um movimento participaria dele se fosse de outra forma? É só mais uma questão às muitas que esse texto coloca. =)
Muito bom o texto, uma ótima oportunidade para refletir esses dois momentos das resistências dos últimos anos.
Bem, mas ainda fico pensando se existe de fato uma diferença de geração entre os dois movimentos. Claro, dez anos é um tempo considerável, mas não acho que a média de idade dos acampantes seja tão baixa assim – pelo visto, fica entre os 20 e alguma coisa e 30 anos.
Questiono isso porque essa geração, mesmo se não participou diretamente dos movimentos anti-globalização de anos atrás, pelo menos teve a oportunidade de acompanhá-lo e, principalmente, teve a sua prática política decisivamente influenciada pelas noções políticas que surgiram da agenda desses movimentos – muito da sua ação política foi pautada na discussão das lutas anti-globalização.
O que quero dizer, no final das contas, é que talvez haja muito mais continuidade e aprendizado “processual” do que uma diferente geracional nítida. O próprio papel de um grupo antigo como o adbusters para o início do que está acontecendo hoje, suspeito, é bastante indicativo disso.
De qualquer forma, escrevo isso não para negar a importância da tua reflexão, mas, como se não houvessem muitas, achar mais questões para pensar.
Valeu!
Zétrabalho, concordo com você que havia uma base sobre a qual construir as manifestações entre 1999 e 2001, mas daí a deduzir um prazo de validade para a militância… Muita gente — eu mesmo sou um deles — segue militando, mas em outros campos, em outras áreas, e de outras formas. A não ser que você considere, seca e duramente, que só se pode ser militante enquanto se é estudante, o que abriria outro debate bastante interessante, mas de pouca pertinência para as questões aqui colocadas.
Franklin, concordo que o exercício fica bastante reduzido se compararmos apenas estas duas gerações. Outras gerações poderiam ter sido comparadas, mas entre estas duas a distância é tão pouca e as formas de mobilização são tão diversas que era preciso entender como pessoas com tão pouca diferença de idade agem de modos tão diferentes, ao menos em aparência. Concordo, igualmente, que as mobilizações não substituem as lutas diárias, mas enquanto elas ocorrem a física elementar — “um corpo não ocupa dois lugares diferentes no espaço” — faz com que, para cada acampante, as lutas de que participa cotidianamente estejam em suspensão, ou com ritmo diminuído. Daí tentar compreender através destas perguntas — e de outras tantas que não fiz — a relação entre os acampamentos e estas outras lutas, na tentativa de abrir um debate sobre este assunto.
tortov, não vejo como comparar o que você compara sem cair em absurdos.
Rafael, a diferença de geração seria quase inexistente, de fato, não fosse alguns acampantes de hoje sequer terem idade para haver participado de qualquer coisa dez anos atrás. As perguntas que fiz tentam compreender exatamente as continuidades que você menciona e algumas rupturas que consigo perceber. Mas até que ponto estas continuidades e rupturas — não somente com a “geração Seattle”, mas com outras gerações e outras lutas — influenciam a ação dos ocupantes? O que há de positivo e de negativo nisto? Isto é coisa que somente eles poderiam responder, e espero que estejam colocando para si mesmos questões semelhantes neste momento.
Isso dai não existe. Ao menos no Brasil não existe. Uma coisa é chamar gente pelo facebook para um churrascão da gente diferenciada: tem sempre uma molecada para acampar em qualquer canto, uma dúzia se arruma sempre. Outra coisa é construir um movimento.
A turma de Seatle era formada aqui no Brasil por grupos já existentes, com trabalhos consolidados e que se reuniam em dia tal para ser a “Geração Seatle”. Depois voltavam a ser a Resistência Popular, o Sintusp, o PSTU estudantil, anarcopunks e etc. Já os acampados nem essa federação de grupos é. Totalmente sem base.
Em sampa hoje, o que tem? Tem-se as posses, os movimentos de luta por moradia, uns grupos de combate à violência policial, alguns núcleos do movimento humanista, outros do movimento negro, alguns grupos de cultura, cursinhos populares e o resto são ONGS pegando dinheiro a torto e a direito e cara de partido construindo a carreira.
Ai tentaram construir o passe livre. Mas a coisa não pega porque o povo mora na periferia, e os militantes são da usp e moram no centro. A distância é geográfica e cultural com tanta fragilidade ao ponto de meia dúzia de feministas – futuras secretárias disto e daquilo, gestoras de ONG ou chefe de departamento – chegarem lá e jogarem a pá de cal. Basicamente deram um golpe no movimento.
Como escreveu o PP num texto ai: não há como haver basismo sem base. O que tem de base hoje está nos movimentos de moradia, nos grupos que lutam por melhoria nos bairros, nas posses, cursinhos populares, grupos anti-violência. E a ligação deles com os acampados é zero.
Eu só vejo gente que luta por melhoria nos bairros, nas posses, nos cursinhos populares, grupos anti-violencia, sendo 50% com os ocupantes. ô Louco. só que a base não é no acampamento, é nos trabalhos fora dele, é um meio e não um fim.