O filme se encerra com o acendimento da última luz que faltava para a iluminação completa da cidade, a da praça do Poder Municipal. Por Tales dos Santos Pinto e Rodrigo Araújo

posterrFilme dirigido por Corneliu Porumboiu, cujo título em português é A leste de Bucareste, fala-nos de forma cômica um pouco da pasmaceira vivida pela Romênia 16 anos após a queda, em 1989, do ditador comunista Ceausescu. Filme, que faturou o prêmio Câmera D’or em Cannes de 2006, em seu desenvolvimento, pareceu-nos artesanal e de poucos recursos, porém de resultado formidável no decorrer dos seus 89 minutos de duração.

Primeiramente a tradução do título para o português – A leste de Bucareste – chama a atenção pela capacidade de dizer pouco ou quase nada a respeito do filme. Em uma tradução livre (e arriscada) do original, realizada com a ajuda de tradutores virtuais e considerando o próprio conteúdo do filme, pareceu-nos que o título mais adequado seria Houve ou não houve?, pois é este o ponto principal da discussão desenrolada pelos personagens. Fugimos aos aspectos técnicos, privilegiando a discussão sobre o conteúdo da obra.

Timisoara, capital do Banat, é cidade onde se desenrola o enredo. Neste cenário decadente, são três seus principais personagens, Manescu (Ion Sapdaru), Jderescu (Teodor Corban) e o velho Piscoci (Mircea Andreescu). O primeiro é um professor de História que tem a vida regulada por três pontos: as dívidas, o alcoolismo e a esposa. Já Jderescu é o típico representante das conquistas da revolução: homem de negócios, antigo engenheiro têxtil do regime de Ceacescu, agora dono da emissora local de televisão, leva uma vida entre, por um lado, sua esposa e filha e, por outro, pela sua emissora, local onde ainda mantém uma de suas produtoras como amante. Já o velho Piscoci é aposentado e no passado costumava se fantasiar de Papai Noel nos fins de ano, e cuja vida calma só é abalada quando sua velha televisão falha ou quando os garotos de sua vizinhança resolvem estourar bombinhas na porta de sua casa.

buca01Logo no início do filme são visíveis as condições de vida dos personagens e da cidade que habitam. A pobreza é mostrada através dos ambientes em que eles vivem. As casas, a escola, as ruas e os carros. Como a maior parte do enredo desenvolve-se num programa televisivo de entrevistas, a cena do caminho à emissora, em que o velho Piscoci diz sentir o cheiro de naftalina dentro do automóvel de Jderescu (que afirma veemente ser cheiro de óleo de diesel), nos dá um parâmetro do nível de consumo das pessoas que ocupam posições elevadas na hierarquia social. Nessa mesma cena, vê-se nas ruas vários carros velhos, russos e ocidentais, enfatizando a presença do passado soviético e a influência do capitalismo ocidental a partir da queda de Ceacescu.

Nessa altura da história evidencia-se a reflexão sobre os dezesseis anos posteriores à revolução e já é possível nos questionarmos se as mudanças ocorridas na sociedade romena foram de melhoria das condições de vida ou se elas se mantiveram estagnadas nesse período.

A situação se transforma radicalmente quando Jderescu inicia a transmissão do debate em seu programa vespertino, cujo tema é o aniversário da revolução ocorrida em 22 de dezembro de 1989. Manescu é apresentado como participante ativo da manifestação que ocorreu na cidade, e Piscoci foi chamado às pressas para substituir um convidado que não compareceu, sendo que sua escolha deveu-se somente à sua idade e à sua possível participação no dia da revolução. Dessa forma, pela apresentação feita por Jderescu, Piscoci aparece como mais um que aderiu à turba.

A comicidade chega ao clímax quando o programa vai ao ar. Jderescu inicia falando que a revolução começou em Bucareste, se difundindo posteriormente pelo país, inaugurando uma nova era na história. O objetivo do debate é saber como os moradores da cidade se posicionaram naquele dia histórico e, desta forma, coloca a pergunta: houve ou não houve uma revolução na cidade? O antigo empresário procura mostrar a erudição conveniente a sua nova posição, e, com uma citação de Platão sobre o mito da caverna, evoca a confusão feita pelos homens entre a luz do sol e a luz de uma fogueira, discorrendo sobre a necessidade de clarificar o passado do país e lançar luz sobre seu presente e futuro. Nesse ponto vemos as feições de incredulidade dos convidados frente à pompa da citação feita pelo auto-proclamado jornalista, uma vez que conhecem Jderescu e sabem dos limites de sua erudição. Essas feições aparecem novamente quando o jornalista-apresentador cita Heráclito e a impossibilidade de se banhar na água do mesmo rio duas vezes, propondo aos telespectadores que “mergulhem no oceano das águas do tempo, pelo bem da verdade e por um futuro melhor”.

O primeiro a falar é Manescu. Ele relata sua participação na manifestação em frente à prefeitura da cidade pela derrubada do regime comunista junto a mais outros três colegas professores. Afirma que na época uma simples faísca podia acabar com o pesadelo comunista e que a faísca vinda de Bucareste teria provocado, sim, uma revolução na cidade. Passa a contar suas ações durante este dia, e discorre que, durante a manifestação (iniciada por ele e seus três colegas), entraram em confronto com alguns agentes da Securitati (polícia secreta romena) – citando neste relato o nome de um tal Bejan, suposto membro dessa polícia. Tudo isto teria ocorrido antes da chegada em massa da população, que ocorreu somente após a transmissão da deposição de Ceacescu pela TV.

Após esta introdução, o debate prosseguiu com a participação ao vivo dos telespectadores por meio de ligações telefônicas.

buca0A primeira a telefonar é Maricica, moradora de um apartamento próximo à praça, quem afirma que os quatro professores estavam bebendo na noite anterior no bar próximo ao prédio dela, e que na verdade esses homens não passavam de meros bêbados que queriam aparecer como revolucionários. O segundo, Vasile Rebegea, guarda na praça da prefeitura, afirma peremptoriamente que não houve movimento algum até antes da transmissão da deposição de Ceacescu e a chegada da população. Isto que é prontamente rebatido por Manescu, que, em busca de sua defesa moral, indagou ao policial se havia saído de lá em algum momento. Ao responder que se ausentou apenas para ir ao mercado, o guarda abriu o precedente que Manescu esperava, e começa uma pitoresca disputa sobre os minutos necessários para ir e voltar do mercado. Este era um dos motes para demarcar se o movimento foi realmente revolucionário e fez pressão sobre o governo local, ou se as manifestações ocorreram somente após 12:08 (hora da transmissão na TV estatal da queda de Ceausescu), o que caracterizaria o movimento como uma simples comemoração, e não como uma contribuição para a queda do regime.

buca2O terceiro a ligar é Costica Bejan. Ao escutar esse nome, Manescu se apruma e logo começa a ser por este desqualificado. Bejan pergunta por que Jderescu levou Manescu para falar da bendita revolução, um bêbado, que não sabia o que ocorreu. Ameaça processar o dono da emissora caso falassem o nome dele novamente, pois era uma pessoa respeitada e dono de três empresas. Diz que, tendo dado duro desde 1989 e empregando vários funcionários, não queria que seu trabalho fosse arruinado. Jderescu contra-argumenta que apenas objetivavam reconstituir os fatos. Bejan afirma que sequer estava na cidade, como Manescu dissera, e que havia trabalhado para o serviço secreto somente como contador. Continua dizendo que, sendo a contabilidade uma ciência, uma arte, não importava o sistema político em que estava inserido. Despede-se pedindo mais profissionalismo ao “jornalista” e reafirma o fato de poder processá-lo caso o citassem novamente.

Jderescu se cala frente à ameaça por conhecer as relações entre os que detêm o poder local, porém, por ser jornalista, encontra-se num certo desconforto, uma vez que teria, perante seus telespectadores, o dever com a verdade. Aproveitando a deixa, Manescu pergunta se o apresentador não era engenheiro têxtil antes de 1989. Este, sem saída, reconhece que era empregado do regime de Ceacescu como engenheiro têxtil, mas isso já fazia muito tempo e agora era jornalista. Manescu passa então a falar do antes e depois dos antigos funcionários do estado. O contador era agora empresário, o engenheiro têxtil, dono de canal de TV, colocando a possibilidade de que caso ele tivesse sido astronauta sua vida teria sido melhor que no presente.

buca3Outras ligações se seguem e sempre é colocada em causa a real participação de Manescu e de seus companheiros, figurando desqualificações de simples bêbados arruaceiros, passando pela desmoralização enquanto mentirosos. Neste ponto é que o mais hilário surge: o velho Piscoci só participa fazendo barquinhos de papel e os colocando sobre onde estão os convidados. Para o expectador já não mais importa saber se participaram ou não do movimento, e sim qual é a concepção subjacente de Revolução que desponta naquele cenário.

Revolução, como se compreende pelos que aqui escrevem nota, é uma mudança abrupta e radical ocorrida nos interstícios das estruturas sociais de uma determinada comunidade. Porém, quase diametralmente oposta é a definição oferecida pelos personagens do filme. Lá eles entendem a revolução como uma simples mudança de governo instituído e, se houve organização e mobilização anteriormente à queda do ditador, importa no sentido de ter sido anterior ou posterior ao relatado na TV, em dezembro de 1989.

Percebe-se no filme algumas permanências entre os distintos regimes políticos. Destacamos aqui dois deles. O primeiro seria o nacionalismo. Ele aparece em vários momentos do filme. Primeiramente na emissora, quando Jderescu pede para tocarem música romena ao invés da canção latino-americana que a banda da emissora estava apresentando. O nacionalismo é também percebido em algumas falas dos participantes do debate. Bejan coloca seu argumento de não manchar a história da revolução, com o relato de um bêbado, pois sendo um dos beneficiados com a mudança de regime, passou de contador da Securitat à empresário bem sucedido. Também quando o chinês Chan, dono da loja de variedades de produtos chineses, e principal credor de Manescu, liga para defender a honra deste entrevistado, sendo atacado por Jderescu, que afirma que a Revolução não interessa a um estrangeiro que não estava na cidade na ocasião e que agora só tinha o objetivo de lucrar às custas dos romenos. Sob esta ótica de permanência do nacionalismo, coloca-se a questão: pode-se afirmar que houve realmente uma revolução ou foi apenas uma troca de comando no regime político?

Deve-se observar que os antigos funcionários do Estado, o contador e o engenheiro têxtil, eram agora burgueses, proprietários privados de empresas. Se antes detinham parcela de poder por ocupar os cargos na hierarquia estatal, agora mantinham esse mesmo poder através da propriedade privada, restaurada com o fim do regime de modelo soviético de Ceacescu. Se não se tratasse simplesmente de um filme e sim de uma realidade dada, arriscaríamos dizer que essa confusão na compreensão da prática os levou à situação aviltante que se encontram os personagens. A pasmaceira do quadro exposto pelo diretor Porumboiu nos pareceria então fruto dessa incapacidade de perceber que não houve transformação significativa nas relações sociais daquela comunidade. Portanto, a existência ou não de um movimento anterior à derrubada do regime pouco importaria, pois seria muito mais relevante a transformação ou não das relações sociais naquela sociedade.

buca1E ao que parece, mudou-se apenas a cúpula dirigente, da burocracia de Estado de inspiração soviética para um modelo de pequena propriedade privada subvencionada pelo Estado. A propriedade dos meios de produção passou de estatal, coletivamente apropriada, para uma forma privada e individualmente apropriada, mas as relações de exploração foram mantidas, e esta é a raiz do desânimo que perpassa todo o filme. Desânimo que se demonstra com o próprio debate na televisão, pois, se no início ele era acalorado, no fim vemos os participantes de cabeça baixa, desanimados com seu desenrolar. Que é expressão da situação da própria sociedade romena que o diretor queria mostrar.

Numa das últimas falas, cansado de somente figurar na entrevista confeccionando barquinhos de papel, o velho Piscoci propõe uma analogia entre a revolução e o ascender dos postes de iluminação pública da cidade. Isso se relacionaria à questão da ação política e também da própria revolução. Na analogia de Piscoci, as luzes eram acesas primeiro no centro da cidade e depois nos demais locais. Dessa forma acenderiam em um centro e se irradiariam para os demais pontos, tal como uma ação política revolucionária.

bucafA entrevista termina depois de uma telespectadora ligar dizendo para saírem às ruas para ver a neve que há tempos não caia. Jardescu reflete sobre o programa, dizendo que não deveria ter deixado o velho fazer os barquinhos. Apagam-se as luzes do estúdio e o cenário que agora surge é da rua com a neve caindo. Agora ele inicia uma contagem, esperando o acendimento das luzes, “1, 2, 3 …” e as luzes não se acendem. Critica o velho Piscoci por não pensar na possibilidade do acionamento ser regulado por células fotoelétricas, que dependeriam de estímulo externo. Volta a contagem para o acendimento das luzes, ele está esperando no frio este acendimento, tentando fazer parecer como se as luzes o obedecessem, mas não obedecem. Por isso fala da vontade de arrebentar a cabeça do velho. Enfim as luzes se acendem, confirmando sua afirmação, bravo.

Para Jdarescu a revolução foi pacífica e bela e isso é tudo de que ele se lembra dela, fazendo pela primeira vez menção às suas próprias memórias. As luzes vão se acendendo, quebrando aos poucos com a escuridão por toda a cidade, como um processo contagiante. O filme se encerra com o acendimento da última luz que faltava para a iluminação completa da cidade, a da praça do Poder Municipal.

9 COMENTÁRIOS

  1. Adorei utilizar meu tempo lendo esse artigo. Agora vou gastar mais tempo vendo o filme. Espero utilizar mais tempo com outros artigos como esse. Time is not money, tempo é vida.

  2. Ao contrário de Rodrigo, não consegui ter paciência para ler este rol de iniquidades inqualificáveis. O defeito, admito, é meu. Mas chamar ditador comunista a um imbecil é o mesmo que chamar a Obama um democrata anti-imperialista. Como dizia um célebre filósofo do séc XIX, as pessoas vêm o exterior do mundo de forma invertida tal como ele se reflecte na retina dos olhos.
    Este leitor, Rodrigo ainda não percebeu que uma coisa é ver o mundo com os olhos, outra é percebê-lo com o pensamento.
    Presumo que é mais um leitor que aprendeu filosofia na escola da vida e que a desprezou na escola do estudo do pensamento.
    Que tenha muitos meninos e que seja muito feliz são os meus votos sinceros.
    Sinceramente, os “sinceros” não são nada verdadeiros, mas a culpa não é minha… Ou se é paciência…

  3. Me diverti com o comentário do afonsomanuelgonçalves.
    Ao invés de ver a contradição que indica a existência de um ditador que pode se dizer ao mesmo tempo comunista (e com isto concluir a decadência que foi possível aos partidos comunistas chegarem), prefere ele manter sua fé comunista.
    Acho que afonsomanuelgonçalves não irá discordar que é correto pensar que a culpa de Ceausescu ter sido membro do PCR (Partido Comunista Romeno) não é minha, nem do Tales.

  4. Não entendi nada deste artigo e nem qual o sentido dele. Qual a razão de um comentário de um filme que ninguém viu e que nem se acha disponível em português?

  5. «Ninguém viu»! «Nem se acha disponível em português»! Vi este notável filme duas vezes, uma em Lisboa e outra em Belo Horizonte, em ambos os casos legendado em português. Ao menos este artigo podia ter dado a António Nascimento o desejo de ver um filme que ele — mas ele — não viu.

  6. Tbm não vi o filme, por enquanto. Segue o link para download do filme, via torrent (com legendas em espanhol, inglês, sueco e noruegues:

    http://torrents.thepiratebay.se/3999857/12_08_East_of_Bucharest_(A_fost_sau_n-a_fost_).3999857.TPB.torrent

    se estiver com poucas fontes pra download, segue uma 2ª opção de torrent:
    http://dl7.torrentreactor.net/download.php?id=288694&name=A+fost+sau+n-a+fost+%5B2006%5D+%5BRO%5D

    e a legenda em pt br pode ser baixada aqui:

    http://www.opensubtitles.org/pb/subtitleserve/sub/3144493

  7. Grato ao companheiro Pablo pelos links. Agora, além do João Bernardo e dos dois autores do artigo, eu e mais alguns, quem sabe, poderão assistir ao “notável filme” e dimensionar todos os aspectos “ocultos”, mas não percebidos por leitores com eu, descritos pelo “notável” artigo.

  8. Este artigo esta rendendo alguns comentários engraçados. António julga que o filme é desconhecido. Mas Tales e eu vimos em Goiânia (!!!) no cinema da praça cívica (centro administrativo da cidade). Além disso o filme já foi exibido até mesmo em tv aberta (não paga), no canal da TV Cultura de São Paulo.

  9. O “notável filme” é de fato um filme razoável. O artigo sobre o filme poderia ser colocado como texto de contracapa dos dvds se algum dia forem aqui lançados, pois nada mais é que uma descrição rala do roteiro do filme. Na falta do que fazer na tal cidade em que o viram, os autores resolveram escrever sobre a própria falta do que fazer.

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