Estômago nos leva a refletir sobre a forma trágica com que hostilidades sequentes podem levar à revolta e como a revolta acaba por transformar psicológica, moral e identitariamente as pessoas. Por Ronan Gonçalves [1]
“O homem é o único animal que cozinha”. (Marcos Jorge)
O filme Estômago é um suspense com pitadas de humor que conta, paralelamente, a história de dois assassinatos. O narrador é o personagem central, autor dos dois crimes, Raimundo Nonato. O protagonista é interpretado por João Miguel, que fez o marcante O Céu de Suely (Karim Ainouz) e o terno Cinema, Aspirinas e Urubús (Marcelo Gomes). O roteiro foi inspirado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, escrito por Lusa Silvestre. Trata-se do primeiro longa metragem do diretor Marcos Jorge, lançado em 2007. O site oficial diz que ”Estômago é a história da ascensão e queda de Raimundo Nonato, um cozinheiro com dotes muito especiais. Trata de dois temas universais: a comida e o poder. Mais especificamente, a comida como meio de adquirir o poder. E pode ser definido como uma fábula nada infantil sobre poder, sexo e culinária”.
Estômago possui um título bastante paradoxal. De um lado o título é quase literal. Temos um filme forte que nos leva do encantamento ao horror, e aí o título faz sentido pois o estômago reúne o luxo e o lixo, a riqueza necessária ao corpo e os detritos fétidos. E o filme também trata de pessoas que foram pêgas pelo estômago, logo… Mas por outro há toda uma insuficiência e apenas quem viu o filme é capaz de dar conta do que se trata. Estômago poderia ser um filme sobre a fome em qualquer canto do mundo, um filme sobre padrões estéticos, cirurgias e tratamentos para emagrecimento, poderia ser um filme sobre bulimia e/ou anorexia. O título é absolutamente insuficiente no que diz respeito a traduzir a experiência estética proporcionada. O próprio diretor passou por indecisões e alternâncias antes de optar pelo nome final. O título equivocado talvez tenha uma pequena parcela de culpa para que o filme, brilhante, não tivesse a repercussão e reconhecimento que merece.
Nonato é um homem na casa dos 30, nordestino, sem qualificação, proveniente do meio rural, que desembarca em São Paulo sem um único centavo. Sem dinheiro para a própria alimentação, de ínicio acaba trabalhando num bar em troca de comida e um quartinho para dormir. O quartinho fica nos fundos do bar e o patrão mora em cima. Nonato revela um talento na cozinha e passa de mero braçal a cozinheiro elogiado e depois disputado. O filme se firma em como o talento para cozinhar pode ser caminho para a notabilidade e o poder e tem um final ácido e surpreendente. Terminamos surpresos porque ele anuncia um fluxo de sofrimento, Raimundo Nonato como um desgraçado por toda a existência e por fim vemos um homem ser reconstruído diante dos olhos. O palco da virada é vermos Nonato, de mero braçal a talento usado e explorado, dar-se conta que poderia aproveitar suas habilidades para sobreviver, solucionar problemas e con[1]quistar poder.
Raimundo Nonato passa respectivamente por 4 grandes contextos emotivos. O bar-moradia, o restaurante, a namorada-noiva, a prisão. Quando ele adentra a prisão a sensação inicial é de temor mas ele não encontrará ali cenário menos hostil do que o vivido no bar-moradia, no restaurante e diante da namorada-noiva. A diferença é que a prisão é a prisão e todos falam dela o que ela é. Muitas vezes até aumentam. Mas diante do bar-moradia, do restaurante e da namorada-noiva, o que floresce são esperanças tragicamente sepultadas. Temos aí um dos problemas do filme, porque o diretor optou pela sensação de final feliz quando a história de Nonato é trágica. Ver Raimundo Nonato, antes da transformação, é basicamente ver o protótipo masculino de Macabéa, de A Hora da Estrela, com as devidas alterações.
O filme faz um retrato exato do que é a classe média branca do Brasil. E de como a classe média é a principal herdeira da mentalidade escravocrata. Raimundo Nonato é um membro da chamada ralé, nos termos de Jessé Souza. E a ralé, pessoas de extrema pobreza e sem instrução, é o prato predileto da classe média em sua sanha de possuir servos e criados a custo zero. Criados não só para serem maximamente explorados e oprimidos mas ainda para serem moralmente humilhados diante do tratamento rude e das histórias de conquista que donos de apartamento vociferam diuturnamente.
O que é apresentado é um cenário mundo cão próprio da cidade onde pobreza econômica é interpretada como pobreza moral. Se você não tem nada, você não vale moralmente nada e podem fazer qualquer coisa com você. O filme toca fundo nessa ferida de como a pobreza material pode levar ao rebaixamento moral e como a humilhação moral pode ser mais dolorosa do que a exploração e a pobreza econômica. Afinal, usado e explorado, Nonato manteve a serenidade, a simpatia e o servilismo. O seu primeiro crime, fatídico e trágico, não se deve a uma revolta econômica mas a uma revolta moral. Nonato se revolta não por ser explorado mas por ser humilhado pelo patrão e desprezado pela noiva. Ao menos é o estopim, como se um limite da humilhação tolerável tivesse sido ultrapassado.
No geral, Estômago traz um retrato da vida cotidiana de muitos. A vida cotidiana para as pessoas mais empobrecidas é um verdadeiro cenário de guerra. Não levar um tiro, não ser estuprado, não ser espancado, não tomar socos, não ser empurrado, não ser ofendido, não desmaiar no trem, não desmaiar no ônibus, não imaginarem que roubei sendo que não roubei, não imaginarem que agredí sendo que não agredi, não me tratarem como sujo, não acharem que torço para aquele time, não agredirem meu filho, não atacarem minha família… O filme mostra o cotidiano como um estado de desconfiança e animosidade generalizado no qual está presente o dilema: ou você come ou você é comido. Num mundo como esse, o nosso, as pessoas acabam brutalizadas para sobreviverem ao dia-a-dia. É o que ocorre com Nonato. Se no final ficamos contentes por ver sua reação diante dos dominadores e exploradores que enfrentou, acabamos também tristes porque o Nonato livre e autônomo é agora um monstro capaz de crimes frios, sangrentos e calculistas. De certa forma, o filme aponta para um mundo no qual pessoas boazinhas viram recheio de sanduíche na boca de qualquer um e onde é necessário o embrutecimento, a violência, para se manter a liberdade, o respeito, a autonomia.
Um ponto de reflexão que o filme desperta está nessa transformação pela qual passa Raimundo Nonato, ou melhor, a transformação que o meio hostil opera nele. Estômago nos leva a refletir sobre a forma trágica com que hostilidades sequentes podem levar à revolta e como a revolta acaba por transformar psicológica, moral e identitariamente as pessoas. A revolta de Nonato acaba por reconstruí-lo de forma profunda. Depois disso já não é o mesmo. Homem revoltado, Nonato é como um recém saído do Éden: já não tem a inocência, deixa de acreditar nos outros, surge a malícia, parece já não ter mais projetos, sonhos e esperanças, passa a ter na mente o grito dos tempos, a realidade o consumiu.
Grande mérito do filme foi não ter se rendido a romantismos tolos nem à censura prévia do politicamente correto. E não poderia ter sido diferente com um roteiro tão apimentado. Se o eixo central da batalha de Nonato é a situação humilhante que a classe média lhe impinge, dentre os populares o contexto também é hostil. Nonato se apaixona por uma prostituta viciada em comida que está mais interessada na possibilidade de saciar-se do que em amar. Em troca o abastece de sexo e companhia. Quando se poderia esperar algum tipo de discriminação por parte de Nonato, o que temos é a prostituta ostentando cruamente um profundo desprezo pelo mesmo. Isso depois dela saber que ele estava emocionalmente dominado por ela. Temos aí um dos pontos surpreendentes do filme. O diretor não teve medo de expor que o capital erótico, o poder de sedução, personificado na prostituta, é uma das mais fortes armas femininas, nem de apontar que a superioridade física é uma das armas masculinas, personificada em Nonato. Dentro da prisão, depois, Nonato vai ver que na ralé há muitos que se pretendem senhores, nem que seja senhores de uma cela. Aí a batalha é também sangrenta, desgastante. O mundo é um trem lotado. Aliás, há um interessante paralelo entre a hierarquia e os esquemas de poder dentro da penitenciária e dentro do restaurante que ilustra bem a enrascada que Nonato encontra na prisão. Mas também nos lembra que uma gastronomia sofisticada pode se alicerçar em esquemas de relacionamentos humanos brutos.
Quero terminar com o que considero central. O filme trata de um processo intenso de luta. Geralmente, quando falamos de revolução e processo revolucionário, tratamos das grandes convulsões coletivas que transformam modelos societários, alteram quadros no poder, falamos de grandes epopéias, grandes narrativas. A permanência dessa imagem vai nos dando a sensação de que nada ocorre, as pessoas são passivas e não há lutas no cotidiano. No entanto, o viver das pessoas comuns é permeado por uma miríade de enfrentamentos, de combates, de estratégias, de lutas tão árduas quanto as que vemos nos grandes eventos. E falamos de Lênin e Bakunin mas pouco de Raimundo Nonato. O que o filme retrata é justamente isso. Essa luta individual, anônima, subterrânea, silenciosa. Estômago é um bom retrato sobre uma dada forma da luta de classes no Brasil de hoje. São lutas individuais, do dia-a-dia, confundem-se com a própria sobrevivência. Num período sem grandes convulsões coletivas o que há é uma infinitude de lutas variadas – quantos Raimundos Nonatos devem haver em penitenciárias por aí, tidos como criminosos comuns? O filme é violento porque tira a cortina rapidamente, faz o retrato direto. Pode haver um Raimundo Nonato no bar em que você toma café. O problema é que tem gente que nunca cozinha.
[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.
Muito interessante o filme, assim como os comentários deste artigo. No extra do filme o diretor, se não em engano, fala que o filme começa mostrando uma boca e termina mostrando a bunda do protagonista, em uma metáfora da mudança de postura ética do brilhante ator. O aparelho digestivo é a sociedade…
O que me chamou mais atenção no artigo foi o trecho, infelizmente verdadeiro, que diz: “Se você não tem nada, você não vale moralmente nada e podem fazer qualquer coisa com você. O filme toca fundo nessa ferida de como a pobreza material pode levar ao rebaixamento moral e como a humilhação moral pode ser mais dolorosa do que a exploração e a pobreza econômica.”
Lembrou-me de um livro de Robert Linhart chamado Greve na Fábrica, onde o mesmo, após uma experiência histórica de se proletarizar (com fins de militância), percebe que o que mais mobiliza os operários para greves e atos diretos contra o patronato, ou ao menos é a gota d’agua, eram questão de opressão: acordo não cumprido pelo patrão, humilhação sofrida, menosprezo, etc. O fundamental aqui, creio, é associar dominação-exploração, afinal de contas, qual a necessidade da primeira sem a segunda?
Pode-se encontrar o filme, na íntegra, no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=SvFiuX5H41U
Muito interessante, vou assistir ao filme. No texto quando o autor diz “quantos Raimundos Nonatos devem haver em penitenciárias por aí, tidos como criminosos comuns?” acho que os Raimundos Nonatos não estão apenas nos bares e nas penitênciárias, eles estão sobretudo nas empresas. As lutas individuais, do dia-a-dia, e que confundem-se com a própria sobrevivência são travadas no processo de terceirização do trabalho, nas relações chefeXempregado em que ou você aceita o jogo da corrupção de forma passiva e conivente ou você vai para uma “geladeira” profissional e deixa de pagar as contas. Os Raimundos Nonatos estão no SPC, nos cadastros de inadimplentes, e por ai vai. É isso mesmo, as revoluções hoje acontecem descentralizadas, o texto é muito bom.
Giancarlo,
obrigado pela explicação. Minha cópia do filme não tem os extras e somente agora atentei para este início e fim.
Por cima do açougue que é a classe média há um conjunto de códigos que consistem em estabelecer uma relação entre o que a pessoa tem ou pode ter e o tratamento que ela merece ou tem direito. Uma pessoa com graduação tem direito a ser tratada de certa forma, uma com mestrado de outra, com doutorado, com carro, casas, enfim. Aquilo que a pessoa tem ou pode ter determina o tratamento a ser recebido. Há casos de gente que fazia dois anos que não enviava um e-mail para fulana e quando descobre que ela entrou no doutorado a primeira coisa que faz é tomar contato. Outro compra um carro novo de melhor visibilidade e descobre que possui velhos amigos. E há o inverso, alguém que terminou o mestrado e não pôde continuar o doutorado descobre depois que não possui mais dignidade para participar daquelas listas de e-mails seletas, o cara que perdeu os bens, e segue.
A população pobre, não a miserável, convive muito com esta classe média. E ela vive no desespero violento, com medo da decadência. O cara que tinha 3 casas vê a filha apenas com uma licenciatura ou o filho ganhando menos do que ganhava a mãe. Essa classe média desesperada acaba sendo mais rude do que os realmente estabelecidos e joga toda essa rudeza pra cima dos pobres.
E os pobres, o que possuem? Sem posses, sem títulos, sem qualificações que assinalem ascensão futura possuem apenas o próprio corpo. É somente diante da violência explícita ou sempre tornada implícita que os pobres conseguem alguma dignidade ou frear as humilhações, limitá-la. O sujeito acreditava que o mundo era legal, pretendia ser bonzinho, gentil, humilde e certa altura descobre que ou mostra os dentes e os punhos ou vai receber apelido, zoações, vai ser obrigado a trabalhar mais, desrespeitos vários. Nem a família dele estará imune. Isso também ocorre no meio popular, pois lá tem quem queira ascender, sr mais que os outros, o folgadão do bairro…Por isso, como dizem ai em certos meios: descobre que teu corpo é um campo de batalha.
O filme é muito bom. Nos mostra a realidade nua e crua de uma pessoa que não aceita traições e que vem de um lugar muito pobre tentar a vida na cidade grande.
O filme fala de como são feitos alguns alimentos que consumimos, a falta de higiene, muitas vezes chegamos a ingerir uma coxinha mas não sabemos como ela é feita, se aquele oleo foi do mesmo dia. Assim tambem como fala da revolta de um homem que foi traido e fez justiça com as proprias maos. Chegando no presidio,sua arma de defesa era o talento de cozinhar bem ao meio de tantos. E assim ele foi se erguendo la no presidio!
Forte.
Ronan,
Gostei muito do seu texto. É muito bom. Sempre falei que você tem talento pra escrever. Saudades. Grande beijo!
Filme espetacular, ator incrível; cenas hilárias como os agentes penitenciários saboreando o banquete,sentadinhos nos banquinhos,dez !
o filme é brutal. Recomendadissimo. A crítica está tão boa quanto!
Esse filme é uma obra de arte, comprei o livro estou lendo, amei tudo, é uma obra de arte !!!!
Que critica incrivel, não entendo o porquê desse filme não ser reconhecido.
Muito bem colocado e bem pontuado a leitura acerca da luta de classes que o Raimundo enfrenta no filme. É interessante observar como o filme transmite a realidade da sociedade brasileira, e um aspecto fundamental do sistema capitalista: a divisão social do trabalho, e suas respectivas classes sociais aos quais cada sujeito pertence, e de acordo com o pertencimento a esta ele age de acordo com as suas condições determinantes. É de fato um aspecto muito bem retratado durante o filme, entre o trabalho como garçom, o trabalho na cozinha italiana, e o trabalho como cozinheiro da cela. Neste último, fica claro, mas nem tão visível assim como o modo de relações ali entre eles funciona como aquela tal qual estabelecida em uma empresa, onde cada um, de acordo com seus méritos e principalmente seu status naquele contexto, consegue melhores condições para se manter naquele recinto, retratado através da ascensão de cômodo para cômodo, ascendendo pela beliche até chegar ao seu topo. É um filme que trata basicamente sobre poder, mas que demonstra como opera e funciona a nova razão do mundo, como concepção e percepção sobre as coisas, sobre a realidade, baseada na competitividade, sustentada pelo modelo neoliberal em que vivemos. Parabéns pela ótima crítica.
Por que o “poderoso” da cela morre? Envenenado ainda, Nonato se cansou das maldades dele?
Mônica,
Bujiú, o “poderoso” da cela, morre porque Nonato queria a cama mais alta do beliche, que por sinal era a dele. Desde que o filme nos mostra Nonato deixando de dormir no chão para ir para o beliche, podemos perceber que ele demonstra ter uma grande ambição de ir para o próximo “andar” da cama. Até que ele no penúltimo andar do beliche fala algo do tipo: Agora eu já estou quase na cama mais alta, muito
melhor que a vista do chão, ou da cama do meio. Após isso ele diz algo sobre querer o lugar de bujiú, mas que ele teria que ter cuidado com ele. Além dessa ambição de ficar com a cama mais alta, é muito interessante ver a forma que Nonato lidou com as dificuldades e humilhações na prisão, aonde primeiramente pensamos que ele é submisso aos outros por ter uma personalidade fraca e pacífica, e depois ao final do filme, observamos que tudo não passou do plano de Nonato, que já não era mais o homem passivo e tolerante de antes, mas sim um homem frio, calculista e meticuloso, que calculou cada passo que deu e aproveitou a oportunidade de bujiú querer impressionar o etcetera, para dar um fim nele.
Muito bom o filme, um dos melhores filmes que já assisti.