É basicamente o apego ao medo que nutrimos. Por Ronan Gonçalves [1]
(Para Conchita)
É basicamente o apego ao medo que nutrimos
Medo de não ter onde morar
Medo de não ter o que comer
Medo que sejam poucos ou se extingam os sorrisos na rua
Medo de ser atropelado, de ser assaltado, de perder o trem, de se afogar na praia
Medo de que ácaros consumam aquele livro que tanto tememos que nunca lemos
Medo de que algum rato invada a casa ou baratas passeiem sobre o bolo predileto
Medo do corpo que vai envelhecendo e recebe cada vez menos valor social
Medo de que um dia não se consiga mais dormir ou a memória desapareça
Medo de que o olhar no metrô não seja correspondido
Ou que não sejamos amados pelos filhos, pelos pais
Medo de partir, medo de ficar, medo de ficar ou partir e não dar certo
Medo do dia, medo da noite
Ou que o Datena apareça à nossa porta numa segunda ensolarada
Ele traz um grande jornal e teu sorriso macabro
Corremos para as lojas e já não há espelhos para comprar
Resta-nos um terror em DVD, porque gostamos do medo seguro
Medrosos, suplicamos por amizades acabadas, por sucessos efêmeros, por companhias tolas, por um amor tão detonado quanto restos de placenta
Restou-nos o alimento do medo
Uma raça de covardes faz cirurgias plásticas e consome cocaína, antidepressivos e telas tão grandes que não cabem na sala
Medrosos, vendemos a vida de segunda a sexta para que nos finais de semana consumamos o belo em lojas de 1,99, outro vai pagar para que tenha carinho ou seja ouvido
Nós cantamos o medo
Nós vestimos o medo
Nós ritualizamos o medo
E aos nossos ensinamos a arte de temer: você não vai passar no vestibular, esqueça a namorada
O medo, a suprema pedagogia do nosso tempo
Tela de James Ensor
[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.
lembrei-me deste:
Poema pouco original do medo
Alexandre O’Neill
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Eu tenho medo
Medo do que nao conheço, do que ainda nao vi
Se tudo senti..nao, ainda sinto o medo do que nao foi.
Tenho medo de ficar..ou de nao fazer.
Por isso me atiro, arrisco, por sentir medo.
Esse tal repugnante..e tão distante dos santos
Será o medo mesmo difícil..mas eu nao sei de nada.
Serão eles tão corretos e heróis?
Me parecem tão seguros de si
Sempre prontos pra briga
E nunca erram com suas indumentárias de blinde
Como será que conseguem sempre andar de cabeça erguida?
Certo dia olhei para o chão
E vi que me sujo facilmente
E que de pureza passo longe
E disso não tive medo,talvez por isso mesmo pude ver
Que o medo me levou a ser, até aqui
O meu nada…
Aqui mesmo pude ver isso tudo
Por medo…
Pelo simples fato de senti-lo
E não negá-lo…
(Paola)
Essa epidemia do medo chegou agora em casa, por diversos motivos. Preciso aprender a teorizar sobre o medo, para poder superá-lo.
2xC[arlos Drummond de Andrade]
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.