Acredito que seja tempo da esquerda dionisíaca construir unidade, pois é possível e necessária a unidade de uma subversão festiva, franca e aberta. Por Douglas Anfra
O Carnaval balança, mas ainda não caiu. Há algum marketeiro de má índole que projetou, no “espírito de porco” de nosso tempo, um cacetete inflável, que, felizmente, “não pegou” — e digo isso por causa da simbologia que representa. Há a “muvuca” nova de gente que parece cada vez mais carente de carnaval, mas não só, de festa, de lazer decente, de um rompante onírico contra a restrição do espaço e o controle do tempo e do prazer e, por fim, de espaço público.
Gente assim se vê, por exemplo, entre os estranhos apoiadores da parada gay em seu início, algo em torno de 10 a 20% dos participantes, que pareciam ter mais idade e levavam seus netinhos fantasiados. Para eles não havia diferença entre o ato político e a festa, como acontece em muitos casos com o carnaval. No entanto, não é uma simples confraternização, pois com o aumento do número de pessoas que descobrem estas festas, potencializadas pela massificação de informações com as mídias sociais, passam a ocorrer estranhos conflitos.
O primeiro é entre as pessoas que gostam de uma coisa e aquelas que gostam de outra. Dizer que o transe carnavalesco é puramente espontâneo é mentira, pois estamos na cultura, numa parte profunda dela, talvez próxima ao inconsciente, e aí não habitam só pierrots e colombinas, mas alguns monstros, conflitos com o desejo que podem irromper em destruição daqueles e, principalmente, daquelas que estão “pulando de boa o carnaval” e se tornam vítimas do rompante usual de violência do cotidiano disfarçado de espontâneo. A fantasia que todo mundo pode escolher e vestir, na verdade, tem limites na sua representação, como a destruição do outro mais fraco seu amigo, amiga e companheiro de treta na vida toda. O que sempre exige atenção.
Fora isso há outra questão da partilha, que é criar uma festa onde se unam uma construção social, cultural e comunitária que se reinterpreta nas marchinhas. Elas são certamente fantásticas, mas guardam as marcas culturais do humor que pode transitar num limite da violência e dos preconceitos, mas onde notamos modulações e atualizações. Um exemplo destes que achei foi a atualização da marcha do Zezé, passando do imperativo ”- corte o cabelo dele !” para ”- solte o cabelo dele!”, o que é sempre possível, pois, sós, as pessoas facilmente esquecem as marchinhas e lembram, quando muito, “parabéns a você” e algumas frases como “ei, você aí, me dá um dinheiro aí”. Por isso aparecem “puxadores”, cantores que gostam da coisa também e ficam roucos de cantar, animando as pessoas e colocando novas cores nas músicas.
No entanto, com tanta gente nova, que falta que faz o contato com o passado e os que lembram das canções mais queridas, para quem quer mantê-las vivas nos bloquinhos! O lazer não é só dos ricos e das cidades que já constroem sua realidade a partir das brincadeiras (certamente por causa da circulação do turismo, quando é impossível dizer não ao carnaval), quando o espaço público, tão restrito e vigiado, se abre mais um pouquinho e as pessoas podem se conhecer e manter relações a partir da constância do carnaval. E, o mais importante, mudando as relações no local onde se vive, ora. Afinal, seja porque optou, seja porque não pode ir para outro lugar, como os outros sujeitos ali presentes, entre os quais o vendedor de cerveja (que não está no pior dos lugares para vender, mas está trabalhando e provavelmente estaria em casa ou pulando se pudesse), como os que encontrei e conversei volta e meia no carnaval, ou os jovens que não têm outro lugar mais barato para ir do que a rua que, mesmo assim, só se abre nestes raros momentos.
Mas algo importante é a organização, pois se tenta também fazer circular novas marchinhas no espírito das antigas, que sempre foram polêmicas e muitas vezes em confronto com a polícia. Estas, quando foram compostas, eram paródias ácidas da política e dos comportamentos e, algumas vezes, muito além no que consta a uma politização sem meio termo, dando nome aos bois, este ano com os alvos na atrocidade do Pinheirinho (uma gigantesca “maloca” destruída) e em Sampa pelo Kassab, pois faz parte um certo escopo político das manchetes do ano. Afinal, não é raro os foliões serem uns ferrados também, ou sentirem com o lado esquerdo do peito.
Há uma tensão entre lidar e preservar essa memória do passado e a divulgação de novas letras, canções e até mesmo palavras de ordem na forma do que o carnaval coloca como um tipo de escracho, mas um escracho que não se volte mais contra os fracos em que todo mundo já bate, e todo o sistema social já oprime, e sim contra os poderosos que impedem a todos de circular e inclusive as marchinhas de sair, ou que não constroem banheiros públicos e prendem quem é obrigado a urinar na rua (como explicava o poeta Roberto Piva, principalmente porque político sequer anda na rua, e quanto mais a pé), ou que fecham os bares onde se toma uma breja confraternizando com os foliões de todas as eras e que, adivinha se não são os mesmos que tascam o cacete — não o inflável — em todo mundo que não merece.
Por fim, organizar as pessoas na rua também é uma grande tarefa que lembra, em mais de um sentido, a organização de grandes atos sem carro de som — especialmente quando não há autorização. Um bloquinho então, uma escola de samba ou, muitas vezes, um blocão com pé na política ou na religiosidade popular de origem negra, solo, e irrigação do ritmo que nos faz endoidecer tanto no carnaval.
Essa “batida”, o ritmo que nos faz mantê-lo vivo mais do que em outros lugares que já o tiveram e perderam (algumas vezes por repressão direta ou por obrigar a restar apenas a opção do samba de escola, por se tornar uma forma de gerar rendimento), chega a colocar para muitos a ideia do programa de “transição carnavalesco” e o de uma revolução onde finalmente se possa dançar, como dizia Emma Goldman. O bloquinho pode não ser a marcha de protesto, mas a marcha de protesto pode aprender algo com o bloquinho? Sempre achei que sim, pois cria uma unidade curiosa e politizante. Certamente algo de destrutivo, num humor que permite uma força irônica contra o poder mais destrutivo e acachapante, pois, acima de tudo, uma marchinha pode ser a organização não apenas de músicas felizes e irônicas, mas também tristes e que marcam a cadeia da marcha, um espírito em comum com o samba.
Algo que certamente é comum com as místicas dos movimentos sociais, com parte da religiosidade que se preserva no samba e que tem algo em comum com o espírito de levarmos, comunas e anarcos, bandeiras que nos lembram o luto ou o sangue de nossos mártires sociais para lhes fazer justiça sem que isso nos desanime, mas sim nos faça agir, pois é da tensão entre o amor, a raiva e o riso que se consegue sobreviver a estes fatos em marcha.
Certa vez o poeta Carlos Drummond de Andrade, no texto Rosário dos Homens Pretos, pontuou a curiosa história das congadas que, segundo o autor, deveria constar “da história das lutas sociais no Brasil”. Nestas os “reis do Congo” eleitos se mantinham como reis atuando na subversão das leis em várias cidades do país, causando o desespero dos bispos que cuidavam então da burocracia e tinham de aturar negros reis dando ordens e soltando presos em situações que terminavam em confrontos com as milícias, e isto quando havia milícias suficientes. Este fato ocorreria, segundo insinuações dos bispos de ordens rivais, com certo acobertamento das ordens religiosas que aceitavam negros, e estas, por sua vez, manteriam um pacto firme na direção do abolicionismo.
Este é um episódio delicioso da história política e cultural da resistência negra que nos faz pensar quase em um programa de transição carnavalesco, levando a sério a pergunta: e se o carnaval, quando subverte o poder instituído, pudesse manter certos símbolos de subversão das injustiças sociais como uma trilha possível do porvir? Penso nisso principalmente lembrando dos usos da ironia desconstrutiva de Chaplin, como explicou Hugo Possolo dos Parlapatões, que colocava o “excêntrico” (também chamado Augusto, algo como o papel representado pelo Didi nos Trapalhões), uma das figuras do clown, como uma presença capaz de anular toda figura de autoridade, mas que era o palhaço branco (o white clown, semelhante ao papel do Dedé em relação ao palhaço Didi nos Trapalhões), que serve de fundo, como palhaço que é o alvo da gozação, quando estava à frente de um excluído ainda mais excluído do que ele, no caso, a criança.
Muitos elementos levam a crer que o carnaval de marchas tenha espaço para avançar nas capitais e no interior, mesmo sem qualquer apoio político institucional (tanto melhor?). Simplesmente porque todo bloquinho, que existe há anos como grupos de malucos se divertindo, hoje está cheio de gente. Muitas pessoas anseiam por carnaval. Parte do problema passa por grana para instrumentos, amplificação mínima para voz quando a massa aumenta e instrumentistas com amor “à coisa”, mas o elemento principal é que quanto maior a opressão, parece ser maior a desinibição nessas horas que se coagula com um sentido subversivo maravilhoso, onde muitos podem aderir ou não, resultando em nosso seio numa outra forma de divisão da esquerda, uma “apolínea” e outra “dionisíaca”.
Acredito que seja tempo da esquerda dionisíaca construir “unidade” (como vem isoladamente se manifestando), mesmo que muitas vezes apareça como a sombra daqueles que tem a habilidade do imprescindível trabalho duro da organização material e social das lutas, mas é possível e necessária também a unidade complexa da subversão festiva e franca enquanto se brinca. Uma brincadeira séria, como se vê, mas igualmente intolerável no contexto da máscara intolerante do autoritarismo, pois permite derrubar ao menos parte das cercas que isolam a imaginação e permite a abertura para a construção de uma nova realidade onde um ser humano não domine o outro, nem como fantasia.
Chamamento de unidade à esquerda dionisíaca:
Io! Io! Bromios!
Io! Io! Eleutherios!
Chamamos os libertadores e aqueles que gritam e fazem trovejar para o reconhecimento de um ponto comum. Há muito tempo chamam-se diversos setores, acusados invejosamente por nossos convivas de esquerda festiva. Dizia-se com isso que eram todos passivos, e se sentiam tristes quando das atividades das organizações que lutam contra o que não presta nesta vida. E percebam, isto transcende os grupos e filiações. Mas e quando nos atos, protestos e outras manifestações públicas, as pessoas lançam provocações divertidas ao poder que é não apenas reaça e excludente, mas geralmente, careta e moralista. Sabemos que o reaça é um morfeu, pode se tornar moderninho, pode se tornar qualquer coisa, mas no momento ele tem a cara amarrada e só sabe amar o poder do poderoso destruindo o fraco isolando-os, mas como são ridículos !
Cabe a pilhéria, a zombaria em marcha, ou melhor a marchinha, o samba agregador que garante acima de tudo manter o ritmo mesmo na derrota e na tristeza – olha esse mundo à nossa volta meu caro – toda a picardia e a acidez.
È necessário o trabalho duro, mas também o é o trabalho doce, que nos faça animar os atos políticos como se fosse algo ativo e não apenas uma procissão fúnebre. São sérios, eu sei, mas quero lançar a proposta: e se formássemos um bloquinho para os atos que realizasse intervenções festivas, uma micareta que chame a atenção – objetivo dos atos – e garanta o pique necessário à esta nossa vida em marcha.
Se somos a esquerda festiva, assumamos, coisa feliz, gente ativa !
Basta de falsos bacantes que segregam as pessoas com suas cores, logotipos e dureza. Queremos o relaxamento da unidade e da camaradagem carnavalesca simplesmente porque a luta é longa e precisamos continuar mantendo o rebolado até que a música pare de tocar. Por isso, chamamos os músicos, sopros e percursões, ditirambos, balestras, e que tais e organizemos uma frente da esquerda dionisíaca.
P.S. Precisamos de músicos que saibam correr.