Não podemos encarar como insignificante a eventual possibilidade das elites africanas virem a ocupar, com base no seu crescente poder económico baseado na posse de recursos naturais e de mercados domésticos em expansão, um lugar decente à mesa de uma nova ordem mundial. Por Richard Pithouse
O anúncio de um sério programa de desenvolvimento infraestrutural por parte de Jacob Zuma veio tornar a atmosfera de certos círculos mais leve. Num país que parecia navegar sem rumo nas águas gélidas da economia global, o optimismo renovado por uma postura presidencial mais decisiva, aliada a uma mão cheia de projectos, não parece causar qualquer surpresa.
Num contexto em que o motor da história derruba, com firmeza, a influência dos velhos poderes imperiais, ao mesmo tempo que eleva a da Índia, China e Brasil, a atmosfera africana deixa transparecer reais possibilidades. Luanda está a tornar-se numa cidade de milionários angolanos e de profissionais portugueses à procura de emprego. Fortunas incríveis estão a ser criadas no suposto desastre que é o Congo. Na África do Sul, o campeonato mundial de futebol deixou as paisagens das nossas cidades marcadas por promessas futuristas e monumentais de uma África moderna, projectada a partir das devastações do passado. Entre as nossas elites políticas e económicas, são cada vez mais as vozes que sugerem um olhar voltado para a Índia e a China, em busca de um caminho próprio.
Desde a revolução dos escravos haitianos de 1804, toda a tentativa política de afirmar uma igualdade africana no mundo moderno foi cercada, contida e desfeita: por dentro e por fora. Mas agora, numa impressionante reversão do ditado de Kwame Nkrumah, «Buscai primeiro o reinado político e tudo o resto se acrescentará», a ruína do domínio económico ocidental sobre as grandes economias do Sul parece, inevitavelmente, conduzir à sua ruína política. Deste ponto de vista, não podemos encarar como insignificante a eventual possibilidade das elites africanas virem a ocupar, com base no seu crescente poder económico baseado na posse de recursos naturais e de mercados domésticos em expansão, um lugar decente à mesa de uma nova ordem mundial que, não obstante a sua forma pouca clara, segue o seu caminho.
A riqueza é uma forma de poder, cuja história de violência e de dominação levou a que permanecesse em certas mãos. Tal como a acumulação de uma riqueza «negra», mesmo se apenas da parte de uma minoria, acaba por adquirir na África do Sul uma inevitável dimensão anti-racista – dada a associação entre riqueza e poder branco durante o colonialismo e o apartheid – a fúria acumulativa em Bombaim e Beijing adquire inevitavelmente uma dimensão que coloca os poderes sino-indianos contra os da velha ordem mundial, baseados na dominação colonial.
A crescente agitação que percorre círculos idênticos às das novas fortunas do Sul não é apenas alimentada pela procura do lucro como um fim em si mesmo, mas igualmente pelo fim de certas formas de subordinação, insulto e desprezo colectivos.
Contudo, o percurso da vitória das economias indiana e chinesa sobre os pactos neo-coloniais, um processo que elevou milhões ao estatuto de classe média, corresponde a uma espécie de colonialismo interno. As pessoas estão a ser expulsas das suas terras e cidades, sujeitas às mais grotescas formas de exploração em minas e fábricas e a uma repressão política cuja escala e intensidade conseguem rivalizar com alguns dos horrores do próprio colonialismo. Eles estão a fazer ao seu povo o que as elites inglesas, nos primórdios do capitalismo, fizeram primeiro ao seu próprio povo e depois aos colonizados.
Tal processo não tem sido incontestado. Vastas regiões da Índia estão sob o controlo de rebeldes armados, travando o Estado uma guerra contra uma considerável proporção do povo que diz representar. Na China, a feroz repressão não conseguiu deter os motins, greves e ocasionais mobilizações insurreccionais de aldeias inteiras contra um modelo económico que destrói tudo no caminho, empobrecendo uns e enriquecendo outros.
Os que argumentam que no duro mundo da realpolitik apenas o dinheiro e a força militar têm voz, demonstram como, noutras partes do mundo, tentativas mais inclusivas e democráticas de reverter o domínio do Banco Mundial, das forças armadas norte-americanas, das vorazes empresas transnacionais, dos seus parceiros políticos locais e dos outros poderes do velho sistema de dominação nem sempre obtiveram sucesso.
A firme luta popular no Haiti foi duramente suprimida pela mesma ostensiva desconsideração pelo povo haitiano e pelo seu direito a poder decidir sobre o seu futuro, uma marca da orientação norte-americana e europeia em relação às antigas colónias. A extraordinária coragem e visão política reunidas na Praça Tahir, apuradas num movimento capaz de depor um grotesco ditador, apoiado pelos EUA, rapidamente foram absorvidas (não inteiramente nem de forma decisiva, porém) num sistema de dominação global que (como nós na África da Sul sabemos muito bem) é capaz de acomodar democracias limitadas nos Estados clientelares da sua periferia.
Na América Latina, contudo, há já algum tempo que uma série de experiências políticas – de Estados e nos Estados – têm vindo a ocorrer. Os frutos de tais experiências têm sido algo modestos, tendo nalguns casos, e à semelhança do que aconteceu durante o apartheid, contribuído mais para um entrincheirar de posições do que para uma oposição às práticas de exploração e exclusão, dotando-as assim de uma nova legitimidade. Novas elites têm, por vezes, procurado fazer valer as suas pretensões no seio destas práticas. Porém, a ruptura com o FMI, a recusa de uma nova base militar norte-americana, a revogação da privatização do sistema público de abastecimento de água, a redução das desigualdades, as reformas agrárias, as medidas com vista a uma maior participação na definição do orçamento e de políticas públicas, o desenvolvimento de sistemas de transporte com base numa maior preocupação com as necessidades das pessoas do que com os lucros privados e a acção directa praticada por movimentos de camponeses e de sem tecto permitiram algumas mudanças nas relações de poder no seio de alguns países e entre esses mesmos países e o ocidente.
E, independentemente das limitações dos governos recentemente eleitos com base na força das mobilizações populares na América Latina, eles são, em termos políticos e económicos, significativamente menos brutais que os regimes indiano e chinês. Em muitos países latino-americanos, existem vias de acesso, construídas desde baixo, mas também abertas por cima, a uma participação política por parte de uma subalternidade organizada. Tal existência seria inconcebível na China ou na Índia.
Numa entrevista de 1972 por Gail Gerhart, a qual adquiriu alguma notoriedade nos últimos anos, Steve Biko avisou para a possibilidade de criação de uma “sociedade capitalista negra, [uma] classe média negra”, com “êxito na divulgação, a nível mundial, de uma imagem bastante convincente e integrada, ainda com 70 por cento da população a viver na pobreza”. Se pudermos seguir de modo eficaz alguns aspectos do modelo chinês ou indiano, seremos capazes de produzir elites a serem integradas na elite global. No entanto, esta dificilmente seria a sociedade de ´feição humana` que Biko havia proposto para a África do Sul e, igualmente, a base de um compromisso pós-apartheid com o resto do mundo – algo que, na sua visão, possuía um valor superior à força industrial e militar.
O leque das experiências políticas que têm vindo a ser desenvolvidas nos anos últimos na América Latina, algumas das quais enfrentam uma certa crise à medida que as contradições internas se tornam evidentes e os movimentos populares e governos se separam, não nos oferece receitas exactas para um futuro melhor. O que eles demonstram, porém, é que não é apenas o dinheiro e o poder militar que contam. A mobilização popular pode transformar as sociedades a partir de baixo e, ao mesmo tempo, fortalecer a posição dos Estados contra os interesses privados e imperialistas. Mas, enquanto a ANC continuar a crer que, por si só, representa o povo, que toda a organização popular fora da sua alçada é politicamente ilegítima, se não mesmo traidora e criminosa, e que deverá liderar sempre a partir de cima, o cruel nexo entre poder político e económico em Beijing e Nova Deli representará um tipo de aliança mais atraente do que a inovação política dos governos de La Paz ou Quito, dos bairros de Caracas ou das ocupações de terras no Brasil rural.
Num artigo recentemente publicado, Achille Mbembe argumenta que “ao longo do trajecto da sua raça, o homem tem assumido permanentemente a forma de resíduo, conforme exposto pelo capitalismo na África do Sul. Para um futuro minimamente viável do projecto democrático, tal terá necessariamente que assumir a tentativa consciente de recuperar a vida e o «humano» do seu percurso histórico enquanto resíduo”. O que nos conduz ao cerne das questões que se nos confrontam, à medida que seguimos curso a um novo mundo.
Retirado de: http://www.pambazuka.org/en/category/features/80179
Tradução por Passa Palavra