Esta última revolta teve algo de novo e surpreendente. Pela primeira vez na história das revoltas – contada oralmente de experientes para novatos –, os trabalhadores não tomaram os trens como alvos, e sim as catracas e bilheterias. Por Ronan Gonçalves [1]
A palavra periferia não teria o significado socialmente atribuído se as periferias se limitassem a ser um local afastado do centro. As periferias brasileiras são o que são porque elas significam o espaço da exclusão. Trata-se de amplos espaços de humilhação social, que somam ausência de investimentos estatais e privados e sociabilidade violenta, resultando numa população que herda estigma social e brutalidade estatal e empresarial; tudo isso num espaço cinzento que classifico como tortura estética. Ninguém se importaria de morar na periferia – local mais afastado – se lá tivesse todo o aparato que há em outros cantos. Num exemplo, embora surgisse em 2011 como cidade campeã de homicídios no Estado de São Paulo e tendo mais de 5 mil presos (numa população de 130 mil), Franco da Rocha não possui empregos, um local para doação de sangue, não possui maternidade, não possui terminal urbano, não possui rodoviária, faculdade, centro cultural, teatro, cinema. Numa cidade assim, o transporte possui máxima importância: é estudar de noite, levar a mãe ao médico, tratar o filho com câncer, levar a namorada ao cinema, trabalhar…
É gente formada nesse meio que protagonizou, no dia 29 de março deste ano, a revolta de trabalhadores na estação de trem de Francisco Morato (aquilo que a CPTM [Companhia Paulista de Trens Metropolitanos] chama de estação é um barracão com telhas Brasilit [de amianto] sobre canos de ferro parcialmente ocultos por pedaços de madeirite). A mesma descrição social feita a respeito de Franco da Rocha se estende a Francisco Morato. Assim, dentre mais de 5.400 escolas, Francisco Morato possui duas entre as 30 piores do Estado de São Paulo, segundo avaliação do próprio governo. Num contexto como esse, de mão de obra brutalizada nas cidades dormitório onde dorme, nos trens que as transportam, nas empresas que as exploram, as revoltas possuem sempre um caráter violento, e não são raras.
Num texto publicado aqui no final de 2009, usei a memória para descrever o significado das mudanças que surgiram com a substituição da CBTU [Companhia Brasileira de Trens Urbanos] pela CPTM. Esta última passou a tratar os trabalhadores não mais como clientes e sim como súditos. As panes generalizadas, as batidas de trem, os atrasos, além de demonstrarem o interesse político de reforçar investimentos nas áreas mais ricas, são também expressão da preocupação central da CPTM com fiscalização e vigilância sobre os trabalhadores. As revoltas dos trabalhadores são sempre uma resposta ao abandono, ao descaso, às humilhações cotidianamente impostas. Com as panes correntes, com os atrasos, além de suportar a humilhação e tortura que são os trens lotados, os trabalhadores começam a receber broncas nos empregos, demissões, perder tratamentos médicos. O clima fica explosivo.
Esta última revolta teve algo de novo e surpreendente. Pela primeira vez na história das revoltas – contada oralmente de experientes para novatos –, os trabalhadores não tomaram os trens como alvos, e sim as catracas e bilheterias. Ora, bem ou mal, os trens são necessários para visitar os parentes, ver os amigos, ir aos jogos, levar a mãe ao médico, passear com o namorado, trabalhar, procurar emprego, estudar, frequentar atos e grupos de discussão. Os trabalhadores demonstraram que os trens são meios sociais de transporte e que, para se atingir a empresa e o controle desta sobre os trabalhadores, bastava expulsar os guardas, inutilizar as câmeras, destruir as catracas.
Como não havia nenhum grupo organizador também não foi chamada nenhuma reunião para balanço a respeito da revolta. Mas nos bares, nos trens, nos ônibus, toda uma discussão foi realizada e invariavelmente apontava o avanço em não se quebrar o trem e as estações, e sim atingir as catracas, bilheterias e câmeras. Ao que parece, diante dos próximos casos de atraso sequentes e não funcionamento, os gritos serão cada vez mais para se quebrar as catracas e menos para se quebrar os trens. O caso me fez recordar conversas no ano passado, no trem e bares de Franco da Rocha, feitas por gente que, de passagem, tinha acompanhado parte dos atos do MPL – SP. E agora fico na dúvida se a atuação sobre as catracas e bilheterias são ecos de coisas ouvidas e vistas mesmo que de passagem ou se foi o caso de não ter um trem na estação e por isso terem sido destruídas as catracas. De todo modo, o quebra-catraca em Francisco Morato repercutiu como um raio, e um novo grito de ordem está no ar.
Por fim o caso me fez atentar para algo grave. Embora existam inúmeros grupos que se felicitem com a revolta e irão usá-la em seus objetivos políticos, não houve nenhuma solidariedade material com os dois trabalhadores que permaneceram presos por não terem como pagar os cinco salários mínimos de fiança. Em toda a esquerda, os trabalhadores mais rústicos e precarizados são ainda vistos com desconfiança e, se não é a esquerda mesma a classificá-los como vândalos, o abandono posterior mostra como não os considera prisioneiros políticos. Uma ajuda material poderia ter sido organizada mesmo que de forma sigilosa.
Fotos: Rivaldo Gomes
[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.
Esses dois trabalhadores citados no último parágrafo continuam presos?!! Não seria possível que se organizasse uma ajuda via Passa Palavra??
Reitero a questão da Carol Cruz (comentadora antes de mim): não temos como organizar um campanha rápida pela soltura de ambos?
Parabéns ao povo que encontrou uma nova forma de protestar! As catracas estão por toda a cidade excluindo e fechando passagens. Parabéns ao escritor pela ótima edição!
Carol,
Ficaram dois detidos e não tinham de imediato os cinco salários para a fiança. Nesses casos, geralmente, se vende algo, se faz uma coleta entre familiares e amigos, se empresta dinheiro. Enfim, os dois rapazes já devem ter se virado.
O problemático é que as instituições que possuem dinheiro e advogado e que poderiam prestar um auxílio em casos como este não comparecem. Mas usam o caso em suas estratégias políticas.
Muito bom o texto.
Vê-se aí o fato do transporte ser o elo entre a cidade e as pessoas, entre a periferia e o que ali não há. E a passagem livre a toda a cidade, o direito de ir e vir está limitado por uma catraca, quebrar onibus nos tira esse direito em parte, pois terei que ficar esperando uma hora a mais no meu ponto pelo próximo que não foi quebrado, agora entrar em um ônibus e encontrar a ala aberta para passar é bem interessante…fora catracas! este sim é um ato pensado, elaborado para facilitar e não dificultar o acesso.
A propósito deste artigo lembrei-me de que em Portugal, no Verão de 1968, durante o regime fascista, quando as greves eram proibidas e os seus organizadores eram perseguidos pela polícia política, presos, torturados e condenados a penas de prisão, os trabalhadores da Carris, ou seja, a empresa de transportes urbanos de Lisboa, fizeram uma greve em que os autocarros [ônibus] e os eléctricos [bondes] se mantinham em funcionamento, mas os passageiros não pagavam bilhete. A greve prejudicava directamente os patrões e não os utentes [usuários]. E o curioso é que a greve teve uma tal popularidade que o governo cedeu, as reivindicações, ou pelo menos algumas delas, foram aceites e não houve prisões. Dois camaradas meus estiveram envolvidos nesta greve. Mais ou menos na mesma época, mas não me lembro exactamente do ano, os médicos dos hospitais públicos, pelo menos em Lisboa, fizeram uma greve em que continuavam a atender os doentes mas não preenchiam os boletins administrativos relativos ao atendimento, que passava assim a ser gratuito. O alvo desta greve foi exclusivamente o Estado, através da administração hospitalar, e não os doentes.
Isto ocorreu em pleno fascismo, mas nunca se repetiram greves deste tipo na actual democracia portuguesa. E estas recordações vêm igualmente a propósito de um debate que se gerou nos comentários a outro artigo deste site: http://passapalavra.info/?p=55566
Com certeza, a sensibilização da “esquerda-formal” em ajudar os manifestantes que foram presos e não tiveram como pagar a fiança, seria demonstrar que realmente a “esquerda formal” está do lado de quem leva esse país nas costas. Mas é diferente, não são alunos da USP que a mídia sensacionalizou, garantindo aos que ficassem entre eles e as câmeras minutos de divulgação nos tele-jornais. São trabalhadores sem siglas, sem cartilhas. Eles têm “somente” a prática daquilo que se teoriza nos comitês, não servem, a não ser se aceitarem a agirem como massa, caso contrário não merecem desgaste. Mas o que fica disso é que, “quando o povo se rebelar não tem pro exército e nem pra polícia militar” – Consciência Humana (Agonia do Morro)
Não que tenha a ver especificamente com o caso, mas o chefe da segurança que foi o responsável em apontar as pessoas que foram presas em Francisco Morato foi baleado neste fim de semana passado. Participaram umas mil pessoas, mas ele apontou as 5 que foram presas pela polícia.
Segue:
http://www.band.com.br/noticias/cidades/noticia/?id=100000499046
EM Franco da Rocha, no dia 18 de junho de 2013, houve uma mobilização do povão contra o aumento. A tática de luta consistiu em fechar a linha férrea, e os trens não tiveram como seguir adiante.
Nesse dia 20, amanhã, um outro ato está marcado. Saberemos agora, enfim, se a multidão que foi para a paulista se unirá aos trabalhadores das periferias. Ajudando-os a derrubar as tarifas locais. Ou ao menos gritarão que a diminuição da tarifa deve se estender à toda a grande SP – muitos do que trabalham em São Paulo moram nas cidades da grande metrópole, onde não houve baixa, embora as lutas do início de 2013.
É o momento no qual saberemos se as lutas nas periferias receberão apoio dos que foram ao centro ou ficarão relevadas àqueles que nestas sobrevivem.
Segue:http://passapalavra.info/2013/01/71068
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e o Movimento Periferia Ativa organizaram no dia 19/06 paralisações em série nas periferias de São Paulo.
Pela manhã:
– Bloqueio da via Anchieta por 2 vezes nos 2 sentidos, seguido de passeata até a Prefeitura de São Bernardo do Campo.
– Bloqueio da Rodovia Regis Bitencourt, da Estrada do Campo Limpo e da Avenida Francisco Morato, seguido de ocupação pacífica do Terminal Campo Limpo.
– Bloqueio da Estrada do M Boi Mirim, com passeata até SubPrefeitura local e reunião com o Secretário Municipal de transportes de São Paulo (Gilmar Tatto). Ocupação dos terminais Guarapiranga e Jd. Angela. Posteriormente, de tarde, bloqueio da Ponte do Socorro (Marginal Pinheiros).
Pela tarde:
Essas ações estimularam outras ações, algumas articuladas outras espontaneas. Passeatas e bloqueios em:
– São Miguel Paulista (zona leste)
– Santo Amaro (zona sul)
– Brasilandia (zona norte)
– São Mateus (zona leste)
– Taboão da Serra
– Santana do Parnaiba
– Francisco Morato
Sobre essas ações da tarde não temos informações precisas, pois foram feitas de forma descentralizada.
Principais pautas:
– Redução imediata das tarifas de ônibus municipal, intermunicipal, metrô e trem metropolitano.
– Não ao gasto de dinheiro público e despejos relacionados a Copa 2014 – Fora Fifa!
– Medidas do Governo de controle do valor dos alugueis, atrelando-os ao índice de inflação.
– Por serviços públicos de qualidade na periferia
Some-se com os atos no extremo sul no Grajaú e dá pra ver que a Periferia não está dormindo.