Por Passa Palavra
Na FLASKÔ, fábrica ocupada e gerida pelos trabalhadores em Sumaré, região de Campinas-SP, conversamos com Luiz Felipe de Farias, militante e pesquisador da Unicamp, e com Maria Orlanda Pinassi, professora da UNESP, sobre os dilemas da luta pela terra: o sentido que tem hoje falar em reforma agrária, se esta questão pode ser tratada nos mesmos termos em que o era até alguns anos atrás; e se o processo de reforma agrária e a luta pela terra refletem necessariamente os mesmos objetivos.
Dando início à conversa, Luiz apresentou duas questões centrais que deveriam, segundo ele, orientar a abordagem do tema: 1) A ofensiva do capitalismo no campo tornou a luta pela terra obsoleta?; 2) Quem é, hoje, a classe trabalhadora que está subordinada ao agronegócio?
Para Luiz Felipe, em favor da tese de que a luta pela terra no Brasil estaria ultrapassada, pesa bastante o fato de, desde os anos 60 e 70, se ter verificado a elevação do grau de integração técnica entre o campo e a indústria. Nesta relação cada vez maior de interdependência, ter-se-ia aumentado enormemente o volume de insumos industriais aplicados na atividade agrícola, bem como o de produtos agrícolas consumidos pela agroindústria, gerando complexos industriais como o da cana; laranja; eucalipto; soja. Teria havido ainda, entre os aspectos mais importantes, o aumento da integração de capitais, na medida em que vultosas massas de investimentos são aplicadas em terra, seja de forma especulativa ou produtiva.
Consequentemente, esse movimento de integração entre campo e cidade teria levado a uma profunda transformação das relações de trabalho. Sistemas como o de parceria, arrendamento, meia etc., que caracterizavam a realidade do campo brasileiro até o início da década de 70, segundo ele, teriam entrado em crise e aprofundado o processo de expropriação. Neste quadro não linear, respondendo a um complexo processo desigual e combinado, foi se tornando cada vez mais comum a existência de trabalhadores que moram nas bordas dos meios urbanos, mas trabalham sob condições assalariadas no campo.
De um ponto de vista objetivo, salientou Luiz, o salto de produtividade alcançado por este conjunto de fatores tende a deslegitimar cada vez mais o argumento, usado pela esquerda desde a década de 60, de que a reforma agrária seria uma alternativa interessante porque promoveria o aumento de produtividade. “Um lote de terra para se tornar viável precisa ser altamente produtivo diante do alto grau de integração indústria-campo-indústria”. Assim, prosseguiu, “a pequena produção fica sob uma encruzilhada”, pois se encontra dependente da integração entre custo de produção e mercado, ambos sob controle da agroindústria. Logo, desde o meado da década de 80, para além dos empecilhos de caráter objetivos, começam a surgir questões de outra ordem: Quem vai lutar pela terra? Há interesse de parte do trabalhador rural?
Ponderando estas considerações, Luiz apresentou as leituras que afirmam a atualidade da luta pela terra no Brasil. Ele observou que a improdutividade da terra ainda não foi definitivamente superada em muitas regiões do país, especialmente na região Norte. Nesse sentido, a acumulação de capital no campo estaria avançando não apenas através da exploração do trabalho, mas também, o que seria bastante frequente, através da espoliação de terras. Não se poderia ignorar, a exemplo disso, o problema da demarcação de territórios indígenas e a luta dos povos quilombolas. “Se o capital luta pela terra, seja por meios legais ou pelo banditismo, nós vamos dizer que a luta pela terra acabou?” – provocou. Além disso, lembrou que atualmente continuam a existir enfrentamentos pesados pela posse da terra em todo o país.
Diante dessas hipóteses, a luta pela terra não teria se tornado obsoleta, mas, enquanto tal, seria insuficiente. “A luta pela terra” – sintetizou Luiz – “perdeu a centralidade estratégica para apontar para uma ruptura”, tendo em vista que se torna cada vez mais necessário questionar a cadeia produtiva inteira e não apenas o meio de produção terra, ao contrário do que pratica os movimentos de esquerda que insistem em ver as coisas separadamente. Enquanto o Capital fez a ponte campo-cidade-indústria-campo, os trabalhadores ainda enxergam esses espaços como fragmentados. Exemplo cabal deste fato, para ele, seria a falta de tentativas do MST, em dada ocupação de terras, em organizar, ou pelo menos dialogar com a mão-de-obra de uma usina que funcionava bem ao lado.
Dentro desse horizonte estratégico, caberia ainda conhecer as características da classe trabalhadora que está hoje em dia subordinada ao agronegócio, a qual se destaca, segundo ele, pela sua heterogeneidade. Primeiramente, a pesquisa de Luiz aponta para a persistência de certo campesinato; de quem muitas vezes se tem uma visão mistificada. Apesar de ser constituída por pequenos proprietários de terra, e por isso pensar de forma particular, tratar-se-ia, na verdade, de uma “fração de classe trabalhadora subordinada ao agronegócio”. Isto porque, premido pelos padrões de produtividade, se quiser manter-se na terra, o produtor tem que acatar os baixos preços oferecidos pela agroindústria de que normalmente é fornecedor – o que torna o seu modo de vida bem menos livre e agradável do que apregoam os conceituadores da via campesina. Desse modo, seu projeto político só poderia ser concebido em conjunto com demais setores da classe.
Haveria ainda o trabalhador rural assalariado da lavoura, o boia-fria, que começou – em termos relativos – a escassear significativamente com o processo de mecanização a partir da década de 90. Finalmente, aparecem os trabalhadores da indústria, setor que também sofreu bastante com a restruturação produtiva e as demissões em massa. Atuante num processo de trabalho completamente automatizado e que exige certo domínio de informática, este trabalhador, em sua grande maioria jovens, normalmente tem o ensino médio completo e se diferenciaria por reproduzir o discurso de colaboração promovido pela empresa.
Luiz encerrou sua fala alertando para os perigos de entender o campo brasileiro como uma realidade uniforme, e atentando para o equívoco de movimentos sociais rurais apresentarem uma visão unilateral de suas lutas. Ao contrário, ao demonstrar que as lutas no campo vão desde a luta pela terra até contra a exploração do trabalho, acabou sugerindo que o desafio de qualquer projeto de organização na luta contra o agronegócio é o de “construir pontes, sínteses que consigam englobar a multiplicidade de contradições do campo brasileiro”.
Maria Orlanda Pinassi tomou a palavra reafirmando a importância de se desmitificar certas leituras obsoletas acerca da luta pela reforma agrária, estabelecer inter-relações entre o campo e a cidade e fazer análises que abarquem a luta pela terra, a luta do trabalhador contra o grande capital na agricultura, nas fábricas, a luta contra o agro e o hidronegócio, contra a mineração, contra a especulação imobiliária, a luta dos trabalhadores empregados e desempregados, aqueles mesmos que se submetem aos trabalhos mais precários. Enfim, iniciou ressaltando a necessidade de se unificar a luta de toda a classe trabalhadora. É preciso entender que o avanço do capitalismo não é algo estático, e que atualmente modifica de modo vertiginoso as relações de trabalho. Reiterando a centralidade do trabalho, para ela, o grande problema residiria em vencer a luta cotidiana, superar a condenação da classe pela sobrevivência imediata e, ao mesmo tempo, avançar para a construção de formas de luta e de consciência necessária ao enfrentamento do capital. Estes objetivos estão cada vez mais dificultados pela reestruturação produtiva que, atingindo o campo e a cidade, acaba enfraquecendo muitas das estratégias experimentadas até aqui e obstaculizam o avanço da classe trabalhadora como classe para si.
De acordo com Pinassi, temos como desafio atual romper com o seu passado otimista em relação ao progresso capitalista. A transição tem que ser antineodesenvolvimentista, pois diferentemente do que ocorrera antes, no atual momento, de crise estrutural do capital, o crescimento econômico não vem acompanhado de nenhum benefício para trabalhadores, nem mesmo para aqueles que permanecem organizados em torno de lutas historicamente defensivas, como os sindicatos e os partidos parlamentares. Assim, “não se pode mais lutar por terra para simplesmente incluir-se no mundo do capital” – afirmou, destacando a ingenuidade (ou a má-fé) dos que hoje defendem a convivência harmônica entre a agricultura familiar e a produção de orgânicos e o agronegócio que submete a todos ao uso imperativo de sementes transgênicas e de venenos no atual modelo de agricultura. O gigantismo desse modelo inviabiliza através de uma imensa e democrática contaminação qualquer modelo alternativo. Apontou ainda para ensaios problemáticos de um tipo de reforma agrária promovida pelo Estado, controlada pelo grande capital do setor do agronegócio e, pior, com a participação de movimentos sociais de luta pela terra. Esse teria sido o caso da negociação entre a empresa de celulose Fíbria, o governo do estado da Bahia e o MST para assentar famílias em uma área de 10 mil hectares para plantar sabe-se lá o que.
Para evitar que sejam cometidos os mesmos equívocos, declarou a professora, seria preciso que toda luta que se desenvolvesse daqui em diante rejeitasse qualquer forma de tutela do Estado e alianças com o grande capital, pois não se trata de lutar apenas contra o agronegócio, mas contra o capital. Desse modo, a luta pela terra não poderia mais se dar no velho sentido da reforma agrária, da reforma agrária como política pública capaz de contribuir para o desenvolvimento do capitalismo no campo. O campo se desenvolveu e atrás de si carregaria um problema social de proporções dramáticas. Ironicamente, e ao contrário do que se pensou no passado, isso estaria acontecendo sem Reforma Agrária. “Então, eu só vejo a possibilidade de uma luta pela terra vinculada a outras lutas, sob controle efetivo dos trabalhadores e que visem à derrubada do capital e da propriedade privada sob qualquer forma histórica possível”, afirmou. Através dessa unidade da classe trabalhadora, a luta pela terra não serviria tão somente para preservação ambiental através do que se costuma chamar de desenvolvimento sustentável (“impossível sob a lógica do capital”) ou para assentar e criar uma pletora de pequenos produtores subordinados à lógica da agricultura neoliberal. A luta tem que carregar a intenção da classe de se apropriar da terra, um bem supremo para a existência da humanidade contra sua destruição pelo capital.
Maria Orlanda Pinassi ainda frisou que temos que trabalhar num horizonte no qual as políticas de alívio da pobreza causada pelas políticas neoliberais, algo já previsto nas origens pelos ideólogos do neoliberalismo, e cujo exemplo no Brasil é dado principalmente pelo Programa Bolsa Família, serão as primeiras a serem suprimidas no caso de um provável aprofundamento da crise estrutural do sistema no Brasil. E da mesma forma que hoje assistimos a um recuo da luta pela terra com ocupações de mais longa duração e acampamentos rurais de mais largo espectro, nada garantiria longa vida até mesmo para assentamentos regulamentados e consolidados. Na prática isso já vem acontecendo com a remoção de assentamentos para a duplicação da ferrovia da Vale no Pará. Outro caso foi lembrado por um dos participantes decorrente da transposição do Rio São Francisco, no qual as famílias assentadas voltaram à situação de acampadas. A mesma coisa vem acontecendo com terras indígenas já demarcadas e expropriadas por um consórcio de interesses mediados pelas obras do PAC.
Outro ponto importante levantado pela Pinassi foi a necessidade de repensarmos o conceito de desempregado, não podendo mais ser considerado como mero sinônimo de lumpesinato. Isso seria importante porque os movimentos sociais, como o MST, por exemplo, deveriam, segundo ela, realizar uma profunda autocrítica interna no sentido de discutir acerca de quem seria hoje seu potencial militante. “Não, ele não é um camponês, nem se converterá em tal.” É necessário politizar a discussão interna e assimilar a perspectiva de que são, prioritariamente, os desempregados, os precarizados do campo e da cidade, cuja sociabilidade foi atingida por toda sorte de deformações criadas pelo mundo burguês, os indivíduos a formar suas fileiras. Somente uma profunda formação político-ideológica interna, radicalmente crítica ao capital, e uma práxis ofensiva, jamais inclusiva, em torno da luta pela terra, como expressão da luta contra a propriedade privada, poderá tornar concreta a transição para o socialismo.
Luiz retomou a palavra para referir casos concretos em que o esforço de síntese poderia ser exercitado: “como fazer com que quem é removido por uma grande obra fale a mesma língua que [a de] um operário da construção civil que trabalha nesta mesma obra, por exemplo?” Neste mesmo sentido, Maria Orlanda mencionou o caso do Movimento dos Atingidos pela Mineração como outro tipo de ponte possível, destacando o seu “potencial integrador e internacional”, já que abrange diversas composições e frações de classe.
Antes de encerrar, Luiz Felipe atentou para o fato de termos pela frente um “esforço de maratona”, e que, nesta condição, não conviria mais haver diagnósticos baseados em impressões. Diante disso, caberia a tarefa de identificar com mais precisão as “rachaduras” que certamente existem no bloco dominante e governista, pelo que, sugeriu ele, valeria um olhar especial para o setor da construção civil, que vem protagonizando valiosos processos de luta no contexto das grandes obras. Maria Orlanda finalizou a conversa salientando que, apesar das imensas dificuldades e incertezas que pairam na atual quadra histórica, não podemos, de maneira nenhuma, paralisar a ação.
A entrevista ja ganha de saída ao ter sido feita numa fábrica ocupada. É necessário trazer o pensamento crítico para o espaço das lutas. Nada de Casa do Saber nem USP.
Farto comprementá com uma observação de arguém vindo das lutas no campo.. ia ser um trumpé