Nota de apoio e preocupação diante da situação do Quilombo Rio dos Macacos
As organizações não-governamentais, movimentos sociais e assessorias que subscrevem esse documento vêm por meio deste demonstrar sua solidariedade à Comunidade Quilombola do Rio dos Macacos (BA), assim como, manifestar sua preocupação diante dos últimos fatos de ampla repercussão nacional e internacional que envolvem ameaças de violações de direitos em suas dimensões políticas, sociais, culturais, econômicas, ambientais e históricas.
A comunidade quilombola do Rio dos Macacos é uma comunidade negra rural, composta por cerca de quarenta famílias, que remonta mais de um século de existência em área do Recôncavo Baiano, região do estado onde desde o século XVII se instalaram os engenhos produtores de cana-de-açúcar. Atualmente, a comunidade encontra-se cravada no atual município de Simões Filho, região metropolitana da cidade de Salvador.
Os habitantes realizam suas atividades rurais como a pesca e o extrativismo de forma comunitária, utilizando áreas de uso comum e perpetuam, assim, a tradição cultural de viver dos seus antepassados, conforme o relato apresentado ao Ministério Público Federal pela anciã Maurícia Maria de Jesus(111 anos de idade) : “essa terra é dos tempos dos meus avós. Meu pai, Severiano dos Santos, já falecido, nasceu aqui em 1910 e teve vinte e dois filhos aqui. O pai dele, José Custódio Rebeca, também nasceu aqui.”
A Marinha do Brasil começou no início dos anos de 1970 a edificar as construções do que viria a ser, futuramente, a Base Naval de Aratu, na zona suburbana do bairro de Paripe, Salvador. No início desta mesma década, a Marinha construiu a Barragem do Rio dos Macacos, que dividiu ao meio a comunidade quilombola.
Nesse momento é que são iniciadas as tentativas, por parte da Marinha, de expulsão das famílias. A administração militar passou então a impor diversas proibições, entre elas a de construir ou reformar suas casas, manter ou iniciar roças de subsistência, criar gado de pequeno ou grande porte, entrar e sair do território livremente, receber parentes e convidados, realizar reuniões ou se organizar politicamente, entre outros impedimentos.
Destaca-se que além da não titulação/regularização da área quilombola, as famílias não têm direito à água encanada, energia elétrica e saneamento básico, além disso, o correio postal, documentos e cartas endereçadas aos moradores da comunidade passam por triagem da Marinha, são 04 (quatro) décadas de intenso tensionamento para que o conflito atinja dimensões insuportáveis, porém, a comunidade não esmoreceu.
No dia 28.05 do corrente ano, foi veiculado em diversas redes sociais mais uma situação de extrema violência contra a comunidade Rio dos Macacos, pois, a Marinha utilizando um grupo de fuzileiros fortemente armados invadiu o local para derrubar a casa de um morador que estava reerguendo uma parede danificada pelas chuvas do final de semana, a ação desastrosa atingiu uma criança e gerou novas tensões.
A situação poderia parecer apenas um fato corriqueiro diante de tantas outras tentativas de intimidações e direitos negados, porém, há indícios de que está em curso uma retaliação sistemática contra a comunidade em face do grau de articulação local, nacional e internacional que a comunidade vem conseguindo nos últimos anos, em especial a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal, a Associação de Advogados/as de Trabalhadores Rurais (AATR), a Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA) e outros.
Concorre para tal visibilidade a perspectiva de uma decisão na Justiça Federal que aponte uma solução para o conflito com a permanência da comunidade no local, assim como, uma visita programada para próxima segunda-feira (04.06), no qual estão confirmadas a participação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos/as Deputados/as, Procuradoria Geral da República, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, organizações e assessorias de apoio. Até o momento estão agendadas uma visita a Comunidade, assim como, reuniões com o Governo do Estado da Bahia e com o Secretário Geral da República.
O Estado brasileiro, através das suas instituições devem proporcionar o cumprimento dos princípios, objetivos e leis que foram promulgadas na Constituição Federal de 1988, assim como, em tratados, pactos e declarações internacionais, a Constituição reconhece a necessidade de titulação das áreas quilombolas em seu Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, compreende a necessidade e promove o reconhecimento cultural, social e histórico (material e imaterial) da contribuição dos afro-brasileiros para construção de uma sociedade plural (Artigos 215 e 216 da Constituição).
No campo do direito internacional, ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que trata do autorreconhecimento, uso do território e garantia para que as comunidades possam manter seus modos de vida, sejam elas comunidades indígenas, quilombolas e populações tradicionais.
No momento em que desafios no campo da regulamentação do processo de Consulta prevista na Convenção 169 da OIT são discutidos e estimulados pelo próprio Governo Federal através do Itamaraty e demais Ministérios, assim como, persiste a batalha jurídica pela manutenção do Decreto 4.887/03 no Supremo Tribunal Federal, na qual dezenas de organizações de direitos humanos, associações quilombolas e outros movimentos se acostam ao processo na defesa do direitos quilombolas, a ingerência contínua da Marinha no quilombo do Rio dos Macacos caminha na contramão da história e configura-se como um atentado não apenas a essa comunidade quilombola, mas a todas as outras no Brasil e América Latina, cabendo a responsabilização interna e internacional do Estado brasileiro sobre qualquer situação na qual os agentes do Estado utilizem a força coercitiva para intimidação e negação de direitos.
Assinam esta nota:
Centro de Assessoria Popular Mariana Criola.
Centro de Referência em Direitos Humanos – UFPB.
Comissão Pastoral da Terra – Regional Nordeste 2.
Dignitatis – Assessoria Técnica Popular.
GT Combate ao Racismo Ambiental[1] da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Justiça Global.
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.
Terra de Direitos.
Plataforma Dhesca Brasil.
[1] Entidades que compõe o GT de Combate ao Racismo Ambiental: AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – Salvador – BA; Amigos da Terra Brasil – Porto Alegre – RS; ANAÍ – Salvador – BA;Associação Aritaguá – Ilhéus – BA;Associação de Moradores de Porto das Caixas (vítimas do derramamento de óleo da Ferrovia Centro Atlântica) – Itaboraí – RJ; Associação Socioambiental Verdemar – Cachoeira – BA;CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) – Belo Horizonte – MG;Central Única das Favelas (CUFA-CEARÁ) – Fortaleza – CE; Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) – Belém – PA; Coordenação Nacional de Juventude Negra – Recife – PE; CEPEDES (Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia) – Eunápolis – BA;CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores) Nacional ;CPP BA – Salvador – BA;CPP CE – Fortaleza – CE;CPP Nordeste – Recife (PE, AL, SE, PB, RN);CPP Norte (Paz e Bem) – Belém – PA;CPP Juazeiro – BA;CPT – Comissão Pastoral da Terra Nacional;CRIOLA – Rio de Janeiro – RJ;EKOS – Instituto para a Justiça e a Equidade – São Luís – MA; FAOR – Fórum da Amazônia Oriental – Belém – PA; Fase Amazônia – Belém – PA; Fase Nacional (Núcleo Brasil Sustentável) – Rio de Janeiro – RJ;FDA (Frente em Defesa da Amazônia) – Santarém – PA;FIOCRUZ – RJ;Fórum Carajás – São Luís – MA;Fórum de Defesa da Zona Costeira do Ceará – Fortaleza – CE;FUNAGUAS – Terezina – PI;GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra – São Paulo – SP;GPEA (Grupo Pesquisador em Educação Ambiental da UFMT) – Cuiabá – MT; Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e do Direito: interações sociedade e meio ambiente, da UFBA – Salvador – BA;GT Observatório e GT Água e Meio Ambiente do Fórum da Amazônia Oriental (FAOR) – Belém – PA;IARA – Rio de Janeiro – RJ;Ibase – Rio de Janeiro – RJ;INESC – Brasília – DF; Instituto Búzios – Salvador – BA;Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense – IF Fluminense – Macaé – RJ;Instituto Terramar – Fortaleza – CE;Justiça Global – Rio de Janeiro – RJ;Movimento Cultura de Rua (MCR) – Fortaleza – CE;Movimento Inter-Religioso (MIR/Iser) – Rio de Janeiro – RJ;Movimento Popular de Saúde de Santo Amaro da Purificação (MOPS) – Santo Amaro da Purificação – BA;Movimento Wangari Maathai – Salvador – BA;NINJA – Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental (Universidade Federal de São João del-Rei) – São João del-Rei – MG;Núcleo TRAMAS (Trabalho Meio Ambiente e Saúde para Sustentabilidade/UFC) – Fortaleza – CE;Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego – Macaé – RJ;Omolaiyè (Sociedade de Estudos Étnicos, Políticos, Sociais e Culturais) – Aracajú – SE;ONG.GDASI – Grupo de Defesa Ambiental e Social de Itacuruçá – Mangaratiba – RJ;Opção Brasil – São Paulo – SP;Oriashé Sociedade Brasileira de Cultura e Arte Negra – São Paulo – SP;Projeto Recriar – Ouro Preto – MG;Rede Axé Dudu – Cuiabá – MT;Rede Matogrossense de Educação Ambiental – Cuiabá – MT;RENAP Ceará – Fortaleza – CE; Sociedade de Melhoramentos do São Manoel – São Manoel – SP;Terra de Direitos – Paulo Afonso – BA e TOXISPHERA – Associação de Saúde Ambiental – PR. Participantes individuais: Ana Almeida – Salvador – BA;Ana Paula Cavalcanti – Rio de Janeiro – RJ;Angélica Cosenza Rodrigues – Juiz de Fora – Minas;Carmela Morena Zigoni – Brasília – DF; Cíntia Beatriz Müller – Salvador – BA;Cláudio Silva – Rio de Janeiro – RJ;Daniel Fonsêca – Fortaleza – CE;Daniel Silvestre – Brasília – DF;Danilo D’Addio Chammas – São Luiz – MA; Diogo Rocha – Rio de Janeiro – RJ/ Florival de José de Souza Filho – Aracajú – SE; Igor Vitorino – Vitória – ES;Janaína Tude Sevá – Rio de Janeiro – RJ;Josie Rabelo – Recife – PE; Juliana Souza – Rio de Janeiro – RJ; Leila Santana – Juazeiro – BA; Luan Gomes dos Santos de Oliveira – Natal – RN; Luís Claúdio Teixeira (FAOR e CIMI) Belém- PA; Maria do Carmo Barcellos – Cacoal – RO; Mauricio Sebastian Berger – Córdoba, Argentina; Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio – São Carlos – SP; Pedro Rapozo – Manaus – AM; Raquel Giffoni Pinto – Volta Redonda – RJ; Ricardo Stanziola – São Paulo – SP; Ruben Siqueira – Salvador – BA; Rui Kureda – São Paulo – SP; Samuel Marques – Salvador – BA; Tania Pacheco – Rio de Janeiro – RJ; Telma Monteiro – Juquitiba – SP; Teresa Cristina Vital de Sousa – Recife – PE; Tereza Ribeiro – Rio de Janeiro – RJ e Vânia Regina de Carvalho – Belém – PA
Nada que desvalorize a nota ou o masi que necessário apoio, mas tem algo estranho quando a anciã Maurícia Maria de Jesus (111 anos de idade, ou seja, de 1901, por aí) diz: “essa terra é dos tempos dos meus avós. Meu pai, Severiano dos Santos, já falecido, nasceu aqui em 1910…”. Talvez o caso de rever o texto, para não virar alvo fácil…