Como se podem mobilizar para uma actividade de protesto desempregados, precários e trabalhadores em dificuldades? Por Passa Palavra

Desde a segunda metade da década de 1970 que quase não existiram em Portugal movimentos sociais capazes de dinamizar uma ampla onda de contestação social e política. Nos últimos anos, e um pouco na sequência de mobilizações noutros pontos do mundo, parecia que o cenário estaria a mudar. Todavia, constatamos que em ano e meio se está a voltar à estaca zero. Veremos qual o papel que os métodos de trabalho e as concepções políticas de quem está nos movimentos têm em todo este processo.

1.

Fala-se em convocar uma manifestação para Outubro, mas em que dia? Ora, a hesitação quando à data revela a convicção de que o internacionalismo consiste em fazer as coisas no mesmo dia em todo o mundo, o que, no mínimo, é ingénuo. Também se fala, a mais longo prazo, em organizar uma Primavera de lutas, sem se lembrarem de que no hemisfério sul seria um Outono de lutas, o que parece pouco animador. Na realidade, a organização internacional de um evento implica contactos mais sólidos e duradouros do que aqueles que se podem realizar graças às redes sociais. Mas se a ligação aos movimentos de outros países se resume a uma questão de calendário, fica o problema de a data comum não ser eventualmente a melhor para algum país, neste caso para Portugal.

Na questão da data o grande espectro que paira sobre os organizadores não parece ser o capitalismo, mas a capacidade de mobilização da central sindical CGTP. Se em vez de irem para a rua no dia 15 de Outubro forem a 13 de Outubro coincidem com a manifestação convocada pela CGTP, mas o que farão com esta coincidência? Se fizerem a manifestação no mesmo dia é para estarem com os sindicatos? Ou contra eles? Ou optarão por manter manifestações separadas, facilitando assim a vida ao serviço de ordem da central sindical, que gosta tanto da polícia a que pertence como teme os esquerdistas, mesmo que estes de esquerda não tenham nada? Há ainda quem proponha que em vez de lançarem a iniciativa no mesmo dia da CGTP ou dois dias depois se antecipem e organizem uma marcha sobre a capital, deixando a manifestação sindical no meio. Em qualquer caso, na discussão sobre a data não se tomam em conta as vulnerabilidades do capitalismo, mas apenas a notável capacidade mobilizadora da CGTP.

Será paradoxal que os defensores da autonomia dos movimentos sociais pretendam agora juntar-se nas ruas a sindicatos organizados de forma vertical, que os agridem quando os autonomistas participam sem autorização nas manifestações sindicais? Estarão os movimentos sociais enfraquecidos a cair numa subserviência aos sindicatos, tanto mais que um protesto contra a austeridade com uma matriz apartidária e exterior ao sindicalismo poderia ser incómodo para o Bloco de Esquerda, para o Partido Comunista e até para o pequeno Movimento de Alternativa Socialista? Mas se fizerem a manifestação noutro dia não ficarão sozinhos? Como se não estivessem já sozinhos e não o continuassem a estar depois!

2.

A questão do local também é debatida e o Parlamento é considerado por alguns como um alvo importante, não percebemos porquê. Será que estão convencidos de que Portugal ainda existe como entidade soberana? De que os políticos mandam na economia? De que as discussões e os votos parlamentares são causas e não simples resultados? Tanto faz que o Parlamento esteja a funcionar ou não, que seja dia de discursos ou que os deputados estejam de folga. Escolher o dia de uma manifestação em função das actividades parlamentares é colocar as coisas ao contrário e ajudar à confusão. Mas se, apesar disto, se quiser escolher São Bento como alvo do desfile, pelo menos não pensem que conseguirão cercar aquele mastodonte. Para isso não basta energia, como alguns julgam. São necessárias pessoas, e muitos milhares delas.

Mais engraçada ainda é a exclamação de que «as escadas da Assembleia já foram do povo». Houve uma época em que os revolucionários pretendiam tomar as sedes do poder. Mas estes, talvez por não serem revolucionários, têm como horizonte sentar-se à porta. Quem sabe se não terão assim a ilusão de estar lá dentro.

3.

Ainda mais problemática e significativa é a hesitação quanto ao conteúdo da manifestação. Dizem uns que a força da iniciativa dependerá da qualidade das ideias dos organizadores; e depois perguntam se alguém tem ideias novas e convocam reuniões com a esperança de que haja quem traga as tais novidades. Nesta situação de perplexidade, parece haver uma maioria a reclamar uma mudança de paradigma. Mas não se inventam todos os dias novos paradigmas, porque esses surgem apenas em resposta a novos problemas, e aqueles problemas com que hoje os portugueses se debatem são, quanto ao fundamental, tão antigos como o capitalismo.

Parece-nos estranho que se decida convocar uma manifestação sem, à partida, ter ideia de qual será o seu objetivo. Vai-se para a rua porque sim, ou melhor, porque é necessário fazer qualquer coisa. O resultado é a manifestação surgir, não como um acontecimento que produz a realidade, alterando o quotidiano das relações de poder, mas como mais um elemento que preenche esse quotidiano, sem o conseguir alterar. Ao contrário do que, a título de exemplo, aconteceu na manifestação realizada no Porto no dia 25 de Abril, em solidariedade com o projecto Es.Col.A. Independentemente dos resultados obtidos a curto prazo, a iniciativa tinha um objectivo claro e fazia parte de uma estratégia alargada, não se resumindo a algo efémero e isolado de tudo o resto.

A manifestação, segundo a própria etimologia, deve manifestar. Não deve criar, por si só, algo de raiz, mas sim exprimir uma vontade colectiva, minimamente coordenada. Essa será, talvez, a explicação dos rumos distintos entre Lisboa e Madrid, capitais que a geografia, mas não a política, colocou tão perto uma da outra. Em Madrid, o fim da ocupação da Praça do Sol não implicou um regresso às habitações privadas, mas sim às diversas assembleias de bairro e centros sociais existentes na cidade, mais fortes do que dantes.

Sem esse conteúdo, fruto de uma comunicação com as pessoas que vivem ao nosso lado ou são nossas colegas de trabalho, qualquer proposta de acção, seja manifestação seja outra coisa qualquer, não passa de activismo. É o agir pelo agir, para que no final do dia uma pessoa se possa sentir bem consigo mesma. No dia seguinte, contudo, regressa-se à realidade.

4.

Num país economicamente esfacelado e cuja situação promete deteriorar-se mais ainda, não faltam razões para reclamar. Mas para alguns dos que estão a cogitar na manifestação de Outubro essas razões não parecem suficientes nem válidas. E quando se vêem quase sozinhos na rua não pensam que o isolamento se possa dever a eles, às suas formas de actuação, aos seus métodos de organização, e acham que se deve aos outros, aos cidadãos comuns que não se dão ao trabalho de sair de casa para gritar com eles. Há quem pergunte por que motivo as pessoas não estão na rua e logo em seguida duvide de que seja enchendo ruas que se façam mudanças, o que parece um raciocínio em círculo vicioso.

A este respeito, um bom — ou péssimo — exemplo é a ideia da greve ao consumo, proposta na reunião de 25 de Julho no Príncipe Real. Quando há algum tempo vimos a esquerda erguer-se indignada contra a campanha de descontos organizada por uma rede de supermercados e a vemos agora pretendendo que uma população miserabilizada e muita dela passando fome faça uma greve ao consumo, entendemos quais são os sectores sociais empenhados nestas propostas. O que há de mais lamentável naquilo a que os jornalistas e os técnicos de marketing chamam classe média é o esforço desesperado que fazem para não parecer o que são — novos proletários. Quanto mais a crise ameaça as camadas de rendimentos médios, tanto mais elas gostam de se apresentar acima de assuntos banais como, por exemplo, comer e trabalhar.

A propósito deste assunto, alguém escreveu: «Será caso de reivindicar a importância da classe operária com punho fechado no ar? Se o mundo fosse populado somente por classes (ou castas) obreiras seria um mundo equilibrado no seu ecosistema?». E essa pessoa continua: «Se estivessem todo o tempo a laborar teriam tempo para criar (o acto de criar não é um trabalho, ou não deveria ser)? Não deveremos deixar de olhar para as pessoas como unidades de trabalho?». Colocar questões destas perante o aumento do número de desempregados e o agravamento da situação dos que têm emprego é um perverso cinismo. E depois querem sair à rua e espantam-se por não arranjar seguidores.

Então pedem seguidores como quem põe anúncios num jornal, que queiram «fazer acontecer uma Lisboa mais sustentável ecológica e socialmente», que queiram «experimentar novas formas de activismo e de acção directa não-violenta», que «gostem de escrever, de dançar e de música» e outras coisas mais, elegantes e nefelibáticas, uma gente diferente, que não a de todos os dias, pedem pessoas que «apreciem e pratiquem o bem-estar» — está tudo dito.

5.

Da reunião em 21 de Julho na Casa do Brasil resultou um apelo destinado a ser divulgado amplamente entre activistas e redes sociais, em que a certo passo se lê: «Sujeitos durante meses a uma autêntica lavagem cerebral, que criou a ideia geral de que a austeridade e o retrocesso civilizacional eram inevitáveis e, pior que isso, aceitáveis, os portugueses não acreditam que fazendo ouvir a sua voz na rua, participando, organizando-se, exigindo e construindo de outras formas, a sua vida possa eventualmente ser melhor». Mas será que os portugueses realmente não acreditam que a sua vida possa ser melhor ou não acreditam nas pessoas que lhes prometem uma melhoria da vida, venham elas de São Bento ou da Luz Soriano? É que são duas questões muito diferentes. E o referido apelo considera que «pela calada de tudo isto, a democracia conquistada em Abril degenera a olhos vistos». Pedimos desculpa por não concordar. A democracia de Abril não degenerou, ela é e sempre foi exactamente isto. O resto, a revolução que se procurou fazer em 1974 e 1975 foi derrotada por dentro e por fora, e foi sobre essa derrota que se edificou a democracia em que temos vivido.

O mesmo apelo resultante da reunião de 21 de Julho na Casa do Brasil proclama: «[…] a corrupção grassa enquanto as pequenas e médias empresas definham sobre os lucros e chantagens das grandes corporações e bancos […] Os bancos são salvos com dinheiros públicos e mantém os seus lucros e influências, enquanto forçam os cidadãos ao desemprego, perda da casa, e à precariedade».

Também um esboço de manifesto, emanado de uma reunião convocada para a Casa do Alentejo a 16 de Agosto, menciona «uma crise cuja responsabilidade é dos banqueiros e da elite financeira».

Para quem pretende revitalizar a esquerda com novos paradigmas, é curioso que recorra a paradigmas não só velhos como de extrema-direita. A distinção entre capital produtivo e capital especulativo deve-se originariamente à extrema-direita da primeira metade do século XX, que a partir daí construiu o seu programa, a sua estratégia e as suas formas de acção. Não sejamos injustos, porque esta tese não se faz ouvir só na Casa do Brasil nem só nas acampadas e desfiles. Escutemos, uma de entre muitas, uma voz que se situa, ou imagina situar-se, na esquerda. Daniel Oliveira  escreveu: «Os empresários do sector produtivo têm de perceber que, neste momento específico, o capitalismo financeiro, que vive da especulação à custa da produção, é seu inimigo. E que, por isso, também são diferentes os seus aliados. […] É a banca que, aos poucos, suga os recursos toda a atividade produtiva das Nações. Entre a ética do capitalista tradicional e a ética do especulador apenas a legitimidade do lucro lhes é comum. Tudo o resto os afasta».

Num artigo publicado no Passa Palavra, O especulador e o industrial, João Valente Aguiar tratou devidamente esta questão, o que nos permite agora ser sucintos. «O que me interessa (e me preocupa)», escreveu Valente Aguiar a dado passo daquele artigo, «é a facilidade com que não se reflecte sobre as implicações e os caminhos travessos que determinadas posições políticas acarretam». Tem toda a razão. O fascismo é ainda mais perigoso quando surge à esquerda do que quando surge à direita, e aqui é de fascismo que se trata, já que se propõe a aliança dos trabalhadores com os empresários industriais contra um pretenso inimigo comum, a abstracção fiduciária.

Nisto tudo há quem tenha a lucidez de reconhecer a existência de sectores da extrema-direita que usam os temas do apartidário e laico para apelar à participação cívica. Há quem tenha a lucidez de indicar que é um erro imaginar que essa extrema-direita seja a favor do Orçamento e das medidas impostas pela Troika e previna que muita dela, especialmente a mais perigosa, está contra. Se assim é, como não se entende que as diatribes contra o capital especulativo e contra a economia de casino e os elogios e ofertas de aliança ao capital produtivo tecem a teia em que essa extrema-direita se desenvolve?

6.

Por detrás destes dilemas há um problema enorme, de cuja ultrapassagem depende toda a luta anticapitalista neste momento. Temos de nos esforçar por congregar desempregados, trabalhadores precários e trabalhadores sindicalizados. Mas esta conjugação não se realiza num dia, numa avenida, furando serviços de ordem e tentando que gritos diferentes ou opostos se conjuguem numa polifonia em vez de serem o que realmente são, uma cacofonia.

Como se podem mobilizar para uma actividade de protesto desempregados, precários e trabalhadores em dificuldades? Partir da contestação de um grande centro industrial ou mesmo de um bairro, invocando problemas concretos, são as formas tradicionais de desencadear processos de luta. Mas as lutas novas como se começam? Todos falam das redes sociais, dos telemóveis, etc. Estes processos podem chamar as pessoas, concentrá-las num local, mas daí não tem surgido nada de muito significativo, porque não se consolidam relações entre pessoas reunidas por apelos momentâneos. As pessoas apareceram na primeira convocação, pensavam que poderia dali sair alguma coisa, ficaram decepcionadas e não voltaram. Quem ficou? Os resistentes ou são membros de pequenas organizações preocupadas apenas em recrutar filiados ou são ingénuos que querem fazer alguma coisa mas não sabem como.

7.

Gente dispersa, numa plataforma vazia de conteúdo, é fácil de agarrar. Sem dificuldade qualquer grupúsculo organizado pode tomar conta do movimento. A plataforma apartidária torna-se um excelente camaroeiro para apanhar incautos, e as técnicas são conhecidas:

– Criação de mailing lists duplas, uma para os iniciados e outra para os parolos, atropelando o princípio de transparência que se diz caracterizar os movimentos igualitários e a democracia verdadeira e .
– Anunciar reuniões por e-mail sem horário e local confirmados, para que no encontro esteja apenas a meia dúzia de iniciados.
– Convocar reuniões gerais com tão pouca divulgação que aparece apenas o pequeno número de pessoas previstas.
– Atribuir o poder decisório apenas às reuniões e não às discussões na internet, já que uma reunião é mais simples de manipular do que as discussões em listas de e-mails.
– O mesmo se pode dizer acerca das assembleias populares quando são esvaziadas de participantes, e populares apenas no sentido de se reunirem numa praça pública.
– Organizam-se Grupos de Trabalho que tratam à sua maneira as decisões aprovadas nas Assembleias Plenárias.
– Um grupúsculo recusa-se a organizar assembleias populares quando o equipamento não lhe pertence e, portanto, quando corre o risco de perder o controlo sobre o acto.
– Em assembleias que se pretendem horizontais e exteriores aos partidos são obtidas posições privilegiadas para figurões ou chefes de grupúsculos partidários graças a acordos de bastidores com outros grupúsculos.
– E quando alguém sugeriu que os organizadores abdicassem de usar o microfone, cedendo o lugar a pessoas novas que pedissem para falar, esta sugestão foi recebida com estupefacção por aqueles que depois, como habitualmente, ocuparam o palco.

No fim sai um novo partido como um coelho do chapéu do prestidigitador. Enfim, um coelhinho.

Entretanto, em público é a habitual hipocrisia do discurso de democracia participativa, autonomia e por aí fora. As raras críticas de fundo são feitas à porta fechada. É para contrariar essa prática e dificultar as manobras dos grupúsculos que publicamos este artigo. Outros seguirão.

Ilustrações: graffiti nas paredes de Lisboa.

2 COMENTÁRIOS

  1. Quando a prática envolve a mobilização de outros e sua efetividade será atingida apenas quando estes outros forem muitos, precisamos ter extrema cautela e reavaliar constantemente os rumos e contornos do movimento posto em marcha. Quando Paulo Freire se posiciona contrariamente a “sloganização” da luta contra a opressão, propõe a emancipação de cada indivíduo em particular como diretamente necessária para que o processo coletivo seja efetivado. Sob o risco de o movimento se tornar massa de manobra nas mãos hábeis de grupos organizados com outras intenções.
    E as “promissoras” manifestações de 2011, pra onde vão? E nós, o que faremos a respeito?
    Este artigo do Coletivo luso-brasileiro Passa a Palavra pode muito bem ser considerado como um balde de água fria aos que como eu se enchem de esperança com a efervescência dos Movimentos Sociais deste início de século. Por outro lado, penso que tais argumentações devem ser muito bem-vindas a todos os que se envolvem com as lutas pela transformação do mundo despidos de dogmatismos e portanto devem expor seus conhecimentos constantemente à toda revisão e re-articulação que se fizerem necessárias.
    Lembremos que a crise da Esquerda é também, e talvez muito mais, uma crise do próprio conhecimento!
    Parabéns pelos blog, pelo artigo e obrigado pelo conhecimento compartilhado!

  2. Obrigada – pela transparência articulada do seu discurso, neste tempo saturado e medíocre.

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