Analisamos aqui o manifesto O Meio da Esquerda: Do Contra ao Como. Por Passa Palavra
Nos últimos meses, a crescente oposição popular contra a aliança entre o governo português e a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) tem alimentado as esperanças de quem encontra a solução numa esquerda alternativa, apta a governar. Dizem-nos que chegou a hora de nos juntarmos e não discutirmos questiúnculas, que quando o barco ameaça ir ao fundo ou a casa está a arder não pomos condições para saltar para o salva-vidas ou agarrar no extintor. Mas para quê empregar estas analogias senão para obscurecer a razão, porque antes de mais seria necessário demonstrar que as analogias são válidas. A função da análise política não é a de alimentar a histeria mas de estimular a lucidez, e com este objectivo analisamos aqui o manifesto O Meio da Esquerda: Do Contra ao Como, assinado pelo eurodeputado Rui Tavares, Paula Gil, António Peres Metello e outros [1] e publicado no Expresso de 29 de Setembro.
1.
Do ponto de vista das medidas fiscais aquele Manifesto reflecte uma concepção fortemente republicana e, em última instância, até nacionalista. O nacionalismo vai muito para além de uma bandeira partidária e da mera aclamação da nação — é toda uma estrutura de pensamento que tolhe a clarividência de organizações inteiras e as impede de vislumbrar outras dimensões além das do seu Estado nacional. No plano fiscal e económico é o que se passa com aquele Manifesto.
Não por acaso, o grupo que o redigiu fundamenta a sua oposição à Troika a partir da necessidade de libertar o país. Falam de «inverter esta situação de dependência em que o país se encontra» e de «libertar» Portugal «da dependência». Ou seja, em vez de considerarem os aspectos socioeconómicos que estão em jogo, o espaço de análise do Manifesto situa no plano nacional a aplicação de medidas económicas de «sustentabilidade financeira da República». Como se alguma vez, e mais ainda nos dias de hoje, fosse possível ultrapassar as crises económicas do capitalismo dentro de um Estado nacional. E se esse Estado nacional se chamar Portugal, o ridículo é ainda maior. Note-se que não colocamos o tema neste patamar de discussão por um qualquer finca-pé ideológico, mas procuramos chamar a atenção para algo que deveria ser óbvio para qualquer pessoa de esquerda minimamente informada sobre as dinâmicas do capitalismo.
Assim, o nacionalismo económico evidenciado pelos autores está bem visível logo na primeira medida fiscal apresentada. «É de primeira necessidade encontrar meios para cortar a fuga de capitais para os bancos estrangeiros», escrevem eles, «promover a poupança interna e aumentar o financiamento de curto prazo do Estado». Para atingir este objectivo os autores propõem a «criação de um sistema de “títulos fiscais”, um mecanismo voluntário que permitirá ao contribuinte pagar impostos do ano corrente ou de anos futuros contra um benefício».
Do ponto de vista prático, estas asserções levantam desde logo duas questões. Por um lado, o grande problema do financiamento do Estado português não se situa no imediato, pois a chamada ida aos leilões de títulos da dívida pública tem ocorrido de modo continuado e, até ao anúncio das medidas relacionadas com a Taxa Social Única, as taxas de juro para maturações de curto prazo vinham baixando (ver aqui). Por outro lado, a emissão desses novos títulos pode resultar num efeito retroactivo de ainda maior endividamento do Estado. O que no curto prazo pode parecer um balão de oxigénio, a médio prazo pode resultar num aumento do endividamento público. A somar a tudo isto existe uma contradição nos termos político-ideológicos dos proponentes do Manifesto. Os que recorrentemente vituperaram o capital financeiro parasitário e agiota são os mesmos que agora defendem uma ampliação da titularização das operações de financiamento do Estado. Em que ficamos?
A segunda grande medida neste capítulo fiscal e económico prende-se com o aumento da carga fiscal «sobre os capitais, os lucros das PPP [Parcerias Público-Privadas] e os grandes rendimentos». Transversal a praticamente toda a esquerda com aspirações parlamentares, esta medida repete o velho esquema de taxar o capital dentro das fronteiras nacionais. Surpreendente é a sua persistência enquanto panaceia de todos os problemas. Perante a repetição destas medidas desde há várias décadas, só apetece perguntar aos intelectuais da esquerda portuguesa se acham que a burguesia e os gestores têm o dinheiro em depósitos bancários comuns, esquecendo que a generalidade da riqueza apropriada pelas empresas está em títulos, obrigações, acções, portefólios financeiros de todo o tipo, etc., o que lhes permite canalizar muito rapidamente esse dinheiro por qualquer lado… A taxação do capital é obviamente correcta em termos da sua substância abstracta, mas é impraticável e muito pouco eficaz no plano nacional.
O triste disto tudo é que à medida que o capital se foi internacionalizando e transnacionalizando, a esquerda continua a suspirar pelo espaço nacional, como se conseguisse resolver alguma coisa dentro de um quadro totalmente secundário nas economias capitalistas actuais. Ainda por cima em países insignificantes como Portugal ou a Grécia… E, nova contradição, a esquerda que se reivindica de europeísta é a mesma que pensa poder resolver ou minorar o que quer que seja no quadro nacional. Quando o nacionalismo subsiste na estrutura interna dos argumentos políticos e está ausente do lado facial e mais imediatamente apreensível dos nossos europeístas de esquerda, não é difícil adivinhar qual é a tendência dominante e, em última instância, decisiva na definição das suas acções políticas.
A terceira medida fundamental apontada naquele Manifesto seria a criação de um «fundo soberano» alimentado «através de contribuições do Estado e de receitas de concessões nacionais», com o objectivo de, numa geração, atingir um valor líquido de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) português. Explicando de forma muito sucinta, os fundos soberanos (Sovereign Wealth Funds, em inglês) são instrumentos financeiros de administração de recursos provenientes quase na sua totalidade da venda de matérias-primas, de petróleo, ou criados em países com superavit na sua balança corrente e com uma baixa taxa de endividamento externo. Ora, como nenhum destes casos ocorre em Portugal, afigura-se difícil entender o cabimento desta medida no plano da sua aplicabilidade ou vantagem. Aliás, até o insuspeito FMI tem vindo a exigir vigilância redobrada sobre esse tipo de fundos, dada a sua imprevisibilidade nos mercados financeiros (ver aqui). Na imprensa da especialidade também têm surgido alertas no mesmo sentido (ver aqui).
Porém, o fulcro da nossa crítica incide, no caso português, sobretudo na sua exequibilidade, na medida em que nem sequer ficaria cumprido qualquer dos requisitos fundamentais para a criação de um fundo soberano. Onde os redactores daquele Manifesto vêem no fundo soberano o ponto de partida para um refinanciamento do Estado, todos os casos internacionais têm operado de modo inverso, tal como está implícito na própria noção destes fundos. Como constituir um fundo soberano num país que está neste momento com uma dívida pública a aproximar-se rapidamente dos 120% do PIB e que mesmo na projecção exageradamente optimista do Ministério das Finanças, num relatório de Abril deste ano, só baixaria para 100% do PIB em 2018-19, para 80% em 2025-26 e para 60% daqui a 20 anos (ver aqui)? Portanto, mesmo perante a perspectiva optimista do governo português (e que os resultados mais recentes vêm colocar em causa) e com o imenso endividamento externo global do país (privado e público), onde existiria a possibilidade de criar tal fundo?
Neste terceiro ponto a contradição da proposta é dupla. Por um lado, é inexequível do ponto de vista prático a curto e a médio prazo. Por outro lado, repete-se aqui a contradição acima apontada de os que vituperam os mercados financeiros serem os mesmos que vislumbram uma eventual redefinição no plano financeiro das políticas económica, fiscal e orçamental do país. Como se verá de seguida, não há qualquer noção da forma de elevar os mecanismos de produtividade do trabalho para além de termos muito vagos e genéricos.
Cancelado o «memorando de entendimento», o Manifesto defende a necessidade de um «memorando de desenvolvimento». Delineado com base num «amplo debate», mais uma vez «nacional, cívico e político», tal memorando redundará na assinatura de um «novo contrato social», mais preocupado com a qualidade da força de trabalho do que com o seu custo. Neste âmbito, como reza o texto, importa desenvolver «um esforço continuado de capacitação da nossa força de trabalho, de qualificação do nosso empreendedorismo», apresentado como tábua de salvação para problemas como a precariedade e o desemprego.
Durante muito tempo, alguma da sociologia dominante no meio académico insistiu na existência de dois mercados de trabalho no mundo desenvolvido: o dos qualificados e o dos desqualificados. Aos primeiros, responsáveis pela execução de atividades nucleares da empresa, garantiam-se vínculos permanentes e salários relativamente elevados. Aos segundos, em maior número e com responsabilidades fungíveis, davam-se os restos, submetendo-os a mil e uma experiências contratuais — empresas de trabalho temporário, subcontratação e, como não poderia deixar de ser, economia informal.
Ora, o aumento das qualificações da força de trabalho, ainda que inferior às médias dos países desenvolvidos, veio provar que o mercado não funciona de uma maneira para uns e de outra maneira para os outros. À medida que a oferta de trabalhadores licenciados aumentava, o seu valor de mercado, como era de se esperar, diminuía. Daí, os milhares de graduados a trabalharem em empregos subqualificados e, paralelamente, o aumento de profissionais (enfermeiros, docentes ou arquitetos) submetidos a contratos precários [2].
Neste sentido, a tão almejada «transição de um país de “mão de obra” para um país de “cérebros de obra”» merece alguma reflexão. Em primeiro lugar, importa sublinhar que a educação constitui, antes de mais, um direito, não devendo por isso estar refém de números e estatísticas. Enquanto instrumento de análise e reflexão sobre o que nos rodeia, ela deverá ocupar sempre uma posição primordial. Dito isto, o aumento do número de escolarizados e licenciados no exército de reserva de desempregados e precários vem, à partida, retirar à qualificação um estatuto de distinção material e simbólica.
Podemos alegar, como fazem os autores do Manifesto, a ausência de investimento em «áreas de alto potencial da economia», como o turismo, o lazer, a ciência ou a cultura. Apostar nestes setores conseguiria, segundo esta ordem de raciocínio, aumentar os níveis de emprego e, deste modo, «estancar a fuga de jovens licenciados». De facto, não há dúvida de que o tecido produtivo nacional, maioritariamente composto por microempresas, mantém um cariz um tanto ou quanto arcaico. Porém, além de apenas poder ocorrer no médio ou mesmo no longo prazo, um processo de modernização dessas áreas não absorveria números semelhantes ao da indústria do automóvel do século passado. Ainda para mais, devemos considerar o alcance dos meios tecnológicos capazes de dispensar pessoal nos bancos e seguradoras ou até nos supermercados.
Deste ponto de vista, a solução não reside na construção artificial de tempo de trabalho, mas sim numa sua divisão mais igualitária. Especificamente, na obtenção de um maior rendimento por um menor tempo de trabalho. Uma exigência que, se considerarmos o sector da educação, garantiria não só professores com uma menor carga horária, mas ainda uma maior atenção às necessidades dos alunos. Em suma, um serviço com melhor qualidade.
A ideia não é propriamente nova, não correspondendo de todo a uma resposta especificamente portuguesa a um problema especificamente português. Insere-se, antes, no espírito internacionalista por trás da luta pelo dia de trabalho de 8 horas, desencadeada nos inícios do século XX. Trata-se apenas de actualizá-la, reduzindo essas horas para metade.
3.
Avaliar o carácter das propostas daquele Manifesto exige ainda que nos detenhamos não só na economia mas ainda na política.
Ora, a noção de Estado defendida no Manifesto nem sequer é mitigada pela remodelação proposta do sistema eleitoral. Os autores do Manifesto defendem «a introdução de um sistema de listas abertas ou a experimentação com um sistema de eleições primárias abertas a todos os cidadãos», que «pode aumentar em muito o grau de qualidade, abertura e responsabilização do nosso sistema político». Note-se que uma reforma deste tipo seria similar à que foi outrora defendida pelo almirante Pinheiro de Azevedo na sua fase de insanidade mental, se é que ele alguma vez teve outra. A obsessão que certos meios de esquerda sentem pelo parlamento e pelos formalismos constitucionais encontra-se com a fúria que leva as pessoas insatisfeitas com as medidas económicas a manifestarem-se diante da Assembleia da República. Será que realmente julgam que os deputados governam ou sequer têm influência?
Mas as ilusões de uns são as aspirações dos outros e contam-se aqui os interessados na criação de um novo partido. O Congresso das Alternativas, marcado para o próximo dia 5 de Outubro, representa uma espécie de momento fundador desta tendência, um pouco à esquerda do Partido Socialista e um pouco à direita do Bloco. Alguns signatários desse Congresso são os responsáveis pelo Manifesto que estamos a analisar, o que lhe esclarece o título, O Meio da Esquerda, entendido o meio como um centro. Talvez isso leve algumas figuras ao parlamento. Admitimos que não seria mau para elas, mas mudaria alguma coisa?
Qualquer tentativa de democratização do sistema político isolada das relações tecidas nos locais de trabalho e de residência é um logro. E assim como as recentes grandes manifestações, até as que nasceram exteriormente aos sindicatos e aos partidos, não geraram nenhumas organizações de base nas empresas nem nos bairros, também a reforma eleitoral avançada pelo Manifesto pressupõe a mesma atomização dos eleitores que está na base da democracia capitalista. A individualização dos participantes no sistema político corresponde à individualização dos agentes económicos nos mercados de consumo e de trabalho. O Manifesto mantém-se disciplinadamente no âmbito das instituições capitalistas. A democracia directa é outra coisa, requer que a base eleitoral seja composta por pessoas inseridas nos seus locais de trabalho ou de habitação. Sem isto nenhum sistema político pode iniciar uma ruptura com o capitalismo.
Um teste infalível para avaliar o grau em que uma proposta de remodelação política se insere no capitalismo é a obsessão com o problema da corrupção, e também os autores do Manifesto reclamam contra a «impunidade da corrupção». Mas veja-se com atenção. A corrupção consiste em não respeitar as regras estabelecidas pelo capitalismo nas relações entre capitalistas, não nas relações dos capitalistas com os trabalhadores. A corrupção não diz respeito à extorsão da mais-valia, ao processo de exploração dos trabalhadores, mas à repartição entre os capitalistas dos frutos dessa exploração. Compreendemos que o problema preocupe os capitalistas e os seus agentes políticos, mas é necessário que os trabalhadores sejam vítimas de profundas ilusões para se ocuparem com a questão.
A corrupção é uma violação das regras vigentes na economia capitalista, e reclamar contra a violação das regras é implicitamente apoiá-las. Nesta perspectiva, o Manifesto propõe «a utilização de um sistema de júri, de forma coadjuvante, nos processos de corrupção». Todavia, uma reforma da Justiça que não passe pela completa remodelação do Direito, dos cursos de Direito e dos sistemas de nomeação dos magistrados e se baseie em júris é uma piada de tanto mais mau gosto quanto — mantendo-se o sistema capitalista — os júris constituem, ou podem constituir, uma forma de linchagem popular regularizada.
Para entender este problema é indispensável não confundir a consciência de classe com o ressentimento. Uma coisa é dar um pontapé no tabuleiro porque se recusam as regras do jogo. Outra coisa, muito diferente, é protestar contra a batota daqueles que estão a vencer porque se pretende ganhar em vez deles. É aqui que entra o argumento da corrupção, acusando-a de batota. Aqueles que evocam a corrupção não pretendem liquidar o capitalismo e deixar os capitalistas sem ofício, mas apenas substituí-los por outros. Ora, quanto a isto a última palavra foi dita, e há muitos anos, por H. L. Menken, quando observou que pretender resolver o problema da corrupção colocando no governo políticos honestos era o mesmo que pretender resolver o problema da prostitução enchendo os bordéis de virgens. É que nas regras deste jogo estão implícitas as modalidades da sua violação e a curto prazo tudo recomeça, só que os ressentidos têm a barriga mais vazia e os dentes mais afiados, o que os torna ainda piores do que os outros.
Sem esboçar o mínimo passo que vá além destas limitações, o Manifesto representa alguns dos problemas mais graves que se têm colocado à classe trabalhadora portuguesa nos últimos meses: em primeiro lugar, o facto de os muitos milhares de pessoas que se manifestaram independentemente da convocação por partidos e sindicatos se terem mantido individualizadas e não terem proporcionado o aparecimento de novos organismos nos locais de trabalho nem a convocação de assembleias nos bairros; em segundo lugar, o facto de a insatisfação com o capitalismo aparecer envolvida na indignação com alguns capitalistas particularmente considerados, os corruptos. Se estas tendências não se inflectirem a curto prazo, são previsíveis grandes perigos políticos.
Um dos fascistas mais inteligentes do pós-guerra, Maurice Bardèche, explicou em 1961 que o fascismo «não tem um princípio fundamental» e «não tem uma clientela natural», e continuou: «Ele é uma solução heróica. […] Ele é o partido da nação em cólera. E principalmente […] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo» [3].
Seria bom que reflectissem sobre as palavras desse teórico — e prático — do fascismo todos aqueles que falam com entusiasmo da descida das camadas médias à rua e dos noventa e nove por cento contra o um por cento. É que o fascismo é igualmente perigoso quando nasce à esquerda. E como não acreditamos que a lucidez política consista em cantar em coro, escrevemos este artigo.
Notas
[1] Além destes há os nomes de Nuno Artur Silva, Ana Benavente, José Vítor Malheiros, André Barata, Renato Carmo, Marta Loja Neves e Patrícia Cunha França.
[2] De acordo com os Quadros de Pessoal do Ministério de Solidariedade e Segurança Social, os contratos a termo entre as profissões intelectuais e científicas aumentaram de 18,8% (em 2002) para 28% (em 2009).
[3] Maurice Bardèche, Qu’Est-ce que le Fascisme?, Paris: Les Sept Couleurs, 1961, págs. 93-94.
Belo texto!
Foi publicado o seguinte comentário no Facebook. O autor é Renato Carmo, um dos signatários do texto…
“Não é uma resposta a este texto (onde não se identifica os autores) que critica o artigo publicado no Expresso intitulado do ‘No meio da esquerda: do contra ao como’. http://passapalavra.info/?p=65171
O texto é longo e não tenho possibilidade de o dissecar como gostaria. Só duas observações. Na perspetiva deste movimento (?), a esquerda livre defende o nacionalismo e o estatismo como forma de responder os desequilíbrios gerados pelo capitalismo. Em contrapartida defende duas vias: a internacionalista como forma de responder aos fluxos de capitais e aos mecanismos perversos do capitalismo, e a via localista, que aponta para a organização comunitária e para ação coletiva em cada empresa e posto de trabalho. São vias a considerar e penso não serem postas de lado no texto que criticam. No entanto, não concordo que estas tenham como pressuposto o desmantelamento e a disseminação das instituições públicas e do estado. Seria conveniente explicar como é possível conciliar o internacionalismo e o localismo com a diluição das instituições públicas (de nível intermédio) e o vazio institucional que isso provocará? Como é possível encetar um movimento internacionalista a partir dos microcosmos da ação coletiva sem propor um enquadramento institucional que permita consolidar as diferentes escalas de intervenção e de ação?
Segunda observação: considerar que a precariedade afeta fundamentalmente os jovens, as camadas mais qualificadas e as profissões científicas é não só um erro mas denota um certo preconceito de classe. A precariedade afeta cada vez mais os trabalhadores pouco qualificados e em idade mais avançada. E este é um sério problema na nossa sociedade. Desvalorizar a escolarização na sua função de atenuar a desigualdade de oportunidades e de representar um dos trampolins que podem potenciar a mobilidade social é mistificar a realidade e alinhar com certos posicionamentos elitistas. O mercado de trabalho em Portugal continua muito dualizado e cristalizado e, cada vez mais aqueles que entram nos sistemas formais de proteção e de contratualização (os insiders) conseguem-no porque mobilizam um conjunto de outros capitais (social, económico, cultural) que herdaram. Basta olhar para a composição social certos setores da sociedade (das universidades às grandes empresas privadas) para ver quem de fato consegue ascender mais facilmente às posições mais estáveis e protegidas. O problema não está na escolarização e na qualificação mas nas lógicas perversas e clientelares de recrutamento profissional (de classe e/ou de grupo de status) que ainda dominam na nossa sociedade. Para abordar o problema da precariedade é fundamental considerar as desigualdades sociais.
A última parte do texto sobre democracia a fascismo de esquerda é demasiado propagandística para ser seriamente comentada.”
Renato Carmo estava distraído quando escreveu aquela réplica.
Em primeiro lugar, deixámos claro no texto que o facto de defendermos o internacionalismo é secundário. O fundamental é que o internacionalismo e, nas últimas décadas, o transnacionalismo ditam a estrutura económica do capitalismo. Goste-se ou chore-se, é esta a situação. Por outro lado, classificar como «localista» um sistema de organização política baseado em assembleias de bairro e em comissões de empresa deixa-nos atónitos. Teriam sido «localistas» as lutas autonomistas das décadas de 1960 e 1970, um pouco por todo mundo? Teria sido localista a revolução portuguesa de 1974-1975? Por isso a dúvida formulada por Renato Carmo acerca da forma como o Passa Palavra conciliaria o «internacionalismo» com o «localismo» não tem razão de ser no contexto do nosso artigo.
Em segundo lugar, nunca afirmámos que «a precariedade afeta fundamentalmente os jovens, as camadas mais qualificadas e as profissões científicas». O que afirmamos é que «à medida que a oferta de trabalhadores licenciados aumentava, o seu valor de mercado […] diminuía» e falamos do «aumento do número de escolarizados e licenciados no exército de reserva de desempregados e precários». Ninguém é obrigado a criticar o que escrevemos; mas, se criticar, critique o que escrevemos. Por isso são despropositadas as críticas de «preconceito de classe» e «posicionamentos elitistas», que Renato Carmo nos dirige.
Infelizmente, Renato Carmo faz parte do grande número de democratas que considera «propagandística» a reflexão sobre o aparecimento de um fascismo à esquerda ou de um fascismo que não diz o nome. Mas não é nada de novo. Os seus antecessores, os liberais de entre as duas guerras mundiais, também não se deram conta de que estavam a ajudar os fascismos a subir ao poder e a manter-se nele. A história é como atravessar as ruas, a distracção paga-se.
“Teriam sido «localistas» as lutas autonomistas das décadas de 1960 e 1970, um pouco por todo mundo?”
“todo o mundo”, dizem? que mundo? é uma dúvida genuína.
Se definirmos como autonomistas as lutas em que os trabalhadores, organizados directamente na base a nível das empresas ou de bairros, conduziram o processo exteriormente aos sindicatos; e se considerarmos que estes trabalhadores organizados autonomamente conseguiram em muitos casos ocupar duradouramente os locais de trabalho e continuar a produção contra os patrões ou mesmo sem os patrões, então observamos os primeiros sintomas nos Estados Unidos no início da década de 1960. Na Europa as lutas autonomistas atingiram um novo patamar especialmente em Espanha, no começo da década de 1960, com a criação das Comisiones Obreras, que depois evoluíram de outra forma; em França com a greve geral de Maio-Junho de 1968; e em Itália, onde o processo atingiu no final da década de 1960 e nos primeiros anos da década seguinte a dimensão de uma guerra civil larvar. Mas foi talvez em Portugal, em 1974-1975, que as lutas autonomistas atingiram maior extensão e importância, com as comissões de trabalhadores, as comissões de moradores e as UCPs. E não devemos esquecer que na Polónia o Solidariność surgiu em 1980 no quadro ao autonomismo, embora tivesse depois seguido outros caminhos. Na mesma perspectiva se deve considerar a Revolução Cultural chinesa na sua primeira fase, quando colocou em destaque a questão da autonomia e da crítica à tecnocracia mandarinal e propôs a transformação da China numa federação de comunas organizadas segundo o modelo da Comuna de Paris; depois o exército tomou conta do processo, não sem uma repressão muito violenta.
Post-scriptum: Acrescentamos os casos das lutas operárias em Berlim e noutras cidades da República Democrática Alemã, em 1953, e da constituição de conselhos durante a revolução húngara de 1956.
Considerações bastante válidas.
Mas, a elas, junto um desenvolvimento distinto do Manifesto (é anterior ao referido) mas que acaba por juntar alguns conceitos válidos com vista a uma saída da situação problemática actual.
A verdade é que nem todos terão toda a razão. Mas haverá alguma em cada proposta. É preciso encontrar a soma virtuosa. E aqui está mais uma achega:
http://notaslivres.blogspot.pt/2012/09/medida-2-criacao-de-condicoes-para.html