Por Matheus Nordon Preis
O ano de 2012 parece ter colocado em evidência a última pista necessária para desvendar o mistério acerca do estado deplorável em que se encontra o movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP). Prevendo o fim do mundo, as organizações políticas presentes no corpo discente resolveram abandonar a luta por uma sociedade mais justa, esqueceram-se dos seus ideais e seguiram reproduzindo-se enquanto pequenas estruturas hierarquizadas concentradoras de poderzinhos políticos; ou abandonaram a prática-crítica da realidade (que se aproxima cada vez mais do fim) para se reclusar no maravilhoso mundo do discurso, onde podem fazer o que quiserem e descansar confortavelmente da realidade conflituosa e contraditória; um mundo que nunca sofrerá mutações nem acabará.
Deixando de lado a crueldade do tom irônico, pretende-se fazer uma crítica das relações sociais engendradas pelos partidos no meio político dos cursos. É preciso destacar que trata-se de uma pequena crítica estrutural, não de uma crítica moral ou pessoal a seres complexos – dotados de desejos e medos – que não são individual, ou naturalmente, responsáveis pelas dinâmicas problematizadas. Toma-se aqui por partidos: organizações políticas totais (i. e. que não se restringem a tratar de temas específicos) institucionalizadas, de estrutura hierarquizada, que possuam um projeto de escalada ao poder político.
A estrutura hierarquizada dos partidos políticos reproduz a relação social fundamental da sociedade capitalista: a relação entre dirigentes e executantes. A mesma relação presente no momento da produção, no ambiente de trabalho, é encontrada na política, aqui:
“Adotando um modelo burguês de organização, instaurando uma divisão do trabalho cada vez mais profunda que levou à cristalização de uma nova camada de dirigentes separados da massa de militantes agora reduzidos ao papel de executantes”. (Cornelius Castoriadis, Proletariado e Organização I)
A divisão do trabalho intelectual/material coloca as decisões acerca da produção e dos produtos privados sob o poder exclusivo de uma classe; que, acumulando os excedentes e os meios de produção (também privados), reforça essa relação de poder e lhe dá sustentação material. É um ciclo que só aprofunda a desigualdade entre produtores e possuidores.
“Pela divisão do trabalho, torna-se possível, ou melhor, acontece efetivamente que a atividade intelectual e a atividade material – o gozo e o trabalho, a produção e o consumo – acabam sendo destinados a indivíduos diferentes” (Karl Marx, A Ideologia Alemã)
Para entender a analogia com os partidos políticos devemos trocar a ideia de trabalho pela noção de ação política: organização e mobilização; e tomaremos por atividade intelectual a deliberação das ações. A mesma contradição de interesses intrínseca à divisão do trabalho está contida no interior dessas organizações: sua divisão social hierarquizada produz necessariamente divisão entre interesses, cada um referente a uma posição social na estrutura. Em teoria, o interesse “universal” é o socialismo, a finalidade teórica dos partidos de esquerda, que segundo o pensamento marxista é a emancipação da humanidade, o vir a ser sujeito – essência do ser humano – na medida que possuímos as faculdades precisas para a produção das condições de vida e para fazê-la da forma que nos convém.
O socialismo é, portanto, a contestação total da sociedade da alienação e da dominação, a autodeterminação generalizada. E o interesse “universal” aparece como interesse coletivista, na medida que a autonomia generalizada precisa ser realizada por cada um e absolutamente todos.
Na prática, o interesse – travestido, em teoria, de coletivista e de emancipação total – “universal”, disputado politicamente (principalmente pela base engajada de militantes), é deliberado por uma cúpula fechada de dirigentes (com maior ou menor grau de influência da base), da qual não necessariamente se conhecem as intenções. Na prática, o interesse “universal” do partido é o interesse de uma classe política dominante, legitimado por uma estrutura de relações desiguais.
A desigualdade produz no pólo passivo (a base) da organização a possibilidade de ascensão ao pólo ativo, e assim o interesse pela emancipação coletivista vem à realidade como interesse individualista: tem-se por objetivo, para deixar de ser dominado, a busca da dominação política de outros, a posição de dirigente. Uma face do par antitético que precisa ser superado para alcançar o socialismo.
“Enquanto há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, enquanto portanto também a atividade não é devida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria ação do homem se transforma para ele em força estranha, que a ele se opõe e o subjuga, em vez de ser por ele dominada”. (Marx, A Ideologia Alemã)
Mas o que legitima a estrutura de alienação e dominação política dos partidos? Fica claro que, na empresa, a desigualdade de poder é sustentada pela impossibilidade do trabalhador de sobreviver sozinho, sem meios de produção, em um mundo onde tudo é propriedade de outrem. Mas os militantes socialistas dependem dos dirigentes e das organizações partidárias? Dependem na medida em que estão condicionados a delegar o curso de suas vidas ao que lhes é estranho, condicionados à passividade, quando vão à escola, quando assistem a um espetáculo, quando trabalham, enfim, em todas as instâncias da vida a relação entre dirigentes e executantes está presente. Somos levados a acreditar que, se nos comportamos bem, seremos recompensados com os cargos de autoridade, e assim resiste o sistema da dominação.
No entanto, as organizações políticas não são necessariamente propriedade privada de ninguém. Não existe um impedimento material para a existência de qualquer organização política que seja, a não ser a violenta repressão do Estado (caso suas ações políticas sejam efetivas). O que explica a hegemonia das estruturas políticas hierarquizadas é a falta de experiências de espaços horizontais, é a tradição.
O movimento estudantil da USP, enquanto organização política, funciona de maneira ainda mais desastrosa. Cada militante do corpo discente que vem de uma determinada organização hierarquizada tenta reproduzir, conforme sua experiência lhe ensina, a lógica de dominação dirigente/base no interior do movimento. Acreditam que o problema da organização é a sua desestruturação; que precisam, para estruturá-la, de bons líderes, bons dirigentes, confiando naqueles que sempre comandaram suas vidas políticas. E se alçam a fazer o papel de seus mestres, dirigir. Entretanto, não existe um contrato, entre todos os estudantes, de participação política, nem mesmo passiva, e por isso falham na construção das entidades. Ou seja, os estudantes independentes não têm necessidade de se sujeitar à dominação dos partidos – e, ao que tudo indica, se observarmos os espaços do movimento, também não têm interesse –, e que militante de um partido determinado iria se submeter à direção de outro partido? Não seria mais coerente filiar-se ao outro partido em primeiro lugar? O movimento estudantil da USP é (perdoem a generalização) uma organização de direções concorrentes sem base nenhuma. Quem vai executar as deliberações do(s) movimento(s)?
Algum leitor de mente sã já deve ter percebido um problema. Todo esse tempo tratamos com naturalidade a redução do movimento estudantil a um simples campo de disputa de poder interno: “que militante de um partido determinado iria se submeter à direção de outro partido?”. Ora, algum que reconhecesse que a pauta trazida pela organização adversária é de fato útil para a construção de uma sociedade mais justa. Mas esse tipo de postura é raro. E é ainda mais raro que as diferentes organizações políticas consigam se unir em torno de uma pauta – mesmo quando ações, destacadas por determinado grupo, são reconhecidas e aprovadas por consenso ou maioria de votos nos espaços de deliberação – as organizações concorrentes teimam em não comparecer à mobilização.
A explicação deste fato também está na estruturação hierarquizada da política. Retomemos a hipótese da introdução e a contradição inerente à estrutura dos partidos. Nos períodos em que não se vislumbra com nitidez a possibilidade e os caminhos para a tomada da gestão da sociedade pelo conjunto dos trabalhadores, o interesse individualista se apresenta mais determinante para a ação dos estudantes organizados. Passam a se autoconstruir (como se a salvação da humanidade esteja atada a seus respectivos partidos), tentando agarrar para si o poder, aonde quer que consigam se infiltrar, tornando os espaços competitivos; e deixam para segundo plano a luta por igualdade e união.
Os militantes perderam o futuro. Será o fim da história, de Fukuyama, que se perpetua? O movimento estudantil vai continuar alheio à luta pelo socialismo – as vanguardas vão continuar se digladiando futilmente – enquanto os modelos horizontais de organização não forem praticados. Vamos lutar lado a lado? Ou um à frente do outro, nos acotovelando para furar a fila que nos foi entregue?
meus anos de USP se passaram e realmente a imagem que guardei do movimento estudantil de lá foi o de uma intensa luta entre grupelhos que queria acreditar mais radicalmente que os outros em suas próprias consignas. para quem acompanhava mais ou menos de perto ficava claro que o auge dos esforços era sempre nas eleições para o DCE, davam um duro danado para impedir que as outras chapas roubassem urnas, forjassem votos, etc. Durante o resto do ano tentavam mostrar para os outros estudantes as pautas realmente importantes pela quais eles deveriam lutar, para não serem alienados. as assembléias sempre foram o teste de paciência final para saber se você tinha a veia para ser militante do ME ou não, se pudesse aguentar o nivel de estultisse da organização, atuação e cinismo presentes nestes momentos, você estava pronto para engajar-se.
Estas experiências me marcaram e hoje eu penso que realmente não há nada de muito importante numa assembléia onde tão pouco é decidido (assistir ou não assitir aulas na minha faculdade pela qual eu não pago nada?), tão pouca coisa é arriscada, onde as pessoas estão lá mais para tentar propagandear e impor sua visão do que em buscar uma convivência e atuação coletivas.
Concordo quando diz que a estrutura hierarquizada reproduz a relação entre dirigentes e executantes própria da sociedade capitalista e que isso traga uma série de mazelas. No entanto, acho errado atribuir a falência do movimento estudantil unicamente à existência dessa estrutura centralizadora – até porque os “anos dourados” do ME foram articulados nesse modelo.
Você afirma que o ME está “alheio à luta pelo socialismo”. Eu penso justamente o contrário: os partidecos que dominam os DCEs da vida são justamente aqueles que lutam – ou pelo menos dizem lutar – pelo socialismo. Por um modelo de socialismo que se desintegrou no final do século XX e que não foi atualizado pela esquerda. Assim, o ME perdeu parte da sua causa e, sobretudo, de sua identidade.
Eu vim das lutas estudantís secundaristas de periferia, que lutava por merenda, por passe livre aos estudantes, contra a construção de febens e depois participei das lutas estudantís na UNESP, que possuiam um quadro radicalizado, com participação forte da base e ligado a bandeiras do estudantado pobre. A gente sempre achava estranho que nós da UNESP viajássemos tantas horas para fazer lutas e nunca encontrássemos gente da USP, da UNICAMP, que estavam geograficamente mais próximos. Quando tive o desprazer de participar de uma reunião de estudantes da USP, na verdade uma reunião entre meia dúzia de lideres de base nenhuma, percebi que não havia interesse algum de união e coletividade. Tudo o que importava era uma guerra sem fim entre dirigentes de gente alguma.
Minha experiência com o ME – por dentro e por fora, e já de longa data – confirma as premissas fundamentais do texto.
Tudo que se pode fazer por dentro de uma estrutura hierarquizada de poder no ME (CAs, DCEs, Atléticas, Órgãos de representação discente na universidade, APGs, UNE/ANEL) se pode fazer por fora delas. Desde que se coloque no centro da atuação no ME a sala de aula. É ela o ponto de partida para qualquer coisa que de fato interesse aos estudantes. Mas o que sempre vi foi uma energia danada nos momentos eleitorais, para preencher postos de direção, e quando eu argumentava com os militantes (dentro ou fora de partidos) para gastar essa energia toda discutindo com seus colegas nas suas respectivas salas… ouvia todo tipo de desculpa: desde as reveladoras de uma cultura do delegacionismo enraizada, até as mais mal-intencionadas.
Não é fácil romper com decadas de reprodução de modelos capitalistas.
Parabéns pelo texto.
Muito boa análise.
Eu tenho apenas alguns desacordos pontuais no final do texto.
Penso, infelizmente, que não existe mais é movimento estudantil para se organizar nas entidades, visto que quem se organiza nelas são os partidos. Basta fazer um levantamento para sabermos onde existem entidades estudantis eleitas e quais as correntes majoritárias. No ensino secundário, grande maioria faz parte da UBES (PCdoB), e o outro setor, muito menor, compõe a ANE-L (PSTU). No ensino superior público, temos grande parte das entidades nas mãos do PSTU ou do PSOL; no setor privado, temos novamente o PCdoB deitando e rolando nos resultados do PROUNI/REUNI.
Graças ao desserviço prestado ao movimento pelos partidos, que deixando de lado a construção coletiva de um projeto de educação e de sociedade, passaram a investir na luta parlamentar e na busca do poder pelas vias do Estado; é necessário mais do que nunca incentivar a criação de novos espaços de atuação, possibilitando assim o movimento de acontecer. Daí, só a experiência pode mostrar quão necessário é abandonar as velhas estruturas burocratizadas, caixas vazias. É preciso, primeiro, reconstruir.
Abraços.
Bom texto! Apesar de concordar bastante com o comentário do João… Acho, assim como ele, que o problema fundamental não é a lógica hierárquica e anacrônica dos partidos, mas sim a falta de alternativas consolidadas.
Matheus, o que você acha da proposta do Rizoma?
Hugo, penso que o Rizoma caminha sim na direção de acabar com esse marasmo. Temo que poucas linhas não podem resumir ainda o que penso, pois mesmo sendo muito próximos, eu tenho muitas dúvidas. Atualmente penso que poderia ter explorado mais nossos encontros presenciais.
Bom, João, na verdade acho que a gente não tem desacordo exatamente. Eu não atribuo a falência do ME-USP unicamente à estrutura hierarquizada (apesar de isso por si só já ser bem miserável), se houveram “anos dourados” do movimento da USP (você tá falando sobre o período da ditadura?) eu imagino que seja porque naquele momento havia uma perspectiva mais concreta de transformação social; estando essas esperanças quase completamente mortas, hoje em dia, resta aos militantes a auto-construção (não sei se fica claro o meu ponto). E essa dicotomia, sim, só é possível devido às separações entre direção e base. Essa é a idéia que eu tentei passar.
Sobre o socialismo do século XX, acho que o que eu considero como socialismo se diferencia do modelo soviético mais ou menos como a diferenciação que o Lucas colocou:
“[…] onde as pessoas estão lá mais para tentar propagandear e impor sua visão do que em buscar uma convivência e atuação coletivas.”
Hugo, eu ainda não conheço bem o rizoma, preciso me aproximar e ver de perto, to muito curioso para colar num sarau na Remo.
Obrigado pelos parabenses!
Força contra a separação e a dominação!