Por Passa Palavra

 

O 3º dia de ocupação do prédio do Incra em São Paulo foi marcado pelos variados esforços que o governo federal empreendeu para arrefecer a luta dos assentados de Americana. Frente à manifesta disposição dos ocupados para avançar na campanha pela assinatura do decreto de desapropriação por interesse social do Milton Santos, o governo procurou transmistir ao movimento uma sensação de tranquilidade diante da questão, no entanto, sem apresentar qualquer medida concreta que alivie o sufoco das famílias que veem o prazo para saírem de suas casas se aproximar.

O fato mais marcante no cenário político da quinta-feira foi certamente a presença do superintendente do Incra, Wellington Diniz, e de outros representantes do órgão, logo pela manhã, numa reunião que se estendeu até o meio da tarde. Como já era esperado da parte dos assentados, as horas e horas de conversa não renderam qualquer proposta razoável para a situação e a pauta  apresentada. Ao contrário, boa parte das declarações dos representantes do Incra confirmavam a relutância da presidenta Dilma em tomar a única medida que retiraria de vez a corda de seus pescoços.

Recebida pelos assentados no auditório do prédio, a comitiva foi duramente pressionada pelas famílias, que exigiam explicações claras sobre a situação jurídica do terreno e reagiam contra a demonstração de irresponsabilidade da parte deste órgão. Em diversos momentos, os funcionários eram encurralados em suas afirmações evasivas, procurando justificar, apoiando-se na argumentação jurídica, a posição do governo federal de protelar ao máximo o uso do instrumento da desapropriação.

As intervenções dos moradores do assentamento de Americana eram bastante contundentes. “Nós estamos assentados, não é um acampamento. A área já é nossa. Tudo que nós temos esta lá. A população que paga imposto tem o direito de estar na terra”, afirmou um dos assentados.

“As coisas que a gente tem estão em risco e não tem mais como andar para trás. Essas horas era para todo mundo estar plantando lá, estamos perdendo a época de chuvas. Ano que vem, praticamente não teremos produção, porque deveríamos estar plantando agora.”

“Não tem mais só recurso público, tem muito recurso pessoal aqui [no assentamento]” – a assembleia fez coro, confirmando o companheiro – “o Incra assentou as pessoas em área em conflito e não acompanharam o processo.” Neste ponto, o Incra precisou reconhecer que agiu com irresponsabilidade ao executar um assentamento em um terreno que se encontrava numa situação de “incerteza jurídica”. E mais: de acordo com o que preveniu um dos representantes do órgão, esta seria uma regra geral quando se trata de política de reforma agrária no país. A seguir as consequências desta afirmação, preocupa a enorme possibilidade de situações como a do Milton Santos se multiplicarem pelos inúmeros assentamentos que podem estar em situação similar.

A reunião foi vista como uma tentativa da parte do governo de acalmar a situação e desestimular a luta, mas parece ter obtido efeito contrário; o que fica bem expresso na desabafo de um assentado, velho militante das Comunidades Eclesiais de Base: “Eu só peço que vocês que são do governo olhem praquela corda, olhem bem praquela corda. Vocês querem colocar aquela corda no nosso pescoço e nós vamos colocar essa corda em vocês.” [1]

Formação e cultura na ocupação

Mas nem só de acaloradas reuniões foi o dia da ocupação. Logo após o almoço, a Rádio Livre Várzea desenvolveu uma atividade no portão de entrada da ocupação. Foi deixado um microfone aberto para os assentados contarem suas histórias de vida, darem depoimentos, tirarem sarro e rirem um pouco. Em seguido, o coletivo fez uma breve discussão sobre o tema da comunicação e a cobertura das lutas sociais na grande mídia.

Ao final da tarde, a Rede Extremo Sul organizou uma atividade que envolveu assentados, apoiadores e militantes da organização que atua no Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo. Uma exibição de vídeo foi feita no andar subsolo do prédio, improvisado de cineclube, e a ela se seguiu uma discussão sobre as condições de luta no contexto da periferia paulistana. Experiências de atuação no campo e na cidade foram trocadas, ao mesmo tempo em que se despertava para os horizontes mais ousados que a luta social, como a do Milton Santos ou das favelas de São Paulo, poderiam perseguir.

Em seguida, o grupo de rap O Conselho, formado por crianças da região do Campo Limpo, também na zona sul da cidade, e o rapper Robsoul, do Grajaú, encerraram a noite com suas letras de protesto, passando mais um pouco da realidade das periferias para os assentados e apoiadores que estavam na atividade.

[1] Veja aqui um vídeo com um trecho da fala deste assentado.

 

 

 

4 COMENTÁRIOS

  1. Sinceramente não gostaria de ta na pele dessas familias pois com estao gestao do incra-sp nao vao conseguir nada pois wellinston, timotio, hernando shrek e jorginho querem receber seus salarios e nada mais, é uma pena o incra ser entregue a pessoas que nao querem nada com nada, não entendemos como a dilma entrega o incra nestas maos tao erradas, coitado desta autarquia tao importante nestas maos.

  2. A história que não está nos livros: Oscar Niemeyer morreu há 44 dias. Ele projetou, ao lado de Lúcio Costa, a cidade de Brasília – quem construiu, nunca é demais lembrar (ver Brecht), a capital foram os operários que, no decorrer desse processo, se destruíram fisicamente (acidentes de trabalho e mortes) e mentalmente. Grande parte do material utilizado para a construção foi fornecido pela Cimento Perus – então, na época, propriedade da família Abdalla, a mesma que hoje quer desapropriar o terreno onde estão instaladas 68 famílias do Assentamento Milton Santos. Tempos depois, Brasília foi a sede de governo da longa Ditadura Civil-Militar – ditadura esta que torturou a então guerrilheira Dilma Rousseff. Dilma que, hoje presidente, pode assinar o decreto pela desapropriação por interesse social da área do Assentamento Milton Santos e impedir um desastre enorme para a luta pela reforma agrária no Brasil.

  3. Interessante lembrar que a Cimento Perus, que nos anos 1960 tinha fábricas no noroeste de São Paulo (no bairro de Perus e no município de Cajamar), enfrentou uma das mais longas greves da história do Brasil – a “Greve dos 7 Anos” -, entre 1962 e 1969. Só de ver o tempo pelo qual a luta se estendeu, já dá pra pensar na dimensão da rede de solidariedade que o movimento operário construiu na região, e imaginar como essa luta teve impactos muito além da fábrica. Os trabalhadores da Cimento Perus se intitulavam “queixadas”, em referência aos nossos porcos-do-mato arretados, que se agrupam pra espantar o predador.
    A Cimento Perus foi adquirida pelo grupo JJ Abdalla nos anos 1950. Pelo que eu sabia, a empresa não tinha resistido aos 7 anos de greve, e isso tinha levado os donos à falência. Curioso pensar que essa falência, na qual um dos fatores foi a luta social, tenha levado a família a perder das terras em Americana e que, 40 anos depois, elas voltariam a ser palco de batalha da luta de classes.
    Não sei se essa história é conhecida pelos companheiros do Passa Palavra, mas de qualquer modo, havendo essa ligação entre os queixadas de ontem e os sem-terra de hoje, talvez valesse a pena publicar alguma coisa a respeito por aqui… Mas não sei, um artigo inédito sobre o tema parece difícil.

  4. Olá Caio e demais,

    Pois é: eu tinha já a informação sobre essa história das greves dos anos 1960 – e é sim quase certa a ideia de que uma das dificuldades da Cimento Perus (que levou a sua falência) foram as inúmeras paralisações e conflitos sociais naquele período.

    Eu ia, como fiz acima (usando o Niemeyer como disparador), fazer mais uma dessas “histórias circulares” e falar justamente desse episódio – para ligá-lo, assim, com o momento atual de litígio que presenciamos. Você, no entanto, já o fez brilhantemente – e só resta agora, a todos nós, continuarmos a apoiar essa importante e divulgarmos essas informações.

    Abraço.

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