Por Tarifa Zero Goiânia
“Hoje a cidade acordou toda em contramão, homens, buzinas, sirenes, estardalhaços…”
Desde a greve dos motoristas de ônibus na semana passada, em Goiânia, vivemos um momento atípico. Uma manobra mal sucedida das empresas na última quinta feira, 2 de maio, de impedir a greve e fazer os usuários do transporte pagarem a passagem mesmo com o indicativo de paralisação, criou uma situação de caos no sistema de transporte da cidade. Milhares de usuários ficaram presos em terminais de ônibus, sem poderem voltar para casa nem sair ao trabalho, sujeitos às arbitrariedades da segurança armada contratada pelas empresas.
Nesse contexto, aconteceram vários protestos “espontâneos” contra a situação do transporte. No Terminal da Bíblia, passageiros invadiram a pista da principal linha da cidade, o Eixo Anhanguera, e vários ônibus foram depredados. Em pelo menos um terminal uma manifestação quebrou as máquinas de sitpass [*] e uma catraca. Com um fim de greve insatisfatório para os motoristas e que atiçou os usuários do transporte coletivo contra as empresas, até os principais meios de comunicação da cidade já estão praticamente fazendo campanha contra o provável aumento da passagem.
É muito comum ocorrer uma oposição entre motoristas e usuários — “Se eles ganharem mais, nossa passagem aumenta”; “se a passagem deles não aumentar, meu salário não aumenta.”. Nesta oposição reducionista pouco se sabe e pouco se discute sobre as relações do transporte público, que no final giram em torno de um objetivo: gerar lucros para as empresas que monopolizam este “comércio”. Diante da falta de transparência do transporte público em Goiânia, se justificam ambas as arbitrariedades: a com o usuário e com o trabalhador do transporte.
Foi nesse contexto que no dia 8 de maio a Frente Contra o Aumento, um movimento composto por estudantes independentes, grêmios, DCE-UFG, Centros Acadêmicos, pelo MEPR, pelo TZ Goiânia e também outros grupos, convocou uma manifestação na região central da cidade contra o aumento da passagem. A manifestação, marcada para 07h30min da manhã, surpreendeu de várias formas. A primeira surpresa foi o número dos manifestantes, cerca de 600 estudantes, muitos matando prova para comparecer à manifestação.
A segunda surpresa foi ver um ato simbólico se transformando em combustível nos ânimos dos manifestantes. Logo no início da manifestação, quando paramos no cruzamento da Avenida Goiás com a Avenida Anhanguera, os manifestantes queimaram pneus no meio do cruzamento e anunciaram que iam bloquear a via até que a nossa reivindicação imediata fosse concedida: a presença de um representante da Companhia Metropolitana do Transporte Coletivo (CMTC) para receber as nossas reivindicações. Com esse pontapé inicial, as pessoas se encarregaram de bloquear a rua, conversar com os transeuntes, manter a fogueira acesa no meio da avenida e organizar uns rudimentos de autodefesa e solidariedade. O microfone aberto, apesar de algumas confusões, também permitiu uma maior discussão dos temas, a manifestação de pessoas na rua apoiando o nosso movimento, e permitiu também que a fala não ficasse totalmente focada na “organização”, fazendo com que de fato a manifestação tivesse uma voz própria.
A chama acendeu os ânimos das pessoas que ali passavam junto com os que protestavam e de modo distinto da polícia que vigiava o protesto. Depois de uma prisão por conta de uma confusão causada pelos bombeiros, a polícia comum foi escorraçada para longe da manifestação. Tropas de choque e a cavalaria foram mandadas para as proximidades. Não nos intimidamos. Nem a polícia nem os gestores do transporte sabiam o que fazer, porque foram surpreendidos pela nossa demanda. Ao invés de irmos ao espaço da Companhia para discutir com eles, forçávamos os gestores públicos do transporte a vir discutir conosco no nosso terreno, na rua. Eles não queriam aceitar, mas também não podiam recusar, com o risco de parecerem pouco razoáveis, indispostos a um diálogo que nós, manifestantes, estávamos iniciando.
A quarta surpresa foi mostrar a que viemos durante esta manifestação. Gritaríamos palavras de ordem, queimaríamos pneus, fecharíamos o trânsito. Mas, além da expressar revolta e indignação, não sairíamos do local até que a nossa demanda da presença de um representante do sistema de gestão do transporte coletivo fosse atendida. A demanda clara e cristalina unificou os manifestantes em torno de um objetivo, facilitou a compreensão do público de porque estávamos ali e até permitiu que a Polícia Militar (PM) viesse a se dobrar diante das nossas reinvindicações. Exigimos que a PM intermediasse o contato com a CMTC e fizesse com que o representante aparecesse para que a situação fosse resolvida. Inicialmente, diante da queima de pneus, a primeira resposta dos policiais foi a de que a repressão era inevitável e que a gente ia apanhar. Ao verem que a gente não ia sair de lá e que tínhamos uma demanda bastante clara, resolveram dialogar. Quem conhece a tradição da PM goiana de bater antes e perguntar depois vai perceber o ineditismo da situação.
A demora de chegar algum representante da Companhia, sendo estratégia ou não para dispersar o movimento, não surtiu efeito. A demora do tal representante que viria receber o documento não desanimou os manifestantes, pelo contrário, o tempo que ficamos ali serviu de muita conversa entre os manifestantes e com quem passava e queria saber “o que estava acontecendo”. Ao saber, apoiavam. Um grupo de pessoas paradas na calçada e moradores da região inclusive iniciou um abaixo-assinado na hora para demonstrar apoio à nossa reivindicação. A imprensa, toda no local, também procurava saber. Ao verem o apoio da população, a imprensa e a nossa disposição para resistir, a própria polícia resolveu jogar a responsabilidade de qualquer repressão em cima da Companhia: só haveria repressão se o órgão gestor do transporte se recusasse a dialogar com os manifestantes. Em determinado momento, enviaram alguém da CMTC que disseram que não veio por ter ficado com medo da manifestação; alguns diziam ser uma estagiária que a própria polícia dispensou, mas o que importa é que nenhum representante da CMTC estava lá para pegar o documento. Novamente, mostramos que de lá não sairíamos.
Por volta de meio-dia, depois de 3 horas fechando a rua, de inúmeros rumores de que o choque e a cavalaria estavam descendo, finalmente entenderam que a gente não ia sair. A diretora técnica da CMTC chegou ao local para receber o documento. A fala da diretora, recebida com vaias, foi finalizada dizendo que ela ia encaminhar a carta aos espaços competentes solicitando os manifestantes a “voltarem para as aulas e pararem de atrapalhar o trânsito”.
O ato, com a sensação de um primeiro passo dado e uma pequena vitória conquistada, acabou ali, naquela fala em que alguém de um órgão do transporte pedia para que usuários voltassem às aulas e não atrapalhassem o trânsito. O que é um absurdo vindo de um gestor do transporte público, que deveria saber quem realmente impede milhares de usuários de irem para a aula, de irem para o trabalho, de irem tomar a cerveja naquele bar longe de casa, de irem ao cinema ou ao posto de saúde levar o filho. Com um pouco de honestidade, se não pudéssemos responder estas questões, ao menos entenderíamos que não eram os manifestantes os que deveriam voltar para suas aulas ou para o trabalho. E ainda mais, entenderíamos que, antes de repudiarem o fato de que, sim, atrapalhamos o trânsito por uma manhã no centro, é preciso refletir sobre quem de fato tem suas vidas cotidianas atrapalhadas pelo modo como o transporte coletivo se estrutura na cidade. Depois, nos jornais, as empresas do transporte responderam à nossa manifestação falando que “nem sequer se discutiu aumento”, o que, além de ser uma declaração mentirosa, demonstra que eles foram pegos despreparados pela nossa inciativa. Também não entenderam.
Os usuários e trabalhadores do transporte, em sua maioria, no entanto, entenderam muito bem o recado e os manifestantes saíram do ato com o sentimento de que logo mais os empresários e gestores públicos do transporte coletivo iam entender que nós não vamos aceitar mais. Que a cidade é de quem vive nela, de quem anda nela, não de quem lucra com ela. E que para mostrar isso nós tínhamos a capacidade de dobrar polícia, órgão público e a empresa que fosse. Mostramos. Agora que a coisa saiu do roteiro para todo mundo, usuários e empresas, o caminho está aberto. Depende de mantermos a iniciativa e a criatividade do movimento e continuar surpreendendo e criando alternativas de luta e organização. Convocamos outra manifestação para o dia 16, às 7:30 da manhã na frente do Colégio Lyceu, no centro. Veremos como vai se desenrolar.
Nota
[*] O sitpass é um bilhete eletrônico utilizado pela Rede Metropolitana de Transporte Coletivo em Goiânia para coletar a tarifa. Insere-se o bilhete ou passa-se o cartão na máquina e libera-se a catraca. Foi o artifício utilizado aqui para unificar a gestão do transporte e demitir os cobradores de ônibus.
Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas, tanto do Brasil como de Portugal.
Fotografias de Luiz da Luz e Yolanda Margarida.
Representou com sábias palavras!
Vamos nos mobilizar e estaremos em peso nessa segunda edição do protesto e faremos a diferença que a metrópole goiana precisa…