A revolta é a agitação sob a bandeira do lugar-comum, exactamente o oposto da revolução, que é a liquidação dos lugares-comuns. Por João Bernardo

Num destes dias recebi uma mensagem.

Olá João,

Ontem eu estava olhando arquivos antigos no meu computador e encontrei um comentário que você fez a um artigo que escrevi sobre o Movimento Passe Livre, em 2007.

O fato é que lendo seus comentários hoje, eles me parecem muito mais pertinentes, tendo em vista os recentes acontecimentos no Brasil. A relação do fascismo com a revolta da juventude, que você apontava no comentário, deixou de ser apenas um apontamento ou interpretação da história para quem lesse, o que torna uma análise sobre a ligação entre revolta da juventude e fascismo de muito mais fácil compreensão e assimilação diante dos fatos recentes.

Creio que os acontecimentos recentes devem inclusive ter lhe acrescentado mais dados para reflexão.

Bem, escrevo para lhe estimular a escrever algo sobre o tema, diante das mobilizações do Movimento Passe Livre e o que se seguiu. Acho que seria de grande proveito.

Envio em anexo o seu comentário, para que se recorde.

Abraço,
Leo Vinicius

Esta solicitação choca-se com a decisão que tomei em Junho do ano passado, de colocar um ponto final não na escrita, porque continuo a escrever, mas na publicação de novos textos. Mas como ignorar uma sugestão proveniente do Leo Vinicius?

Leo Vinicius pertenceu àquele reduzido grupo de militantes a quem se deveu o MPL de Florianópolis. O Leo publicou em 2005 A Guerra da Tarifa, sobre a luta em Florianópolis em 2004, e em 2006 publicou outro livro, sobre a luta em 2005. Também em 2006, ele foi um dos processados por desembargadores do Tribunal de Justiça por ter escrito textos denunciando a parcialidade do tribunal na ocasião da suspensão da Lei do Passe Livre de Florianópolis, em Novembro de 2005. Para mais, conheço o Leo há muitos anos, penso que desde a segunda vez que fui dar aulas à Universidade Federal de Santa Catarina, em Maio de 2001. Falámos muito então e continuámos a encontrar-nos com uma regularidade espaçada, sempre conversando sobre o mesmo assunto, os dilemas que embaraçam as lutas sociais. Agradava-me no Leo a capacidade para abordar questões que geralmente a esquerda lança para debaixo do tapete, questões incómodas, as únicas sobre as quais vale a pena falar. Nestas condições, como fugir à solicitação? Lancei então, figurativamente, a moeda ao ar — cara ou coroa? — e escrevi ao Leo.

Caro,
Você sabe que eu me afastei deliberadamente da publicação há mais de um ano, o que não significa que não tenha aberto excepções, e esta poderia ser uma delas. Mas com uma condição, que eu comece por citar esta sua mensagem, com o seu nome, mantendo o carácter de diálogo. Que lhe parece?

O Leo respondeu afirmativamente e não me resta agora outra solução senão escrever mais um texto destinado a não encontrar público certo, porque esse ou já morreu ou ainda não nasceu. Dar-lhe-ei uma forma clássica — tema e variações. O tema são os comentários que escrevi sobre o artigo do Leo, que ele fez bem em enviar-me, porque não tenho a mínima recordação de os ter escrito. Ei-los aqui.

Se a forma de luta não fosse mais importante do que o conteúdo no Movimento Passe Livre, então seria indiferente que a anulação do aumento de tarifas ou a legislação favorável às reivindicações do Movimento tivesse sido obtida graças ao MPL ou graças à acção de qualquer grupo partidário de vereadores ou de um prefeito. O que é importante no MPL, como noutros movimentos do mesmo tipo, o que os distingue politicamente, é a forma de organização, que, pelas suas potencialidades, vai muito além das reivindicações. Do mesmo modo as formas de organização de base do MST vão muito mais longe do que uma mera reforma agrária baseada na pequena agricultura familiar, as formas de organização do MTST ultrapassam em muito a mera obtenção de lares para os sem-tecto, e assim por diante.

Se ignorarmos isso, corremos o risco de confundir revolução com revolta. Este risco está subjacente a todas as lutas sociais e é o mesmo que levou, entre as duas guerras mundiais, à difusão do fascismo sob o pretexto de constituir uma revolta da juventude. O tema da revolta da juventude foi central na ascensão de todos os tipos de fascismo. A juventude serviu então como símbolo para a ascensão de novas elites, enquanto os velhos representaram, evidentemente, elites em declínio ou mesmo a degenerescência biológica. E a revolta, enquanto apologia da acção irracionalista, serviu de argumento “de esquerda” no ataque à razão. As consequências desta substituição da estratégia pelo imediatismo ficaram visíveis na ascensão dos fascismos.

As mesmas consequências, ou equivalentes, são perceptíveis hoje quando observamos que não existe qualquer fronteira nítida entre certas atitudes de rebeldia geralmente posicionadas à esquerda e outras que se apresentam como claramente de extrema-direita, com posicionamentos racistas e anti-imigrantes. Os rebels without cause [rebeldes sem causa] têm sido um terreno tão propício para a circulação entre a extrema-esquerda e a extrema-direita como o foi a rebelião da juventude nas décadas anteriores.

Mais do que qualquer controlo sobre a própria vida, tudo o que conseguem os rebeldes sem causa e os imediatistas da acção é reforçar o reino das ilusões, montar rituais onde essa autonomia e esse controlo são encenados, sem corresponderem a qualquer realidade infra-estrutural exterior. Hoje estas coisas estão esquecidas – e esquecidas deliberadamente por todos os lados – mas o fascismo foi precisamente isto, uma estetização da política, como já Benjamin tão argutamente indicou quando poderíamos julgar que se iria ainda a tempo de evitar o mal… mas não se foi.

Neste sentido, o que mais falta faz no artigo é uma análise das profundas modificações estruturais que o neoliberalismo ocasionou na juventude. A falta de perspectivas sociais, a destruição de todos os elos de bairro que não sejam os de gangs de rua, a precarização e, em geral, a fragmentação, impedem que uma parte muito considerável dos jovenns vá além do imediatismo. Ora, isto representa não uma possibilidade de transcender revolucionariamente a situação actual, mas, pelo contrário, é um efeito directo dos próprios limites inerentes à situação actual. E por isso mesmo os movimentos sociais de base, na medida em que souberem estabelecer relações de solidariedade continuadas, deveriam servir, por esta sua forma de organização, para fazer com que aqueles jovens ultrapassassem a rebeldia imediata e a convertessem numa estratégia revolucionária, para empregar os meus termos de há pouco.

Se isto for exacto, então o principal interesse do Movimento Passe Livre enquanto movimento anticapitalista será o de constituir uma ponte para que os jovens saiam do meio estritamente estudantil, do reino do faz de conta que são as instituições escolares e universitárias, e se liguem aos restantes movimentos sociais.

22 de Maio de 2007,
João Bernardo

Agora as variações, que variam pouco do que já tantas vezes tenho escrito e insistido.

Consolidou-se nos últimos anos em vastos meios da juventude do Brasil a ideia de que a agitação é, por si só, positiva, qualquer que seja a agitação, porque é dotada de uma carga de energia que, assim como destrói, constrói. Sem dúvida. No plano social não existe nada que seja apenas destrutivo, porque não existem vazios. Mas este é precisamente o problema. Quando não se constrói nada de racionalmente definido, programado passo a passo, com objectivos claros, então sucede o pior de tudo. As ideias difusas são propostas como solução e adquirem assim um novo prestígio. Poucas coisas haverá mais perigosas do que o lugar-comum, e onde faltam ideias novas é o lugar-comum que ocupa todo o espaço. A força do lugar-comum vem-lhe de estar há tanto tempo na cabeça das pessoas que elas tomam a antiguidade como se fosse uma demonstração. Em vez de, por exemplo, se analisar criticamente o Estado, grita-se Abaixo a corrupção!, o que dá menos trabalho do que ler O Príncipe. A revolta é a agitação sob a bandeira do lugar-comum, exactamente o oposto da revolução, que é a liquidação dos lugares-comuns.

E a situação piorou nos seis anos decorridos desde que escrevi aquela resenha. O MST confirmou os aspectos mais negativos de uma evolução que se afigura hoje irremediável. Como o Passa Palavra e eu próprio analisámos várias vezes essa evolução, não me parece necessário insistir aqui no assunto. Quanto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, nos estados em que tenho conhecimento, sucedeu-lhe o que sempre ocorre com os movimentos sociais quando são apoderados por dentro por um partido político. Perdem a vitalidade, transformam-se numa mera aparência e depois nem isso, restam só uma sigla e um logotipo.

Com uma classe trabalhadora fragmentada, com um capitalismo que é capaz de obter crescentes economias de escala sem para isso precisar de concentrar os trabalhadores nos mesmos espaços físicos, com sindicatos convertidos em poderosas instituições financeiras e que procedem a volumosos investimentos, tornou-se muito difícil a alteração das relações sociais de trabalho. Nesta situação é cada vez mais sedutora a montagem de cenários. A universidade pública já de si é um grande cenário, um moinho de palavras onde tudo pode ser dito e escrito com a condição de não ser feito e onde a prática mais radical assume a forma estritamente simbólica da ocupação de reitorias, reivindicando um ensino de qualidade. Hilariante se não fosse desesperador. Porque esse mítico ensino de qualidade mais não é do que a tentativa de conferir novo lustre ao velho aparelho de transmissão do conhecimento. Será que os leitores conhecem casos de lutas estudantis que alguma vez tivessem, já não digo alterado, mas tentado alterar os papéis sociais desempenhados na transmissão do conhecimento? Que tivessem posto em causa a divisão do trabalho que torna necessária a existência do pessoal da limpeza e dos funcionários das secretarias, do pessoal dos restaurantes e das cantinas, sem esquecer os jardineiros, todos eles impedidos de frequentar as aulas? Será que os estudantes em luta nas universidades públicas se preocuparam alguma vez com a situação nas universidades privadas, onde a proletarização do ensino é a realidade quotidiana?

Este reino das ilusões teve nos últimos anos as fronteiras dilatadas até ao infinito com a internet, o Facebook, o Twitter e a generalidade das redes sociais. Torne a revolução mais próxima com um simples click! Entre no reino da liberdade participando na minha rede social! Será que a única coisa que há de real nisso tudo — além da trágica destruição daquela privacidade que a sociedade urbana moderna havia permitido — é o fluxo permanente de informações comunicado às várias polícias nacionais e estrangeiras? Quase. Porque há outra coisa muito real, o reforço do cenário de ilusões.

Compreende-se, assim, que sejam as pessoas habituadas a viver e a encenar revoluções em palcos de fantasia, nas lutas universitárias e nas redes sociais, quem vai ocasionalmente erguer tendas de campismo em lugares públicos de algumas cidades e brincar ali às comunas. E há quem pretenda que se trata de espaços de aprendizagem cívica. Mas sucede exactamente o contrário. Trata-se de criar, ou de reforçar, nesses meninos e nessas meninas a noção de que pode construir-se uma sociedade nova como um folguedo de lazeres, enquanto ao redor continuam a funcionar as mesmas relações de trabalho e de exploração. Em vez de aprendizagem cívica temos ilusão cívica, em vez de mudar o real temos um novo castelo encantado no reino do faz de conta.

Quando Walter Benjamin preveniu que a estetização da política conduzia directamente ao fascismo, ele estava a apontar — a custo da sua vida — um elemento de reflexão que nos ajudaria hoje a entender o nexo entre as acampadas de há uns tempos atrás e o sequestro das recentes manifestações por aquilo a que neste site se chamou a revolta dos coxinhas.

A bem dizer, a estetização da política estava preparada desde há muito, quando o multiculturalismo conquistou a hegemonia no pensamento académico e, depois, na vida política do que hoje se chama esquerda. No fundamental, o multiculturalismo constitui a legitimação do capitalismo contemporâneo, que fragmentou socialmente e dispersou geograficamente os trabalhadores, mas, graças à electrónica, os mantém estritamente presos na rede das relações de trabalho. Esta fragmentação dos trabalhadores foi enaltecida pelo multiculturalismo como o fim da classe trabalhadora enquanto sujeito histórico. E, transportando para a vida política o princípio de que tudo o que mexe, vive, o multiculturalismo considera que todos os que se fantasiem de sujeitos históricos são sujeitos históricos.

Quanto às relações sociais de trabalho, precisamente aquelas em que a tecnologia electrónica serve de instrumento a um novo ciclo de mais-valia relativa e a uma colossal acumulação de capital, o multiculturalismo esquece-as e relega-as para os únicos pensadores lúcidos contemporâneos, os tecnocratas da administração de empresas.

São estas, Leo Vinicius, as variações com base no tema que você me recordou. Vejo tudo mais difícil agora do que quando lhe escrevi em Maio de 2007.

As fotografias que ilustram este artigo são da autoria de Alexey Menschikov.

20 COMENTÁRIOS

  1. Caro João Bernardo,

    excelente mise au point sobre os pontos fundamentais da questão política do nosso tempo.
    Levanto, no entanto, dois problemas, sem pressupor desacordo (muito pelo contrário), mas porque isso talvez te dê vontade de os retomares por tua conta.
    1. Sem dúvida, tens razão quando opões “revolta” e “revolução”, nos termos em que o fazes. Mas parece-me que a questão do lugar-comum pode também ser abordada de outro ponto de vista, sem abandono do primeiro: quero dizer, como ponto de partida. Com efeito, não vejo como chegaremos à “revolução” sem superação do lugar comum da “revolta”, apesar da tendência conservadora ou de restauração que a anima. E superação quer aqui dizer que a “revolução” é a “revolta” que se critica e recria a si própria, avançando por isso por outras vias e fazendo outro caminho. Já não reclamar dos governantes (políticos e gestores) que restituam os direitos adquiridos que nos tiram, mas reivindicar o exercício do poder político governante por todos os governados.
    2. O multiculturalismo corresponde ou sagra ideologicamente o actual estádio do capitalismo? Sem dúvida, também. Mas, ao mesmo tempo, mina as razões e obscurece o horizonte da democratização radical — a “revolução” — das relações de poder estabelecidas. E é uma mistificação porque não contesta o traço cultural distintivo e determinante que é a divisão política do trabalho e a divisão do trabalho político que molda a existência e o modo de vida quotidiano numa sociedade hierárquica através das suas instituições naturalizadas. É-o também, simetricamente, porque não vê que a democracia, entendida como exercício do poder político por iguais entre iguais, supõe que estes queiram e saibam dar-se as suas próprias leis e governo, sem verem neles a necessidade ou cumprimento da observância do culto e das leis de ídolos ou valores superiores. Assim, por um lado, onde há capitalismo a homogeneização cultural reduz a folclore a cultura anterior; por outro lado, a participação governante dos governados, a decisão das leis e outras medidas colectivas pelos iguais, é impossível sem que a cultura assuma a ideia de democracia como regime que moldará de outra maneira a vida de todos e a condição de cada um, tornando a autonomia seu princípio vinculativo central.

    Abraço

    miguel

  2. Excelente texto.

    Discordo apenas da associação dos comunistas portugueses à ideia de repetição do modelo soviético. Esta ideia vem da propaganda anti-comunista.

    O PCP nunca escondeu a sua filiação histórica à união soviética mas também nunca indicou que a sua ideia é a de repetir o modelo soviético. Nada indica no programa do PCP que se trata da estatização da política apenas da estatização do que são sectores económicos estratégicos, ou seja, que atravessam toda a actividade económica assim como a preservação da possibilidade de o Estado ter indústrias. É que quem tem o capital não é o povo e só se passa capital dos capitalistas para o povo através do Estado sem o que o risco é o de guerra civil que, em geral, leva também a um Estado.

    A meu ver o que há a conquistar num primeiro passo é a diversificação do modelo de propriedade – à propriedade privada do capital, contrapor-se a propriedade estatal e a propriedade colectiva, social, cooperativa. E isto é uma ideia central no programa do PCP.

    Esta coexistência de formas de propriedade do capital é a meu ver o começo de qualquer política consistente de quebra de hegemonia da proprieade capitalista actual, ou seja, não se trata de acabar com a propriedade privada do capital mas de diversificar as formas de organização do capital até porque isto permite diversificar a oferta de campos de realização pessoal, ou seja, quer preferir assalariar-se junto do capital privado pode tentar fazê-lo, quer preferir trabalhar para o Estado tem também essa possibilidade e quem preferir empesas colectivas tem também o campo aberto para a iniciativa, assim como quem preferir tentar a sua própria empresa.

    É preciso não ser fanático nem lírico.

    Esta aposta na diversidade e equilíbrio de forças entre modelos de propriedade a meu ver deveria ser ainda enquadrada politicamente por uma regionalização do país, assim não só os trabalhadores se ocupam da produção mas ainda da definição das políticas de suas regiões.

    Sem medo, portanto, de politizar mais o país. Um país sem política é um país de idiotas no sentido etimológico do termo.

  3. “Comentário acima”

    Pelo modo como funciona o capitalismo, as empresas estatais não seriam simplesmente vencidas pelas transnacionais numa competição? Refiro-me aqui à qualidade/preço dos serviços prestados numa comparação global.

    Ou, para competir, teriam que, abrupta ou progressivamente, adotar um regime de trabalho exatamente igual a das transnacionais?

    Admitindo-se que isso aconteceria, não há diversidade alguma que seja relevante. Nunca entendi essas transições.

    É possível, inclusive, que a economia “atrase”, eis a dependência de investimentos e quadro de pessoal estrangeiros que as empresas possuem especialmente no capitalismo atual.

  4. Com efeito, os movimentos hoje são construídos assim. Não me refiro a um grupo em particular, mas a um método que é usado por muitos, desde feministas até o pessoal da LER-QI. Forma-se um grupo na universidade, que estuda e se qualifica em torno de um dado tema e, na sequência, o Facebook é o principal meio para angariar adeptos e defender ideias. Chega-se ao ponto de alguns atos serem feitos somente para que se tenha novas fotos e mais matérias para postar na net. O enraizamento social é zero.

  5. João,
    Não será que você se enganou de artigo? Neste artigo escrevo apenas sobre o Brasil, o Partido Comunista Português não é referido.
    Entendi Nada,
    Quem não entendeu nada fui eu. É possível até que esteja de acordo com o seu comentário, embora para ter a certeza deveria pedir-lhe algumas especificações. Mas penso que abordei o problema na mesma perspectiva naquilo que escrevi sobre as privatizações e sobre as companhias transnacionais. O que não entendo é o que isso tem a ver com este artigo aqui.
    Miguel,
    Passei hoje muito tempo a matutar sobre o teu comentário. Se fosse há uns pares de anos atrás respondia-te em poucas linhas, com convicção e segurança, mas agora não sei o que te diga. Vou adiantar duas coisas, que talvez se aproximem da questão, não sei bem como.
    Um dos maiores especialistas da agitação de massas, Hitler, explicou: «Para dirigir as massas tenho de arrancá-las à apatia. As massas só se deixam conduzir quando estão fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito explodirão em acções e reacções inesperadas». Quem o contou foi Rauschning (em Hitler m’a dit) e, embora alguns académicos recentemente ponham em dúvida o testemunho de Rauschning, eu acho-o inteiramente credível, por razões que não cabe aqui explicar, porque isto não é um site académico. Outro chefe fascista que foi um extraordinário mobilizador de ânimos e cuja sombra paira até hoje, Perón, tentou explicar aos patrões reunidos na Bolsa do Comércio de Buenos Aires que «a massa mais perigosa é a massa inorgânica. A experiência moderna demonstra que as massas operárias melhor organizadas são, sem dúvida, as que podem ser dirigidas e melhor conduzidas em todos os domínios» (citado por Hugo del Campo em Sindicalismo y Peronismo). Terminada a guerra, Karl Jaspers, com um conhecimento vindo da experiência, classificou (em La Culpabilité Allemande) «o silêncio» como «o último recurso de quem se encontra reduzido à impotência» e adiantou que «se dissimula o silêncio para reflectir na maneira como se poderia restabelecer a situação». Ultimamente, tenho pensado nisto quando reflicto sobre situações que nós consideramos como conservadorismo, inércia ou apatia. Será que o são? E darão lugar a quê?
    A outra questão diz respeito aos lugares-comuns. Como tu bens sabes, a vanguarda estética e a vanguarda política estiveram muitas vezes próximas ou até confundidas ao longo dos séculos XIX e XX. Nas últimas décadas, porém, a cisão é total, e se acho que a vanguarda estética não perdeu nada pelo facto de estar afastada da política, sobretudo os músicos de vanguarda, penso que a vanguarda política pedeu tudo. Acho que é a partir daqui que devemos explicar o facto de os lugares-comuns reinarem agora na vanguarda política, que é de um conformismo cultural atroz. Mas precisava de desenvolver melhor esta linha de raciocínio e ainda não sei como fazê-lo.
    Isto pode parecer muito longe do que tu escreveste, mas é por aqui que eu lá chegaria. Só que, para já, ainda não sei bem como.

  6. Caros Miguel Serras Pereira e João Bernardo,

    desculpem intrometer-me mas este último comentário do João é deveras pertinente e convoca várias interrogações.

    De facto, não sei até que ponto os dois tópicos de resposta do comentário não poderão convergir num mesmo. Ou seja, e para simplificar, será que não vale a pena integrar a (tentativa de) compreensão da apatia e do silêncio com os lugares-comuns? Já é muito tarde e estou cansado mas, de modo muito sintético, não será que o silêncio tende a ser conservador na medida em que o lugar-comum orienta o pensamento das pessoas e as “convence” a ficar em casa? Por outro lado, quando o silêncio assume uma raiva ensurdecedora interior e que começa a ultrapassar o mero lugar-comum e passa a colocar em causa a existência de instituições específicas, aí poderemos considerá-lo revolucionário (ou, pelo menos, tendente a algo mais emancipatório)?

    Ao ler o comentário de resposta do João ao Miguel lembrei-me de um conto da Sophia intitulado precisamente “Silêncio” e naquelas dez páginas converge esse desdobrar do silêncio pela domesticidade organizada, conformada com o mundo ordenado que nos oferecem e do subsequente silêncio enraivecido com a prisão que do outro lado da rua emitia os gritos dos prisioneiros. Esse silêncio final que aponta o dedo à prisão, metáfora moderna de tudo o que de bem concreto coage as nossas vidas.

    No fundo, o silêncio é contextualizável por diferentes situações mas ele é também produtor ambíguo de conformismo e de inconformismo. No caso da personagem principal desse conto do volume “Histórias da terra e do mar”, a passagem de um conforto doméstico banal e previsível para o subsequente desconforto e com a raiva e com o sofrimento vividos. No silêncio. Mas quando surge esta revolta com o silêncio (e com os lugares-comuns que o alimentaram) – mesmo que, passe a redundância, em silêncio – será que ainda estamos a falar de silêncio ou de algo que já está a lavrar possíveis vias para outro lado qualquer?

    Porque se se percebe as palavras do Hitler sobre as massas fanatizadas e a maior facilidade em as conduzir, será que elas não se fanatizaram porque antes se tornaram… massas? Precisamente átomos particularizados e silenciosos de domesticidades acomodadas e que, perante tal acomodação silenciosa, só a histeria irracional as poderia arrancar da modorra? O período alemão de 1918 a 39 concretizou um caminho inverso ao do conto da Sophia, mas a importância do silêncio está lá. As coisas complicam-se precisamente porque não haverá um silêncio mas vários e que é essa faca de dois gumes que tanto poderá cortar as ruas das cidades num sentido ou noutro. Mas se é possível conceber a existência de dois ou mais silêncios, como distingui-los concretamente antes das situações históricas realmente acontecerem? Na realidade, tudo aquilo é sempre silêncio e é no universo do mutismo e de muito não-dito que as profundas convulsões sociais se vão fermentando. Em suma, a percepção do silêncio é categorizável a posteriori. Mas como a vida se vive no presente estaremos sempre confrontados perante silêncio… E perante o silêncio que surge nas esquinas mais sinuosas do pensamento e da acção calo-me pois não sei que mais dizer.

  7. João Bernardo,

    OK. Fiz um amplo deslizamento que foi buscar tema ao texto que você linkou como o que teria sido o seu último* e joguei algumas considerações que você fez nesse texto com as considerações que você tece neste. Deveria ter sido mais claro quanto ao movimento que fiz para trazer aqui a questão o PCP – mas ao fim de contas é disso que se trata, a velha questão de Lenin: o que fazer?

    * http://passapalavra.info/2012/06/60646

  8. Concordo com o Miguel Serras Pereira ao interligar e nuançar mais a relação entre revolta e revolução.
    A crítica do João Bernardo é perfeita para identificarmos o que se pode chamar de “revoltismo” e seu lugar no interior dos palcos de fantasias, de sujeitos que se mexem e que nada movem. O texto é assim um poderoso convite à reflexão crítica e radical dos movimentos que hoje se acreditam como os mais críticos e radicais. No entanto, João, penso que fica aí faltando fazer a crítica conexa do “revolucionarismo”: essa posição muito racional, pretensamente estratégica, e por vezes apocalíptica, que identifica conteúdos imediatos supostamente rebaixados ou “reformistas” (fim de algumas tarifas, desapropriação de terras improdutivas, ou mesmo punição de “malfeitos” como desvios do orçamento público) e se fecha à percepção de algumas de suas virtualidades radicais, tanto na forma como eventualmente se luta por tais conteúdos – verdadeiro conteúdo social das lutas – quanto na profunda necessidade de imprimir-lhes novas formas de luta e possibilidades de alcance, quando estas não estão dadas ou se encontram desgastadas.
    Esse revolucionarismo, diante de um quadro político visto como desanimador, até faz diferença com o revoltismo na medida em que não se mexe, não se joga, não se fantasia, mas miseravelmente acaba caindo no mesmo lugar que o outro, dado que igualmente nada move, nada transforma.
    A questão mais complexa não é saber a tarefa do revolucionário diante do lugar-comum (liquidá-lo, sim, sem demagogias e negociações). O problema é como verdadeiramente se liquida algo. Como se supera.
    Se é que serve como “resposta” – e eu realmente acho que está longe de ser – só consigo pensar na prática política, na práxis coletiva, e, na esteira de Michel Pêcheux, no movimento de desidentificação pelo qual um determinado lugar-comum, um sentido dominante, deixa de fazer sentido no interior de um processo de luta.
    Entendo como uma revolução pode ser traída ou evitada mediante o espírito da revolta, da agitação, da mobilização, da estetização da política, etc. Não entendo como uma revolução pode ocorrer sem se apoiar e se lançar para além de uma infinidade de pequenas e grandes revoltas.
    Trocamos o Comitê Central pelo Grande Cérebro-Programa Estratégico? Seria um tiro no pé, dado que, como o silêncio, os lugares-comuns, também eles se transformam e mudam de sentido, e a reflexão que outrora foi crítica e destemida pode bem ser enquadrada como nova lógica oficial, ou língua de madeira, que absorve todas as dissonâncias, varrendo as contradições para debaixo do tapete – ou mesmo decretando que elas já não mais existem.

  9. “Entendi nada”, veja o caso de um monopólio natural em Portugal, dada até a dimensão do país, que é a da electricidade e no caso a EDP. O problema da sua privatização é que qualquer política de energia que se queira fazer vai passar pela autorização de privados. Então, nós sabemos como funciona: o governo vai ter de pagar, seja de que forma for, por qualquer política de energia que colida com os interesses dos accionistas.

    Ou seja, se o governo quiser desonerar o preço da energia vai ter de compensar os accionistas – e compensa como? Com dinheiro do orçamento, ou seja, do povo. O resultado é que o povo vai ter de pagar a baixa dos preços da energia, ou seja, realmente os preços não baixam a não ser talvez para as empresas, as grandes empresas acima de tudo que são as que mais notam os a redução de preços da energia. Para as famílias, para o pequeno e médio capital, nada, porque o que reduzir na conta eles pagam pelo orçamento de Estado.

  10. Caros João Bernardo e João Valente Aguiar

    a minha ideia ao escrever o comentário anterior eram duas: sublinhar a ambiguidade, senão ambivalência, da “revolta” e do “lugar comum”; mostrar que a ideologia multiculturalista é mistificatória e intrinsecamente inconsistente.
    1. Sem o mal-estar e o descontentamento provocados pelas condições de existência impostas pelo capitalismo e a revolta daí decorrente, o propósito de uma transformação radical consciente das relações de poder instituídas seria improvável. Mas a revolta por si só não conduz automaticamente ao movimento de democratização radical (auto-governo, “cidadania governante”) a que chamamos “revolução”, como o João Bernardo torna ainda mais claro agora, com a sua evocação do nazismo e do fascismo, que incitam à revolta e à participação (dependente) ao serviço da consolidação das instituições hierárquicas. Se uma certa dose de “anticapitalismo” espontâneo e superficial é inerente ao funcionamento das relações de poder existentes, esta revolta, à falta de vontade de democracia e a auto-organização democrática, servirá apenas para consolidar e/ou recilcar a dominação de classe, a distinção estrutural e permanente entre governantes e governados, a adesão e participação dependente dos dominados à lógica e à organização da dominação.
    2. A ideia e a vontade de democracia são uma criação histórica que opera uma ruptura cultural radical ao pressuporem que as instituições e razões/representações que nos governam são criações da acção humana, e não imposições da natureza, de Deus, dos Grandes Antepassados, de uma dinâmica independente objectiva fazendo com que tudo o que acontece seja como a pescada que antes de ser já o era. Esta ruptura implica a dessacralização implacável de todos os mitos que façam da cultura uma segunda natureza, idêntica a si própria, cujas leis devamos venerar sem exame, tomando-as por solução antecipada e despolitizada de toda a questão social. Acresce que os mitos — ou “valores” centrais — de cada cultura que não tenha sido transformada pela ruptura democrática referida se afirmam como a verdade única, ou mais completa e privilegiada, opondo-se por isso justamente à ideia de igual dignidade de todas as culturas e identidades apregoada pelo multiculturalismo. E, do mesmo modo, a “cidadania governante” da democracia é incompatível com a submissão a qualquer lei religiosa e mítica ou aos seus sucedâneos mais ou menos secularizados. A afirmação da cidadania e a identidade do cidadão como aquele que se define por não aceitar ser governado por um poder em cujo exercício não participe em pé de igualdade são um traço cultural distintivo e determinante, ao mesmo tempo que não podem deixar de visar a sua própria “mundialização” (ou “universalização”).

    Eram estes os pontos que procurei marcar. Agora, acontece que o JVA levanta outra questão que me é cara, e que me recordou, embora a sua tematização seja muito diferente, uma comunicação que há anos ouvi ao Tito Cardoso e Cunha sobre (estou a resumir) o silêncio, um certo silêncio, como condição da comunicação (entre iguais, entenda-se). A questão mereceria uma análise na qual não posso entrar de momento. É toda a questão – cara a Castoriadis – da paideia ou socialização/formação/produção democrática do cidadão governante que aqui se põe. A democratização é, na realidade, impensável sem a criação de um tipo de indivíduo capaz de distância reflexiva em relação a si próprio e às instituições (“culturais”) que presidiram à sua humanização. O problema do silêncio, já não como imposição do interdito, mas como “resto” ou “excesso” inseparável do “navegavam sem o mapa que faziam” de que Sophia também fala e que não há saber ou fazer que definitivamente colmate, bem como condição da reflexividade intrínseca e incorporada na acção da participação democrática governante, surge por isso como uma dimensão ou aspecto essencial do “regime da palavra” que a passagem da “revolta” à “revolução”, entendida como democratização radical, não pode deixar de instituir.

    Abraço para os dois

    msp

  11. Foi muito por acaso que li depois de mais de 6 anos o comentário que me fez sugerir ao João Bernardo escrever sobre o tema. Pois eu também não tinha mais a mínima recordação dele. Diante dos acontecimentos de junho de 2013 no Brasil, acho que ele seria melhor assimilado (inclusive por mim) hoje em dia, no que diz respeito principalmente à relação entre revolta da juventude e fascismo. Minha geração e os que vieram depois, ao menos no Brasil, nunca tinham tido a experiência de ver uma mobilização que servisse de base para a extrema-direita, como foi na semana de 17 de junho. O fato é que sempre agimos como se as ruas, as mobilizações ou mesmo a ‘ação direta’, o ‘apartidarismo’, a ‘horizontalidade’ carregassem sempre um sentido libertário ou de esquerda, até porque nunca fomos forçados a pensar de outra forma.

    Uma das questões que eu me coloquei (antes de reler o referido comentário do JB) era ‘o que havia de rebeldia nos chamados “coxinhas”’. Havia de fato uma revolta nos coxinhas? Poder-se-ia chamar aquilo de rebeldia ou de revolta? Havia rebeldia quando todo os status quo estava favorável a se ir às ruas e a polícia não estava mais ali para reprimir mas parar tirar fotos com eles? É possível se perguntar o que há de autônomo e heterônomo nesse movimento dos coxinhas? Faz sentido usar esses termos? Serve de algo prático pensar nesses termos?

    Depois de décadas (não sei quantas) as ruas no Brasil foram reabertas como lócus de poder. E esse poder foi logo disputado. E será disputado por todos: da extrema-direita à extrema-esquerda, passando pela ala do PT mais voltada ao jogo eleitoral-estatal, na tentativa de agregar os próprios movimentos autônomos dentro do pacto social que junta partidos de direita como o PSD à CUT e movimentos sociais como o MST (vide: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-07-31/apos-protestos-ala-majoritaria-do-pt-defende-guinada-as-origens-e-tarifa-zero.html ).

    A discussão pautada nacionalmente pelo MPL sobre a Tarifa Zero e pelo transporte como direito social, sem dúvida foi uma vitória de uma visão estratégica para além dos lugares-comuns. Mas o movimento terá que saber trabalhar também, como aliás é de praxe, a partir de alguns lugares-comuns, como quem sabe, por exemplo, a questão da corrupção. É possível a partir de um tema moralista e de tendência à direita avançar numa construção à esquerda? Possível eu diria que sim, a probabilidade de sucesso é outra discussão.

    Não quero e não posso me alongar agora. Tenho muitas questões em aberto em relação à fonte do poder do MPL, da juventude, de qual poderiam ser os 20 centavos dos trabalhadores nos sentido mais clássico da expressão, se é que faz sentido pensar nesses termos. Mas no momento lanço só uma: para além da conquista da Tarifa Zero e do exemplo de luta de forma de organização, o que é possível o MPL construir no caminho dessa luta, no sentido de aproximação a uma sociedade socialista (termo surrado mas é isso mesmo)?

  12. Rodrigo O. Fonseca,
    Há uma passagem de O Homem Sem Qualidades, de Musil, em que um dos personagens diz mais ou menos que inventamos tácticas e estratégias só como pretexto para adiarmos o ataque. Cito de memória porque agora estou longe dos meus livros. Mas há muitos anos que ando a dar voltas a esta ideia, e com ela em mente observei uma coisa na ópera Siegfried, de Wagner. Quando Siegfried se decide a matar o dragão Fafner, Mime dá-lhe conselhos, que ele deve fazer assim e assado, ir por um lado e não por outro, e o medo é, explicitamente, um dos elementos presentes nesta obsessão de Mime pela estratégia. Mas Siegfried aproxima-se do dragão e simplesmente lhe enterra a espada. É um dos momentos cruciais da Tetralogia, mas nada na música acentua a importância desse gesto, porque Siegfried age naturalmente, sem se preocupar com tácticas e estratégias. É esta a candura de Siegfried, a sua inocência, tantas vezes sublinhada. Pergunto a mim mesmo se Musil não estaria a pensar na ópera Siegfried quando escreveu aquela frase. Tudo isto a propósito do «revolucionarismo». Não creio que o pensamento estratégico seja inútil, muito pelo contrário. Mas também penso que Siegfried e o personagem de Musil têm razão. Como conjugar as duas coisas?

  13. Miguel e João,
    Vocês conhecem certamente esta canção do Yves Montand:
    https://www.youtube.com/watch?v=94q1FGlxKrM
    O sujeito é operário na Citroën, vive sozinho, num daqueles hotéis para trabalhadores de que há tantos em Paris, não tem dinheiro para ir todas as noites ao cinema e o seu maior prazer é passear na rua, ver, observar. Os franceses têm uma palavra especial para isso: flâner. Também há um conto de Hemingway de que gosto muito, A Clean Well-Lighted Place, em que um empregado de restaurante, que vinhe sozinho, terminado o serviço, gosta de se sentar num café, pedir uma bebida e ficar a ver quem passa. Ambos vivem no silêncio interior, mas esse silêncio não os torna solitários. É graças a esse silêncio, usando-o como instrumento, que eles conseguem apreciar criticamente o mundo.
    Agora digam-me. Seria isto possível se o operário da Citroën e o empregado de restaurante tivessem telemóveis, celulares? É hoje ponto assente que os telemóveis e as redes sociais fizeram a Primavera Árabe, o Verão Turco e o Inverno Brasileiro. Mas o que é que desfez esses movimentos, belos e luminosos como bolhas de sabão?

  14. Em um debate, certa vez, ao se falar das “revoluções 2.0” referenciando a Primavera Árabe, etc., perguntei porque hoje os livros de história não tratam as antigas revoluções – aquelas onde as formas de comunicação eram por carta e outros meios “arcaicos” -, de “revoluções postais”…

    Curioso vivermos na “era da informação”, da “comunicação” e não sabermos mais a diferença entre meios e fins, conteúdo e forma…

    João Bernardo, sou avesso a adulações, mas o texto está muito bom. Coerente com a citação de Lao-Tsé. Quem o lê e não sente nenhum incômodo, ou é imune ao lugar-comum, ou é imune à crítica. Não me encontro em nenhum dos casos.

    Saudações.

  15. é importante sim saber como eram as coisas nas versões 1.0, beta, alfa, etc.
    Mas hoje talvez também valha a pena trabalhar duro para tentar fazer com que a 3.0 seja mais parecida com que o que queremos, do que abandonar o barco das massas e se enclausurar na nostalgia. Como indivíduos podemos sim recusar estas formas paranóicas de comunicação. Mas como coletivos temos que fazer o esforço de ocupá-las com o oportunismo de que fala Virno.

    A revolução capaz que não será twittada, mas considerando a relevância que isso tem hoje em dia tanto para o trabalho quanto para o capital, parece-me que o ideal é pensarmos novas formas de se formular a relação entre os sujeitos e a comunicação, que transcenda o fetiche da tecnologia, pois se isso não for feito aí sim não teremos chance.

  16. João Bernardo,

    fico contente que tenha retomado a publicação dos textos, mais ainda porque este texto me lembrou muito um que é recorrente nas formações políticas que fazemos, “A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas”.

    Acredito que a análise que você fez sobre o MPL, ressaltando a forma de luta, parece ser a grande contribuição para a esquerda brasileira. O passe livre seria uma pauta “imediata”, e talvez reformista, se sua conquista fosse obra de uma “organização clássica”, na qual a divisão do trabalho se reproduz na divisão entre base e direção. Assim, o “passe livre” viria para amenizar as mazelas do capitalismo e colocar um freio na revolta social; tal como aconteceu com o “estado de bem-estar social” na Europa, que, mais do que nada, foi uma resposta do capital ao perigo do “espectro do comunismo” que rondava o cenário. Assim, a possibilidade da revolução se extender a outros países da Europa, fez com que o capital precisasse melhorar as condições de vida da classe trabalhadora, a fim de evitar um dano maior.

    Quero apenas afirmar que há ganhos políticos imediatos e a longo prazo com o modo de organização do “passe livre” (e também outras organizações autônomas, como p.ex. as fábricas ocupadas na argentina). Não cabe aqui o debate entre “reforma e revolução”, justamente pelo fato de que não é um conjunto de melhorias que proporcionaria a transformação social, nem tão-pouco uma mudança radial imediata, como se as relações de dominação fossem chip’s que, ao serem substituídos, mudariam assim todos os nossos hábitos e costumes (local em que se reprodução – e se produz – as relações de dominação). Cabe lembrar que o capital precisou ritualizar o consumo para transformar as sociedades (há outros fatores, mas este é um ponto interessante que teve início a partir da década de 50).

    Resumo da ópera, o debate entre “a reforma e a revolução” não cabe mais aqui, justamente pela fronteira tênue que separa a conquista imediata da conquista a longo prazo, desse modo, se “a autogestão das sociedades se prepara na autogestão das lutas”, então pode-se dizer que essa forma de organização se contrapõe a outras na medida em que trabalha sobre o cotidiano com uma perspectiva revolucionária, assim não basta “tomar os meios de produção para modificar as relações de dominação”, a revolução só será “completa” se cortarmos os laços que ainda nos prender ao “ancien régime”, e isso não se resume na queda da bastilha.

  17. Uma observação:

    Não é completamente exata a afirmação de que não existam lutas que coloquem em causa as relações sociais mediante as quais se produz conhecimento na universidade. Ao contrário, existem dados conhecimentos que só são produzidos porque existem lutas que alteram as hierarquias. E, de todo modo, uma série de lutas apresentam um formato igualitário onde funcionários, alunos e professores possuem o mesmo espaço para voz, mesmo poder de voto e há rotatividade nas funções. Isso é totalmente contrário ao modelo hierárquico predominante.

    Não só essas lutas existem como elas são intensivamente combatidas. São inúmeros os casos de processo, expulsões e tentativas de expulsão, perseguições. No entanto, o mais importante é o uso daquilo que Tragtenberg chamou “currículo informal”. Os estudantes que recusam apenas discutir as ideias e queiram a militância prática têm as suas possibilidades de carreira bloqueadas. É assim que se forma um professorado avesso a transformações práticas. Os estudantes contestadores vão sendo isolados, combatidos e perseguidos. Depois bloqueiam suas possibilidades de carreira. Assim, forma-se um professorado dócil porque já de antes a universidade foi botando pra fora os radicais e tornando professores os que se encaixam nas hierarquias.

    Seria necessário tirar dos departamentos o poder de seleção e torná-lo externo, como os concursos normais, para que se evitasse esse clientelismo que premia os alunos servis. Ou, numa linha mais radical, lutar para que os estudantes tivessem poder de decidir, também, quem é ou não contratado. Tanto uma ou outra coisa só viria com luta porque vai contra o esquemão clientelista predominante.

  18. Ahh! Ler e silênciar. Não como o “último suspiro dos que se sentem impotentes”, mas justamente porque é preciso digerir com paciência, se alimentando de fontes e afinidades, pra se sentir mais forte (e um tanto desencantada…), mais convencida de que os idealismos que nos consolam da bruta realidade só acabam por consolidar essa mesma realidade.

    Confesso: há alguns poucos anos atrás eu repudiária este texto, porque no auge do movimentismo que se aprende na universidade, reza a cartilha que toda forma de luta é louvável:
    Pedras,
    noites
    e poemas.

    Os movimentismos são ótimos para o ego.Mesmo quando a gente não se dá conta, eles servem pra fabular que “se está contribuindo muito com sua parte para o nosso belo quadro social”. Pra se iludir que a revolução virá, tweetada e com data marcada no facebook, proclamada em Brasilia (?), Autenticada em cartório, em 3 vias…

    Agora, estou tentando exercitar meu materialismo e assim, não posso mais concordar que a mera vontade, é suficiente para a revolução. Não é mais possivel ser condescendente com as armadilhas da social democracia, fazendo-nos lutar por projetos, pec’s, consessões e migalhas, apenas arranhando as superficies da Superficie, nos foras-politico-corrupto-genérico, abaixo emissora-fantoche tal, sem nunca tocarmos, mesmo que de leve na real Estrutura do poder. Invertendo-se a ordem dos fatores e também o resultado: Não é o Estado que dá forma ao Capital, mas o Capital que produz o Estado, na forma que melhor o sustentar. (E sim, é dialético…)
    Talvez uma das coisas mais perigosas seja a ilusão de que se acaba com o capitalismo, reformando-o. E pra esquerda, mesmo a mais bem intencionada, de que as lutas do projeto popular democrático, pela passagem, pelas árvores, as marchas das vadias, maconha e o fim da corrupção, sejam lutas da classe trabalhadora, e por isso, de cunho revolucionário. O capital pode conceder passe – livre, se isso tornar possivel que continue se alimentando das mesmas relações de trabalho que sugam o trabalhador que produz o carro da classe média. Assim como pode tolerar o fim machismo, uma vez que se substitua essas relações por outras mais fetichistas e exploratórias. É assim no Capital. Tudo é tragado e transformado em motor para essa teia que complexifica todas as relações da vida e as tornam aparentemente invenciveis. Mas só aparentemente.

    Mas é isso, valeu pelo texto, e vamos lá porque só o que permanece é o movimento.

    Fernanda

  19. “É hoje ponto assente que os telemóveis e as redes sociais fizeram a Primavera Árabe, o Verão Turco e o Inverno Brasileiro. Mas o que é que desfez esses movimentos, belos e luminosos como bolhas de sabão?”

    Parte da resposta deve-se ao elemento “política externa norte-americana”, isto é, a utilização de redes sociais para desestabilização política de regimes não alinhados (golpe suave). Um exemplo recente disso:

    http://bigstory.ap.org/article/us-secretly-created-cuban-twitter-stir-unrest

    É exatamente uma bolha. Infla-se e na hora que o país explode em caos, coloca-se um governo favorável ao Ocidente.

    Toda tecnologia é produzida a partir de uma visão de mundo. O Facebook é a catequese de uma ideologia de ação individual, de mínimo esforço, de individualidades dispersas numa multidão e imediata. Transformações radicais são exatamente o oposto: coletivamente organizadas, de muito trabalho e demoradas.

  20. Eu me referia ao comentário do outro “João” (e não ao texto), logo acima do meu, daí a confusão. O João sem sobrenome.

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