Uma mulher entrevistada pelo Passa Palavra

Nas manifestações de junho de 2013 e nas manifestações posteriores ficou escancarada a violência do Estado contra os manifestantes, levando diversas pessoas a conhecerem as cadeias brasileiras. O Passa Palavra entrevistou uma mulher que frequentou por um ano, como visitante, o sistema carcerário e relatou os abusos sofridos.

Passa Palavra: Conte um pouco da sua experiência de visitar a prisão.

Durante um ano eu visitava meu marido todo domingo na Penitenciária II de Franco da Rocha. A revista era muito rigorosa, as mulheres faziam a gente passar muita humilhação. Ficávamos em filas, entrava em um box e pediam para tirar a roupa, abaixar três de frente e três de costas. Seria isso o normal, mas elas humilhavam a gente. Mandavam jogar o quadril na parede abrir bem as pernas, abrir as partes [íntimas] com as mãos. É triste tirar a roupa na frente de alguém que você nunca viu, né? Já é constrangedor. Nunca levei meu filho. As mães que iam com filho eles ficavam abusados, as crianças gritam sem parar. Perguntavam para a criança se deram alguma balinha para guardar, eles querem dizer que é droga, mas não falam assim na frente da criança; aí perguntam, levam para longe da mãe.

PP: Teve algum caso de abuso maior com você?

Em 2011, já ia lá tinha um ano, quando entrei no box a agente pediu para abrir bem as pernas. Eu não consegui agachar o quanto ela queria. A agente Silvana falou que eu tinha droga lá dentro. Aí ela falou para eu admitir, mas eu não tinha nada. Ela me fez abaixar na frente dela umas doze vezes, dizendo que ia cair a droga. Depois ela disse que ia chamar a policia. A Policial Civil chegou e perguntou por que não tinha deixado a agente fazer a revista, me humilhando. A Policial Civil me levou para um quarto e me fez abaixar mais seis vezes seguidas. Eu comecei a ficar nervosa e falei que ia atrás dos meus direitos, a agente pegou minha carteirinha e me deu 30 dias de gancho.

A agente e a policial me levaram para o hospital de Caieiras. Cheguei lá às dez e só fui atendida ao meio-dia. A ginecologista me tratou muito mal, ela estava de preconceito. Disse para eu falar, mas eu estava muito nervosa e não consegui, pedi para ela falar. A agente Silvana falou que eu estava com drogas nas partes genitais. Aí a ginecologista ficou mais nervosa e começou a me humilhar ainda mais. Ao invés de fazer ultrassom ou algum exame, me mandou deitar na maca e pegou uma coisa de metal que foi rodando e abrindo, senti uma dor terrível, tentei pôr a mão para parar. Ela chamou a agente para olhar e disse que não tinha nada.

A agente quis me ajudar a vestir a roupa, mas eu não aceitei, depois de tudo aquilo… Pedi para a médica um comprovante do exame, ela não quis me dar.

A agente começou a acusar e olhar meu RG e disse que era falso, disse que a situação ia piorar para mim, que ia me levar para a DP. A médica falou que eu não podia sair, porque estava passando mal e minha pressão subiu.

A agente Silvana ficou esperando o atendimento e me levou até à delegacia. Fiquei umas três horas na delegacia até provar que o RG era meu, que não tinha nada errado. Eu não tinha feito nada, não ia correr.

PP: Como foi depois disso?

Não consegui mais visitar desde esse dia. Peguei um pavor, muito medo mesmo. Você não ter nada, a pessoa está te acusando, eu não tinha como provar nada. Entrei com a denúncia na defensoria.

O diretor do presídio me chamou para uma conversa, o diretor – Samuel é o nome dele – falou que eu não era nada, que minha palavra não valia nada. Perguntou: Quem mandou você ir direto na defensoria e passar por cima de mim? Ele ficou com raiva de mim porque fui em tudo quanto é lugar.

Tive que tomar calmante, faço tratamento, tomo os remédios. Passei o tratamento com psicólogo, tenho até um laudo. Tanto que eu nem gosto mais de japonês, a médica era japonesa e eu ficava pensando ela vem lá do Japão para tratar mal os brasileiros.

Até hoje quando vejo um carro como o que fui levada eu passo mal. Nunca mais na minha vida eu entro em um presídio, só de ouvir já… Só eu e Deus para saber o que vivi naquele dia 4 de setembro.

Quando meu marido saiu não conseguimos ficar juntos, eu jogava muito isso na cara dele, nunca consegui perdoar ele, voltava em toda discussão. Eu dizia: Você não sabe o que me fez passar.

PP: Você sabe de histórias de outras pessoas?

Sei que não sou só eu que passei por isso, todas as pessoas passam por essa situação. O diretor falou: Se eu desconfiar que tem droga eu levo mesmo. Passei a humilhação e todas têm que passar. Não é certo isso. Tem outras pessoas que já sofreram isso, fiquei de ser testemunha de outra pessoa, mas não me ligaram de volta. Aqui perto da minha casa mesmo tem duas pessoas que foram levadas na mesma situação que eu, mas não conseguiram processar, falaram: Eu fiquei com medo, não tive coragem.

No dia em que aconteceu comigo, pegaram uma com droga, trancaram ela com três agentes dentro do quarto e ela gritava muito dentro do quarto, foi horrível o que aconteceu. Eu fiquei muito nervosa, tremia.

Humilhar era sempre. Elas fazem a revista de maneira preconceituosa, já estava para desistir. Tinha que rezar toda vez, para passar sem humilhar. Eu chegava tremendo. Já falavam: Por que está assim? Já achavam que tinha alguma coisa. Ter que abrir com a mão e a pessoa põe a cabeça na parte de baixo, quem passa por uma situação dessa e não fica nervoso?

Teve uma vez que pegaram um rapaz lá dentro e espancaram ele. Foram como com cachorro. Só se ouvia os gritos deles e ele ficou no castigo. Parece que está processando o diretor Samuel.

Para ilustrar este artigo foram usadas obras de Edvard Munch.

Os leitores portugueses que não percebam certas expressões usadas no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam algumas expressões correntes em Portugal
dispõem aqui de um Glossário de gíria e termos idiomáticos.

5 COMENTÁRIOS

  1. As revistas são por conta da preocupação com segurança. Num único caso, 5 presos foram assassinados nessa penitenciária.

    http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u22590.shtml

    Mas as coisas variam de presídio para presídio, por conta da direção. Relato como esse eu nunca tinha visto. Mandam abaixar nua inúmeras vezes para ver se não tem algo escondido na vagina – tem gente que esconde até no ânus – e tem também os detectores de metal. Agora isso de chamar polícia e levar ao hospital é totalmente arbitrário. Tem um advogado resolveria tudo. Fora isso, o melhor é a pastoral carcerária.

  2. Parabéns pelo artigo, fico indignada como o povo brasileiro é humilhado, fico me perguntando pq o governo, ñ invente em qualificação de profissionais da segurança, pq ñ invente em aparelho para não expor o visitante de forma, no caso referente acima, fico horrorizada e triste p saber da historia. Conheço varias pessoas que passaram pela essa situação parecida. Graças a Deus temos a Defensoria publica e pastoral carcerária que sempre nos apoia.

  3. Quem é essa mulher para falar de preconceito, depois de falar mal dos japoneses?

  4. Isso mesmo, quem é essa mulher para falar de preconceito? Os relatos deveriam ser feitos apenas pelas Madres Teresas. Senão os puritanos do politicamente correto sequer lerão aquilo que é para ser lido.

  5. Juliana, o governo não investe no bem-estar do povo pobre – do povo que é sujeito cotidianamente a humilhações desse tipo – porque, em primeiro lugar, boa parte dos meios de comunicação volta-se de costas para esse tipo de problema, e, em segundo lugar, porque a parte do povo que sofre com tais humilhações precisa se organizar para denunciá-las e combatê-las. Não se pode ficar esperando que o governo se sensibilize: quando se trata do povo pobre, os governos só se sensibilizam quando estes se fazem ouvir, de uma forma ou de outra. As pessoas que vivem ou testemunham certas situações acabam conhecendo umas às outras, e, portanto, precisam se mobilizar, precisam partir para uma resistência ativa e coletiva (se é que já não existe alguma mobilização nesse sentido). Mesmo porque, se estas pessoas não se mobilizam coletivamente, elas ficam mais vulneráveis a todo tipo de intimidações, como as que a entrevistada sofreu. Se a pastoral carcerária pode servir de auxílio nesse sentido, como está a ser sugerido, creio que só o próprio processo de luta poderá revelar.

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