Por João Nunes Almeida

 

Após a destruição parcial, em Londres, de um dos grandes quartéis-generais conservadores em Dezembro de 2010, no contexto do protesto contra o aumento das propinas e dos motins que puseram as cidades inglesas em estado de sítio durante o mês de Agosto de 2011, poder-se-ia pensar que os conflitos sociais, despoletados pelo governo de Cameron e Osborne, estariam doravante pacificados na festa nacionalista dos jogos olímpicos. Estabelecer uma relação entre estes acontecimentos e as manifestações e greves de Novembro e Dezembro de 2013 no ensino superior poderá explicar o ressurgimento desse conflito, se se tiver em conta o que parece ser uma resposta da população a um aumento do policiamento, vigilância e intensiva racionalização das instituições de ensino. Não é de estranhar, por isso, que numa das faixas utilizadas recentemente nos protestos de Londres se pudesse ler: “estudantes contra a universidade”.

O facto de se pagar 9000 libras [cerca de 34.200 reais] por ano para se frequentar um curso superior numa universidade pública em Inglaterra deve-nos levar a questionar se existe de facto contradição entre o público e o privado ou se porventura um é apenas uma extensão do outro. Não é por ser estatal que a universidade se torna um lugar de menor exploração: o governo poderá voltar a aumentar as propinas e desse modo conduzir, como até agora o tem feito, a um aumento da exploração de indivíduos que se endividam para pagar os seus estudos. Talvez por isso, a reivindicação nas ruas já não recaia em uníssono na defesa exclusiva dos serviços públicos e do welfare-state, mas sim contra a universidade enquanto instituição que já não beneficia quem a frequenta, despojando de todos os instrumentos de autogestão, aprendizagem e convívio entre estudantes que fujam da lógica empresarial ditada quantas vezes pelas associações de estudantes. A universidade tornou-se um símbolo descarado de exclusão social desde que as propinas triplicaram o seu valor após os protestos de 2010. Tal aumento das propinas traduziu-se na exclusão imediata de 15000 estudantes do ensino superior. É contra a universidade, enquanto instituição estatal, que vê estudantes como consumidores afortunados e proletários a disciplinar quando estes se rebelam contra ela, que os protestos reemergiram em Inglaterra e algumas universidades foram ocupadas nas duas últimas greves convocadas pelos sindicatos University and College Union (UCU), Unite e Unison.

As universidades em mutação: a gestão intrusiva e o cliente que estuda nas universidades inglesas

Os acontecimentos que se passaram nos últimos meses, e que são apenas a ponta do iceberg do descontentamento que poderá reemergir a partir de Janeiro, têm como pano de fundo uma intrusão agressiva de vários instrumentos de gestão que visam a crescente obtenção de lucro às custas de uma maior exploração e perda de autonomia tanto dos estudantes como dos académicos na produção de conhecimento dentro da universidade. Pode resumir-se tal colonização a um assédio ininterrupto a estudantes e professores através de uma suposta inevitável relação de causa entre o que se investiga e ensina e o mundo empresarial. Académicos são chamados à atenção, através de sucessivos mails da universidade à qual estão vinculados, para o imperativo de criarem currículos e programas de estudo que satisfaçam as necessidades das empresas. Estudantes recebem semanalmente anúncios de como planear as suas carreiras profissionais relativamente às exigências do mercado de trabalho na crise. Dentro dos departamentos de ciências sociais, encontram-se afixados posters de eventos promovidos por multinacionais. Na ânsia de cativar futuros estudantes, empresas e universidades organizam feiras de carreira consoante as áreas de estudo, ainda que isso implique promover empresas relacionadas com o negócio de armas. Neste ponto, é importante salientar a recente informação obtida através de um freedom of information act [Lei da Liberdade de Informação] de que a universidade onde estudo, por exemplo, investe 2,36% das propinas na British Aerospace Engineering (BAE), uma empresa ligada à venda de armas a regimes como os da Arábia Saudita, Bahrain e Líbia. A própria universidade tinha um programa de mestrado financiado pela BAE, bem como parcerias na organização de eventos cujo objectivo consistia em atrair estudantes para tal empresa.

O que importa aqui salientar é que o discurso que se traduz nessas práticas é o mesmo que produz o estudante, enquanto cliente, a quem a universidade deve servir uma “experiência” que ultrapassa os limites do campus universitário e penetra na sua vida fora da universidade. Este estudante, endividado, regerá os seus hábitos de acordo com a disciplina da dívida das propinas, tendendo a aceitar mais facilmente a chantagem imposta pela relação de causa entre o seu plano de estudos e o mundo empresarial. Caso se decida pela leviandade de estudar o que deseja, arriscará o desemprego a par de uma dívida por pagar de 27.000 libras, incluindo os respectivos juros. Não se deve deduzir deste raciocínio, no entanto, que esta nova subjectividade é necessariamente domesticada e incapaz de resistir à chantagem do controlo social da dívida. As ocupações e os protestos nos últimos dois meses (no caso de Sussex, ocupada durante o mês de Março) levados a cabo por estudantes, endividados ou não, no pano de fundo do desemprego ou do trabalho precário, não nos permitem chegar a conclusões fáceis quanto à pacificação da universidade através do instrumento político da dívida. Ainda relativamente ao endividamento dos estudantes, soube-se em Novembro de 2013 que a coligação entre conservadores e liberais-democratas se prepara para vender 890 milhões de libras [mais de 3380 milhões de reais] de dívida contraída por estudantes no período entre 1990 e 1998, o que levará a um aumento das taxas de juro impulsionado pelas empresas detentoras dessa dívida e, consequentemente, a um aumento dos custos da dívida suportados por ex-estudantes. Ora, o que esta transferência do total da dívida para os estudantes revela é que, precisamente por ser uma subjectividade ambígua entre o estudante e o cliente, o estudante endividado passará crescentemente a suportar os custos de produção da universidade, enquanto a mesma não deixa de apresentar uma mais-valia que ronda um bilião de libras.

Impasses de uma solidariedade nas greves de 31 de Outubro e de 3 de Dezembro de 2013

Denunciando a perda de 13% do salário da maioria dos trabalhadores nas universidades, o aumento considerável no das chefias e a diferença abismal entre o salário dos vice-chancellors (cujo salário, em média, rondava as 250.000 libras por ano em 2011-2012) e os restantes trabalhadores, o UCU, o Unite e o Unison (estes dois últimos estão financeiramente ligados ao Partido Trabalhista, tendo direito a voto nas políticas do partido) convocam para o dia 31 de Outubro uma paralisação das universidades em todo o território durante 24 horas. É neste contexto que me solidarizei com os piquetes da universidade onde estudo e pude constatar a miséria da acção dos sindicatos envolvidos bem como da inexistência de um amplo movimento estudantil que pudesse confrontar o conservadorismo da acção dos sindicatos.

Antes de mais, importa não romantizar o que sucedeu na Universidade de Sussex e de Londres de modo a não generalizá-lo a todo o país. Convém relembrar que o UCU tem uma estratégia nacional de não bloquear estradas ou travar fura-greves. O sucesso da greve em Sussex, por exemplo, deveu-se em grande parte ao papel de estudantes radicalizados que efectivamente bloquearam as entradas da universidade (o que mais tarde reverteu em processos judiciais por perturbação do normal funcionamento da universidade). Ainda assim, no piquete com o qual me solidarizei, alguns estudantes decidiram ocupar meia-faixa de rodagem e jogar ténis com os tristes e derrotistas cartazes do UCU (Honk for support!), depois de não mais de quinze estudantes terem procedido à única marcha, considerada ilegal, tentando assim desacelerar a circulação de um autocarro. Trinta pessoas, incluindo estudantes, sindicalistas e membros da associação de estudantes, posicionaram-se ao longo da manhã na berma da estrada que dá entrada para a universidade. Mesmo com um tão reduzido número de grevistas e a evidência deprimente de uma greve falhada, os sindicalistas, que batem palmas quando os fura-greves buzinam e aceitam o panfleto da greve, não hesitaram em confrontar os estudantes que ocupavam a faixa de rodagem, argumentando que não queriam problemas com a polícia e que a lei nos obrigava a ficar na berma da estrada. A associação de estudantes, nestes casos, alia-se silenciosamente ao sindicato: em anos anteriores, a mesma associação de estudantes posicionou-se contra o protesto antipropinas de 9 de Novembro de 2010, em Londres, e não se solidarizou com a agressão policial (causando ferimentos no crânio) a um estudante dentro da área residencial da universidade e a sua posterior detenção após um protesto antipropinas a 19 de Novembro de 2010. Tendo confrontado um dos sindicalistas relativamente à palhaçada do que se passava nesse piquete, foi-me dito que não havia condições para fazer mais e que nós aqui não somos assim tão militantes. Apesar de esta ter sido a primeira greve dos trabalhadores da universidade desde há sete anos e que reuniu pela primeira vez os três maiores sindicatos da função pública, tal não alterou minimamente o contexto político e a postura antidisruptiva de tais sindicatos.

A 3 de Dezembro de 2013 realizou-se, então, uma nova greve do ensino superior. Vários estudantes ocupam edifícios nas universidades de Birmingham, Sussex, Londres (Goldsmith), Edimburgo, Manchester, Liverpool, Sheffield, Warwick, Exeter e Ulster em solidariedade com os trabalhadores em greve. Voltei a juntar-me, em conjunto com um colectivo, ao piquete do UCU, Unite e Unison. Alguns estudantes decidiram escrever frases a giz na estrada e tentaram causar alguma dificuldade aos fura-greves, dançando, para isso, no meio da estrada. Fomos avisados novamente por um membro do UCU de que não podíamos interromper o trânsito. Um estudante acabou por confrontar o sindicalista em questão, perguntando-lhe se para ele as greves serviam para alguma coisa e se alguma vez o UCU iria fazer mais do que o espectáculo decadente dos panfletos e das palmas, encorajando os que buzinam a trabalhar em vez de os impedirem de o fazer. Além do mais, esta greve surgiu num momento em que se passou a saber pelo jornal da universidade de que centenas de trabalhadores, professores incluídos, estavam em regime de contratos de zero horas (contratos flexíveis onde só se recebe um salário quando se é contactado pelos serviços e sem direito a qualquer tipo de subsídio ou a um mínimo de horas garantidas por mês). Os representantes sindicais do UCU, Unite e Unison acharam, portanto, que a berma da estrada era o limite da greve contra a precarização geral em curso dos estudantes e profissionais das universidades.

 #Copsoffcampus [polícia fora do campus]: a vertente policial na gestão das universidades

A escalada repressiva que se vive nas universidades inglesas deverá, assim, ser contextualizada na reestruturação em marcha das universidades. Tornou-se evidente que a estratégia da coligação em fazer da universidade uma empresa lucrativa, onde a produção de conhecimento perde cada vez mais a sua autonomia, não poderá ser bem-sucedida sem que os aparelhos repressivos do Estado cooptem todos os envolvidos na universidade a aceitar as novas práticas de gestão. Essa repressão indicia contornos de autoritarismo que se manifestam na contenção de colectivos dissidentes dentro das universidades. Na universidade onde estudo não é possível reservar uma sala para debater questões políticas caso não esteja sob a alçada de alguma society. Não significa isto que elas não possam acontecer. Mas apenas que há todo um processo que passa por se declarar que se vai debater uma questão “não política”. É-nos negado, sem qualquer motivo razoável, um espaço dentro da universidade para se fazer actividades que fujam da lógica das societies. A associação de estudantes, para além de controlar todos os bares no campus e uma discoteca na cidade, não se mostra minimamente preocupada com o facto de não haver um único lugar para os estudantes conviverem e realizarem actividades fora do circuito dos pubs e das societies, algumas delas vistas como um extra vantajoso para se ter no CV. A par desta situação, há uma esquadra dentro da universidade, sendo auxiliada na vigilância do campus universitário por seguranças contratados pela universidade e por uma empresa privada. Em traços gerais, este microcosmo policial repercute-se pelas universidades inglesas.

Ora, é no seguimento da greve de 3 de Dezembro que se vem revelando com clareza a aliança entre o paradigma de gestão acima descrito das universidades e a repressão policial. O receio de que o rastilho de 2010 se propague novamente exigirá eficácia na supressão do menor sinal de conflito social alargado. É neste sentido que se deram as detenções de pelo menos 40 estudantes em apenas uma semana, incluindo a detenção do presidente da associação de estudantes da Universidade de Londres; o escândalo de um vídeo que mostrava o aliciamento de um estudante de Cambridge para colaborar com a polícia; a suspensão dos estudos de 5 estudantes na Universidade de Sussex; a proibição de qualquer manifestação no campus da Universidade de Londres e, por último, as agressões policiais a estudantes nas noites que se seguiram à greve de 3 de Dezembro. É nesta sequência de acontecimentos que a irrupção em Londres do #copsoffcampus, o nome do protesto convocado para o dia 11 de Dezembro, se tornou viral nas redes sociais, sendo organizadas manifestações em universidades um pouco por todo o país, com o apoio e solidariedade das associações de estudantes para com os estudantes agredidos pela polícia. Desde então, A.C.A.B (All cops are bastards [todos os polícias são filhos da puta]) tornou-se um grito que tenta ecoar para lá da luta na universidade, fazendo uma ligação inteligente com os motins de Agosto de 2011, quando cerca de 1000 estudantes protestaram no dia 11 nas ruas de Londres e o nome de Mark Duggan foi lembrado. O ponto alto da manifestação terá sido a invasão de uma área da Senate House – a administração da Universidade de Londres. No entanto, se, por um lado, essa ponte é mais do que desejável para que a revolta surja nas ruas, ela poderá comportar uma escalada repressiva, tendendo a representar os estudantes, a par dos chavs (“chungas”) e dos welfare scroungers (“subsídio-dependentes”), como o inimigo interno a abater. Ecoa aqui, certamente, o legado de Thatcher aquando da revolta dos mineiros em 84-85, mas também uma solidariedade imprevista dos estudantes para com o resto da comunidade e vice-versa.

Apesar desta agressiva gestão das universidades, colectivos de estudantes organizados à margem do National Union of Students (NUS) aprofundam contactos entre si e começam a formar uma rede que transcende o meio universitário e se relaciona, por exemplo, com diversas lutas sociais de acordo com a região da sua universidade. Não é de estranhar, portanto, que a gestão das universidades tenha vindo a mostrar sinais de que perseguirá judicialmente estudantes ao menor indício de contestação, ameaçando alunos com a suspensão dos seus estudos e, sobretudo, com a chantagem de que a universidade é uma intermediária dedicada do mundo empresarial, não tolerando mais protestos dentro do seu espaço que questionem o discurso do empreendedorismo e a subjectividade submissa do estudante endividado/cliente que, por ele, é produzida.

Os leitores portugueses que não percebam certas expressões usadas no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam algumas expressões correntes em Portugal
dispõem aqui de um Glossário de gíria e termos idiomáticos.

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