Passados dois milênios e meio da experiência ateniense, é momento de avançar na pauta, não de retroceder. A democracia tem de sair do governo e tomar a sociedade de assalto. Por Lucas Gomes

Da extrema-esquerda autonomista aos estatistas do bem estar e do bem viver, “democracia” aparece como um denominador comum na ponta da língua dos movimentos sociais atuais. Trata-se de um “significante vazio”? Algumas nuances se deixam ver através de palavras que costumam caracterizá-la: democracia participativa (onde o cidadão participa das ações do Estado e do sistema em funcionamento para melhorá-lo), democracia direta (onde os cidadãos são consultados e têm direito a voto nos principais temas do Estado, por meio de plebiscitos e afins), para dar dois exemplos principais. Há sempre à espreita uma tendência de retorno à democracia formal, o “sistema político” que enquadra e organiza a sociedade. Mas qual é a relação entre estas supostas formas da democracia e a experiência histórica da qual herdamos esta busca por liberdade?

Aristóteles, ideólogo da democracia

Como não haveria de ser diferente, quem primeiro analisou aquela intrigante experiência grega, a democracia, e a formalizou foi um dos maiores filósofos que viveu em Atenas, Aristóteles. Muito do que herdamos da noção e do conceito de democracia vem diretamente da tradição aristotélica de se pensar a política. Nos escritos do filósofo, que viveu entre 384 e 322 antes de Cristo, encontramos duas noções muito importantes para sua análise: a autarquia e o cidadão.

Autarquia significa autossuficiência: por um lado autogoverno e soberania política, por outro subsistência e autonomia econômica. De fato, o campo de saberes que os gregos nomeavam oikonomia se resumia essencialmente à administração de uma propriedade: as virtudes e conhecimentos básicos para que um chefe de família organizasse bem não só seus capitais (terras, moedas, escravos) mas também o trabalho daqueles que eram economicamente dependentes de suas propriedades (sua família e os agregados, que compunham a família no sentido antigo da palavra) [1]. Para Aristóteles, um homem pleno primeiramente devia saber governar-se, ser uma pessoa equilibrada e dependente apenas de si mesmo. Se um homem pode governar-se, tem a capacidade então de governar os outros: num primeiro momento as suas propriedades e seus dependentes e, num segundo momento, participando do governo da polis juntamente com os outros homens. De fato, para ser um bom homem, segundo Aristóteles, há que se saber governar bem (a si e principalmente aos outros, em especial sua família: mulheres, crianças e escravos). Já para participar do governo da polis há que se saber governar e ser governado por outros (essencialmente no âmbito da hierarquia militar, em que primeiro se é soldado para depois se tornar um general; e no âmbito político, em que os cargos são rotativos e as deliberações devem ser acatadas). Este é o bom cidadão: um homem não apenas bom em governar mas também em ser governado.

O cidadão é um animal político que pertence a uma polis, uma unidade política soberana do mundo grego (uma “cidade-Estado”). Se nos damos conta de que apenas indivíduos que não estão submetidos a outros são cidadãos, logo lembramos da característica amplamente conhecida a respeito do mundo grego: crianças e mulheres não são cidadãos, são indivíduos totalmente submetidos a um outro, incapazes de governar-se (que diremos então dos escravos!). O bem comum e a felicidade é o objetivo da política e apenas pelas mãos dos cidadãos, livres, é que se alcança este bem comum: o trabalho de escravos e artesãos é sempre em benefício de seu dono ou empregador, a única forma de garantir a comunidade deste bem comum maior é que esta comunidade seja governada pelos homens iguais entre si em seu exercício de autogoverno, de busca pela autarquia. Em termos formais, Aristóteles diz que o cidadão é aquele que “participa na justiça e pode exercer função pública” ou ainda alguém que pode “exercer função deliberativa ou judicial”. Diz ele que apenas nas democracias mais “extremadas” os artesãos e trabalhadores manuais chegam a obter este tipo de direito. Mais adiante no artigo entenderemos melhor o que ele quer dizer com isso.

Está incrustado no imaginário social atual essa figura do sujeito da democracia clássica: um homem barbado usando toga e circulando pela ágora, a praça pública das cidades gregas, conversando com seus pares sobre a política. Este homem independente por meio do trabalho de seus escravos é livre para gastar todo seu tempo neste ofício democrático que é ser um cidadão e opinar sobre tudo. O outro lado da moeda seria o escravo, o suposto negativo da democracia ateniense, a sustentação social necessária deste sistema tão puro e belo de se fazer a política em praça pública. É nesta fantasia idílica também que encontramos outro xodó dos diletantes da democracia: um senhor ateniense feio que vive vagabundeando pela ágora com perguntas estranhas, não muito diferentes das de alguns estrangeiros com ideias excêntricas que estavam frequentando a cidade por esses tempos, o século V antes de Cristo em Atenas (entre 500 e 400). Sócrates dizia praticar um bem para a cidade ao questionar seus concidadãos sobre seus modos de vida, suas formas de pensar a religião ou as virtudes. Só não gostava muito de participar de assembleias ou assumir responsabilidades administrativas, assuntos menores para ele. Mas, afinal, o que levou os gregos a abandonarem o profundo sono de um tempo pretérito “despolitizado”, um “antes da democracia”? Terá sido um intenso desejo popular de participar nas decisões do governo? Talvez a natureza de um povo inclinado à filosofia, ansioso por poder travar debates em ambientes públicos, ávido pela abertura de um espaço político comum onde fluiria o devir e o imprevisível da palavra humana.

A economia, estúpido!

Churchill disse certa vez que a democracia é o menos pior sistema de governo que já foi experimentado, como se algum dia um povo tivesse selecionado a democracia dentro de uma gama de opções, numa lista. Os atenienses e outros gregos arrancaram a democracia de suas elites, ninguém “escolheu” coisa alguma. O quê teria impulsado esse processo?

Grécia, séculos VII e VI (de 700 a 500 antes de Cristo): conflitos rurais em diversas comunidades gregas eram resolvidos por um mecanismo de colonização. Indivíduos das classes pobres eram enviados em missões marítimas para fundar novas aldeias, conformadas pelas pequenas novas propriedades que pertenceriam aos sem-terra das metrópoles. Dessa forma as cidades gregas desfaziam-se de partes descontentes de sua população e ainda geravam laços comerciais importantes. Não se deve pensar, no entanto, no modelo de criação de novos mercado como em uma economia capitalista: as sociedades antigas eram essencialmente rurais. A produção antiga, ou seja, o produto do trabalho dos homens na antiguidade, era em sua quase totalidade voltada para a subsistência daqueles que possuíam os meio de produção (a terra). Famílias de camponeses pobres viviam dos frutos de pequenas parcelas de terra, à mercê das desaventuras da natureza, expostos à fome e à miséria em função de um mal ano de colheita, enquanto grandes latifundiários produziam excedentes com os quais compravam novas terras, de preferência longe das que já possuíam para que um azar climático pesasse menos em seu bolso. Evitar os riscos era a regra tanto para ricos quanto para pobres num mundo arcaico onde a morte estava sempre à espreita pela inclemente mão da Natureza. No caso dos pobres isso queria dizer diversificar o cultivo, vincular-se com outros produtores, vender excedentes sempre que fosse possível. Para os ricos, evitar riscos era possuir terras em locais afastados entre si, conceder empréstimos para não ter de estocar enormes e pesadas quantidades de moedas, informar-se sobre os negócios e a economia da região.

Em Atenas, no entanto, os conflitos perduraram mesmo com o estabelecimento de colônias. Um legislador foi eleito no ano de 594, Sólon, responsável por instituir modificações nas leis a fim de acalmar e regular a sociedade. Entre as medidas tomadas estavam a criação de um tribunal popular independente dos tribunais aristocráticos, a incorporação de classes pobres na categoria de cidadãos, o cancelamento das dívidas existentes e a proibição da escravidão por dívidas. O que ocorria entre os camponeses ricos e pobres que gerava esta recorrente situação de “escravidão por dívidas”? Pequenos proprietários entravam em dívida com latifundiários em função de uma má colheita, da morte de um indivíduo produtivo em suas famílias, da necessidade de comprar novas sementes para reiniciar um cultivo, enfim, qualquer flutuação delicada bastava para causar um desastre econômico nas condições de pobreza de então. A escravidão por dívida era uma forma de pagá-la, mas é importante que entendamos a diferença entre este tipo de servidão e a escravidão tradicional: um escravo era uma mercadoria, fazia parte dos pertences do senhor/cidadão, coisa que legalmente hoje em dia é impensável. Tal como uma ferramenta, o dono o utilizava para trabalhar e obter assim o seu excedente, a parcela da produção que não seria necessária para a subsistência e que seria vendida (ou emprestada), desta forma acumulando um capital. Já no sistema da escravidão por dívidas encontramos algumas diferentes modalidades: o chefe de família endividado podia, por exemplo, entregar um filho seu para o latifundiário para que trabalhasse em suas terras, amortizando a dívida por meio de seu trabalho (ou seja, pagando a dívida aos poucos através da mão-de-obra do filho). O chefe de família podia até entregar sua filha, que não trabalharia as terras mas prestaria favores sexuais. No caso mais extremo o latifundiário, por meio dos tribunais civis da polis, confiscava as terras da família camponesa endividada e a submetia a uma servidão na qual todo o excedente produzido era tomado como pagamento da dívida.

Não ter direitos hoje em dia já é coisa complicada, imaginem vocês como seria isso então no mundo antigo! A garantia dos direitos políticos estabelecidos por Sólon servia para impedir a exploração dos camponeses pelas classes dominantes da nobreza ateniense. Exploração essa que se dava tanto por meio da rapina de terras como por meio do trabalho submetido (escravidão por dívidas), mecanismo jurídico pelo qual o latifundiário prendia o camponês à sua terra (mão-de-obra garantida para seus meios de produção) e se apoderava de uma grande fração de seu trabalho, quando não sua totalidade (pode-se chamá-lo também de mecanismo “extra-econômico”, para diferenciá-lo do método puramente econômico que é a apoderamento por meio da mais-valia do sistema capitalista). Vemos aqui como antes de Sólon as classes dominantes 1) tomavam os meios de produção das classes baixas, 2) exploravam o trabalho das classes baixas extraindo o excedente de sua produção. Isto, claro, é um modelo e não foi da noite para o dia que as coisas mudaram. Muitas décadas de inquietude social passaram, conflitos entre as próprias famílias aristocráticas dominantes dentro das quais existiam partidários democratas. Um fator determinante na inserção de camadas pobres no corpo de cidadãos políticos de Atenas foi a necessidade militar. No passado distante do mundo grego, encontrado nas poesias de Homero, a guerra era travada por cavaleiros nobres, os únicos capazes de pagar por uma boa armadura e boas armas e que além disso haviam passado grande parte de sua vida aprendendo a guerrear. Mas isso era no tempo da idade do bronze, de pequenas cidades e pequenos exércitos. Atenas vivia agora a iminência de invasão do maior império da região, os persas. Para combatê-los foi necessário criar uma poderosa marinha e para tripular um navio de guerra eram necessários remadores, saídos diretamente das famílias mais pobres de Atenas. Ao depender destes braços para ganhar suas guerras a aristocracia de Atenas teve de conceder direitos. Após ganhar a guerra contra os persas, Atenas entra em sua época clássica, seus 50 anos de auge cultural, político, econômico e militar.

Em meio a esta série de eventos históricos, o quê ocorreu com aquela nova classe de cidadãos, aqueles que em gerações anteriores se encontravam submetidos por dívidas e agora eram plenos de direitos e os defendiam das investidas oligárquicas? Estes cidadãos se tornaram mão-de-obra livre, isto é, não mais acorrentados a um meio de produção alheio (as terras de um senhor). Podiam agora trabalhar livremente, seja ajudando na unidade de produção de sua família, a pequena propriedade rural, seja trabalhando sazonalmente como assalariados em grandes propriedades (o modo de produção escravista, comum às grandes propriedades rurais, demandava mão-de-obra livre para os períodos de maior intensidade de trabalho, uma vez que a produção agrícola tem variação sazonal de volume de trabalho. Manter escravos ociosos por meses não era uma opção rentável e por isso era preferível completar a força de trabalho por meio de trabalhadores assalariados, quando necessário).

Além dos trabalhos rurais, na época do auge de Atenas a vida urbana já se encontrava bastante desenvolvida: entre os trabalhadores urbanos encontramos artesãos, pequenos prestadores de serviços, comerciantes, estivadores, funcionários do Estado, a polícia “anti-distúrbios” (que era composta por arqueiros escitas, estrangeiros), para darmos alguns exemplos. O comércio todo era efetuado por empreendimentos privados, financiados por pequenos banqueiros profissionais independentes ou por agentes financeiros trabalhando para aristocratas (que o negavam enfaticamente, sendo considerados ambos, o comércio e a banca, um tipo de ocupação econômica pouco digna para um nobre. “Buscar a riqueza” era coisa de gente mesquinha, gentalha). Existiam inclusive seguros contras acidentes marítimos, um tipo de empréstimo financeiro muito comum na época antiga. A grande maioria dos serviços e trabalhos executados na cidade era feita igualmente por escravos e cidadãos livres, sem haver um tipo específico de trabalho próprio para escravos e outros próprios para homens livres: a vida de um escravo artesão de muita habilidade ou de um escravo professor certamente era muito mais tranquila e segura do que a de um cidadão livre sem propriedades ou sem vínculos familiares, sem habilidades manuais ou intelectuais específicas que lhe garantissem um trabalho. Isso já era assim desde os tempos de Odisseu [2].

O governo democrático

A luta pela democracia ateniense não era ainda a expressão de um ideário universalista, representava sim um momento bastante experimental e inovador quando uma classe social abandonava uma situação de opressão absoluta e deixava de ter sua mão-de-obra possuída completamente por outra. Os proprietários desta mão-de-obra, agora livres, se mobilizam (não sem alianças com figuras importantes advindas de famílias aristocráticas e partidárias da democracia) e instauram diversas medidas legislativas, judiciárias e executivas, com as metas de frear as ameaças econômicas de retorno à servidão e obrigar os grandes capitais, produtivos ou não, a financiarem os projetos públicos da cidade (figura jurídica chamada “liturgia”): patrocínio e produção compulsória de peças de teatro nos festivais religiosos e cívicos, a construção e comando de navios de guerra, a construção de grandes templos e edifícios públicos, a taxação sobre a riqueza que ajudaria a pagar salários aos presentes em assembleias, tribunais e para os cargos rotativos na administração e governo público. Esta última medida era uma forma direta de financiar a participação integral das classes pobres que certamente passariam fome ao deixar de trabalhar sua terra (ou ofício manual) para participar da vida política da cidade, tal era o grau de subsistência familiar.

As medidas adotadas também impulsionavam o investimento “estatal” [3], por exemplo: 1) gerando empregos na cidade para uma classe de trabalhadores artesãos, tanto locais quanto vindos de diversas partes da Grécia, para construir estátuas, templos, apresentações musicais, navios de guerra, cerâmicas, etc; 2) efetuando melhorias de infraestrutura no porto para atrair mais comerciantes, conseguir melhores negócios para seus cidadãos e uma maior oferta de bens na cidade (a concepção do consumo como uma virtude social pode ser encontrada em Péricles, ao menos posta em sua boca na Oração Fúnebre relatada por Tucídides [4]). Os carregamentos de itens de luxo, os vinhos das melhores regiões vinícolas, os incensos e perfumes do Oriente certamente compunham um mercado para poucos. No entanto, o grosso do que se comerciava eram grãos e isso sim preocupava as instâncias democráticas, que criavam leis específicas para seu mercado, instituíam medidas e pesos e estabeleciam uma moeda a fim de garantir que os bens entrassem na cidade e abastecessem a população quando a produção interna não era suficiente ou quando os preços exteriores eram vantajosos para os cidadãos. Não estamos falando aqui de um mundo globalizado interdependente, onde o aumento do preço de uma commoditie (por exemplo, o petróleo) afeta toda a cadeia de produção e logística das mercadorias, modificando seu preço. No mundo antigo mediterrânico uma crise alimentar no sul da Itália podia passar sem que ninguém soubesse dela na Grécia, os preços permaneciam praticamente inalterados pelas flutuações pouco importantes de mercado, não havia bolsas de comércio, apenas mercados físicos onde as notícias e novidades eram passadas no boca-a-boca. Se faltava comida, as pessoas passavam fome e morriam, isso queria dizer menos soldados no exército, menos mão-de-obra, maior pobreza e fragilidade geral da comunidade. Por fim, vale também mencionar uma outra medida democrática desenvolvida pelos atenienses, o divertido mecanismo da antidosis: se tratava de um processo jurídico pelo qual um grande proprietário “acusava” outro de ser mais rico que ele próprio e assim repassar os financiamentos compulsórios para ele em seu lugar; tais petições jurídicas eram frequentes. Interessante forma de inibir uma “consciência de classe” aristocrática, algo assim se pratica hoje em dia, mas não com os ricos, com os trabalhadores.

Vemos por meio destes exemplos que o caso da democracia ateniense, longe de ser a expressão de uma ideologia universalista que tivesse por horizonte a emancipação de todos os seres humanos produtores de valor, se baseou na inclusão de amplas camadas populares das classes baixas no corpo político da cidade, libertando-as dos mecanismos extra-econômicos pelos quais a aristocracia explorava sua mão-de-obra. O tema da escravidão é deixado quase que intocado, mas é necessário um esforço de nossa parte para compreender que a sociedade antiga não pôde nem sequer sonhar com um mundo sem escravos: para eles um mundo vivido entre desiguais naturalmente entranhava a existência de submetidos e submissores. As próprias revoltas de escravos na antiguidade em nenhum momento pleitearam a reorganização social para o fim da escravidão, alguns líderes simplesmente se tornavam os novos senhores com seus próprios escravos. O que fica patente no processo ateniense é a democracia como combate à exploração da mão-de-obra das classes baixas pela classe de grandes proprietários. Isso incorreu em adaptações do sistema legal e político do mundo grego, impedindo que os ricos se apoderassem dos produtos do trabalho das classes baixas, e também no campo governamental, criando mecanismos de taxação e obrigando os grandes capitais a investirem no bem estar comum.

A má democracia, ontem e hoje

Quem terá dúvidas então com relação às ideias que expressavam Aristóteles, Platão e outros filósofos com relação ao governo dos muitos contra o governo dos poucos? Platão se declara abertamente inimigo da democracia: que governem os que são bons em governar, que lutem os que são bons em lutar e que trabalhem para as classes dominantes os que não são bons em nada. Aristóteles por sua vez faz o retrato da democracia “limpinha”, como se a boa democracia fosse feita apenas com um corpo de cidadãos proprietários: frequentadores dos Jardins e de Ipanema com diplomas universitários, que pudessem passar suas tardes na ágora trocando comentários sobre o Bolsa Família, o congresso nacional ou os escandalosos impostos. Não lhe parecia bem a ideia de um cidadão que trabalhasse para outra pessoa, um cidadão sem meios privados de produção, alguém que necessitasse inventar seu próprio trabalho, um trabalhador. A autarquia é uma virtude que em realidade nunca foi alcançada no mundo antigo, nem no nível das unidades de produção nem no nível das grandes comunidades políticas. Trata-se de uma virtude que se traduz melhor como uma forma de atacar a dignidade dos que não possuem seus próprios meios de produção, obrigando-os a submeter-se a unidades produtivas supostamente capazes de autossustentar-se (os comerciantes, como encarnações de um poder econômico estrangeiro, ofereciam uma ameaça às elites conservadoras ao introduzirem novas práticas, novas mercadorias e novos preços: criavam assim uma alternativa de consumo para as classes menos capazes de produzir. Os comerciantes não costumavam ser pessoas endinheiradas e eram economicamente bastante inferiores aos aristocratas, estes os menosprezavam pois sua prática escancarava as vantagens gerais de um mercado que não fosse reduzido à produção “nacional”, autossuficiente, “autárquica”).

Por um certo ângulo, os movimentos de ocupação de espaço público impulsados pelos Indignados espanhóis, Occupy e afins acabou se configurando como um avesso da versão aristotélica de democracia: ao invés de ocuparem a ágora “para fazer política” por estarem livres da necessidade de trabalhar, puderam juntar-se em tantos lá pois os grandes gestores do capital lhes roubaram a própria possibilidade de trabalhar, gerando alta taxa de desemprego entre os jovens. Possuíam o tempo livre para fixar suas barracas em defesa dos espaços públicos porque não tinham um trabalho para defender (e seguem não tendo, haja em vista os impasses políticos e a austeridade, seja ela imposta pela Troika ou pela economia nacionalista de esquerda). Chegaram a criar modelos de sistemas assemblearios altamente complexos, os quais parecem possíveis de ser aplicados somente em sociedades compostas exclusivamente de jovens desempregados. É como se buscassem recriar um “sistema político” democrático que fosse capaz de resolver os grandes problemas da sociedade por meio de sua genial configuração formal [5].

Passados dois milênios e meio da experiência ateniense, é momento de avançar na pauta, não de retroceder. Ignorar os aspectos econômicos que impulsaram a luta democrática em Atenas e no resto da Grécia é morrer na praia e focar apenas na consigna dos “99%” é esquecer-se dos mecanismos que permitem o acúmulo da desigualdade. O processo que desembocou no capitalismo global foi o mesmo que permitiu o surgimento das ideias de universalismo, de internacionalismo, de horizontalidade: a existência de uma classe trabalhadora responsável pela criação de valor. A luta pela democracia hoje não pode ficar no nível formal, no nível da “boa democracia”, ela tem de partir para novos horizontes, radicalizar para insistir no que ainda não foi realizado. A má democracia é a que pede demais, aquela que se pretende “extremada”, a democracia dos que não querem submeter-se: democracia nos bairros, democracia nas escolas, democracia nos hospitais, democracia nos locais de trabalho. A democracia tem de sair do governo e tomar a sociedade de assalto, chegar a lugares onde ainda não chegou, não pode ficar presa nos vetustos edifícios onde (supostamente) já habita há anos. Se os gregos lutavam para não terem seu trabalho submetido às classes de proprietários, hoje nós devemos lutar para que não tenhamos que nos submeter a ninguém para trabalhar, para construir nossos meios de vida, para fruir dos bens que a sociedade criou, que os meios de produção e locais de trabalho não tenham donos para os quais tenhamos que pedir “por favor” ou “com licença” ao buscar o sustento de nossas vidas, ao transportar-nos pela cidade, ao buscarmos serviços médicos ou dedicar-nos aos estudos. Lutar para que o trabalho seja livre e democrático, sem relações verticais de mando, onde todos e todas tenham igualdade de direitos, de responsabilidades e de votos, tanto os que utilizam os serviços e bens públicos quanto os que trabalham neles; que estas prerrogativas de igualdade não sirvam apenas para “grandes polêmicas” do governo do Estado, mas sim para todos os âmbitos da vida social onde o coletivo é implicado. A pergunta então é a seguinte: iremos todos nos apertar para ocupar em multidão uma praça, ou o Congresso Nacional, enquanto a democracia nos espera em tantos outros lugares? Quem tem medo de um “excesso” de democracia? Miremo-nos no belo exemplo dos helenos, que acordaram de seu sono não para criar um “sistema político” ideal onde cada um dava o seu pitaco nos temas da semana, mas para dobrar uma forma de economia que lhes roubava seu trabalho e submetia sua autonomia ao poder das classes detentoras dos meios de produção.

Notas

[1] A ciência econômica só ganha os contornos do que hoje conhecemos por economia a partir de Adam Smith, século XVIII, e mais adiante com Alfred Marshal, final do século XIX. Antes disso é um misto entre moral, ética e economia doméstica.

[2] Odisseia, 11.489-490 , onde Aquiles, já morto, diz a Odisseu que preferiria ser um pobretão vivo a ser o rei do mundo dos mortos. Parece que nem a escravidão era pior do que estar completamente sem garantias no mundo, sem nem ter onde ou com quê trabalhar: o atual trabalhador precarizado que precisa inventar seu trabalho.

[3] Como na Grécia antiga o que chamamos de “Estado” não chegava a configurar uma instituição separada do corpo de cidadãos devemos ter cuidado ao usar esta terminologia. Aqui o importante é ter a ideia de um investimento promovido pelo corpo coletivo e deliberativo de cidadãos, não por meio de iniciativas privadas como no caso das liturgias compulsórias mencionadas anteriormente no texto.

[4] “Para amenizar o trabalho, procuramos muitos recreios para a alma; instituímos jogos e festas que se sucedem a cada ano; e diversões que diariamente nos proporcionam deleite e diminuem a tristeza. A grandeza e a importância da nossa cidade atraem os tesouros de outras terras, de modo que não só desfrutamos dos nossos produtos como daqueles do universo inteiro.” Historia do Peloponeso II.38

[5] http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=23XJOiPU5Jk

Livros de referência bibliográfica sobre economia antiga

Moses Finley, “A Economia Antiga” (1973)
Ellen Meiksins Wood, “Democracia contra Capitalismo” (1995)
Neville Morley, “Trade in classical antiquity” (2007)
G.E.M de Sainte Croix, “La lucha de clases en el mundo griego antiguo” (1981)
Para o texto Aristotélico, ver especialmente “Política”, livro 3, capítulos I a III.

A primeira imagem que ilustra o artigo é de Rembrandt (1606-1669). As duas subsequentes são de Antoine Wiertz (1806-1865). As três últimas e a do destaque são de Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1751-1828)

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