Por Thiago Matiolli

Em um domingo (26 de Janeiro de 2014) que teimava em não terminar, pensei: “está no inferno, abraça o capeta”. E fui assistir à reportagem do Fantástico sobre os trens. Tive uma aula, pasmem, de como não fazer jornalismo, de como desviar o assunto, ao ocultar mostrando, como diria Pierre Bourdieu em seu livro Sobre a Televisão.

1. Monta-se um bloco em que se trata de um rapaz que vive em um avião e o estado de saúde do ex-motorista Michael Schumacher, apontando para a descontinuidade temática, característica da temporalidade do telejornalismo, na qual “a ênfase é posta no que é recente e se estabelece com o esquecimento do público em um ‘jogo de previsão amnésica’. Neste jogo, constata-se a produção intermitente de diagnósticos políticos rasteiros, que não serão questionados e serão esquecidos no processo descontínuo de apresentação de notícias, que intercalam calamidades, com assuntos políticos, esportes, temas econômicos e assim por diante. Todos esses mecanismos concorrem para o efeito global de despolitização” (Matiolli, pg. 29-30, 2013).


2. O grande problema dos transportes públicos é que o país perde em produtividade, pois os trabalhadores chegam cansados no trabalho e rendem menos. O Brasil com melhores transportes seria um país mais rico. Quer dizer, não importa a qualidade de vida do trabalhador, se não o quanto as empresas que deixam de lucrar com ele, enquanto os lucros extraídos pelas empresas de trem não são questionados, frente aos serviços prestados. Grande parte desse lucro vem de recursos públicos.

3. Entrevistam-se engenheiros, com argumentos e propostas tecnicistas, e o “sociólogo” Demétrio Mangnoli, para dizer o que os repórteres querem que seja dito, tudo isso bastante legitimado pela autoridade intelectual de cada um dos entrevistados. Questiona-se a lotação e propõe-se controle para a entrada dos passageiros nos vagões de modo a não ultrapassar o limite de cada vagão. Mas não se questionam os contratos entre as empresas e os governos para saber qual é a forma de financiamento e o quanto a superlotação é funcional às empresas.

4. A partir de imagens e depoimentos, bestializam-se os passageiros e os comportamentos ultrajantes que são levados a tomar, como empurrar e se acotovelar para conseguir um lugar para sentar. Essa tentativa de redução do comportamento humano ao de um animal desconsidera — oculta mostrando novamente — que esse tipo de comportamento não é instintivo, mas fruto da construção social de uma malha de transporte público corrupta, precária e que criminaliza a pobreza.

5. Em decorrência disso e reiterado por depoimentos selecionados, senão montados, culpabilizam-se os indivíduos por sua própria situação degradante nos trens. Quando questionada sobre o que é preciso melhorar, uma mulher responde que é a educação dos indivíduos. Mas, como cobrar educação de uma pessoa extremamente extenuada física e psicologicamente? Como cobrar a civilidade que é possível demonstrar nos espaços controlados dos shopping centers, quando conseguir um lugar para sentar não é um privilégio, mas uma possibilidade de descansar, tirando uma soneca durante a viagem.

6. Por fim, fecha-se o bloco com matéria sobre manifestações no Rio e em São Paulo, quando autoridades são convidadas a falar, em particular o prefeito Fernando Haddad, da cidade de São Paulo, e o governador do estado homônimo, Geraldo Alckmin. Solenemente esquecidos na matéria anterior, em que houve toda uma costura para que os estado e as empresas de transporte sejam desresponsabilizadas pela situação retratada.

Como no caso das manifestações das jornadas de junho, no ano passado, em que a cobertura se tornou algo inelutável para os meios de comunicação, em particular nos veículos da empresa de Roberto Marinho, em uma semana trágica dos serviços de transportes ferroviários no Rio de Janeiro a matéria que já estava sendo produzida — ao que parece, pois foram um mês gravando-a, segundo o apresentador — pareceu cair como uma luva para o programa de domingo.

Os veículos de comunicação “fabricam acontecimentos, representações sociais construídas segundo os critérios de seleção dos jornalistas, das premissas ideológicas dos órgãos em que trabalham e da pressão pelo sucesso comercial. Neste processo de fabricação dos acontecimentos, os jornalistas acabam por reforçar interpretações e estereótipos, e mobilizar pré-julgamentos, redobrando-os (Champagne, 1999)” (id, pg. 28).

Referências

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. , 1997.
MATIOLLI, Thiago Oliveira Lima. Metáforas da Cidade Partida: a divisão territorial do Rio de Janeiro nas eleições municipais de 2008. Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2013

1 COMENTÁRIO

  1. Muito boa reflexão, e um convite a consumirmos informação de maneira mais crítica, de forma a perceber que a informação dificilmente vem descolada de opinião. E toda a opinião é parcial e reflete interesses.

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