Por Paulo Henrique Schlickmann
Para iniciar, quero destacar as questões centrais que nortearão a exposição teórica deste ensaio e que serão postas em debate no sentido de tentar aperfeiçoar uma resposta às mesmas. 1 – De que modo à educação, num aspecto geral, consegue no interior da sociedade promover transformações importantes? 2 – Até que ponto é possível confiar na educação como meio para a humanização das atitudes do homem? Ambas as questões não se sobrepõem nem possuem grau de importância maior uma do que a outra. Além disso, ao longo da análise não tentarei responde-las, mas situá-las dentro do contexto teórico que entendo por materialista histórico.
A minha base de análise teórica para trabalhar e fundamentar estas duas questões é apenas o materialismo. Reconheço que outras matrizes explicativas, que chegarão a outras conclusões, mas aqui estarei trabalhando com uma das leituras possíveis de Marx. É possível em Foucault, nos ideólogos liberais e nos fenomenológicos contestar tais análises, pois eles tendem para outra visão da realidade. Entretanto, utilizo esse aporte teórico, pois entendo como o mais eficiente no sentido de não perder de vista o caráter indissociável entre teoria e prática nas análises de qualquer fenômeno social. Também resta salientar que se busca a essência da educação como movimento concreto e histórico, por isso o materialismo parece contribuir para tal.
O ponto de partida das análises de Marx, como um hegeliano de esquerda, seriam duas questões centrais desenvolvidas em seu trabalho dissertativo no Ginásio de Trèves, na Alemanha. A primeira diz respeito à felicidade humana, ou seja, “[…] a melhor profissão deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de trabalhar pela felicidade do maior número de pessoas, isto é, pela humanidade”. A segunda é que “[…] existem obstáculos e dificuldades que fazem com que a vida das pessoas se desenvolva em parte sem que elas tenham condições de determiná-las” (Konder, 2011, p.17). É importante perceber que estas questões perpassam toda obra de Marx, partindo de um caráter idealista e ganhando corpo concreto ao longo das suas análises e construções teóricas.
No fim das contas, Marx conclui que a verdadeira felicidade é construída historicamente e que existem determinações sociais que independem da vontade do homem. Assim, imediatamente, independe da vontade individual a felicidade ou a construção da humanidade. Além disso, no capitalismo, a humanidade é transformada em coisa, em mercadorias! Por outro lado, a construção da humanidade e o rompimento com as determinações sociais estão, para Marx, no trabalho consciente.
Esse aspecto não garante que os desafios serão eliminados; os desafios são constituídos e alterados ao longo do tempo. Nota-se, sim, o surgimento de desafios mais complexos. É ingênuo pensar que a sociedade vai ser como nós queremos em qualquer estágio que for. Devemos refletir, baseados no materialismo, qual a realidade que nos cerca e quais os movimentos estratégicos são possíveis de desempenhar? Não podemos nos colocar em desafios impossíveis do tipo “dominar a natureza”.
Mas o que a educação tem a ver com isso? Como visualizo a questão da transformação humana pela educação? Apesar das determinações, um dos pontos cruciais no materialismo é a possibilidade da transformação da sociedade através do homem consciente. Nesse meio, são os aspectos da produção real da vida que possuem maior grau de efetividade nas transformações; por isso a categoria trabalho é o universal em movimento para Marx. Desse modo, numa visão direta, a educação tornar-se-ia subalterna.
O que importa no trabalho para o capitalista, por exemplo, é a possibilidade de enriquecer; para o empregado, é o “sacrifício” para sobreviver. Entretanto, é positivo perceber o avanço da categoria trabalho para além do capitalismo, ou seja, trabalho não é somente assalariado, trabalho é atividade humana, exclusivamente humana. Quem atenta para isso é Engels, em Dialética da Natureza. Dessa forma, a educação, para o materialismo, nada mais é do que atividade humana, ou seja, trabalho. Nesse sentido, como atividade de produção real da vida, a educação perde aquele caráter subalterno. Filosoficamente é isso! A educação como trabalho, como atividade da produção real do homem.
Sendo assim, abre-se um pressuposto geral importante, pois se assimila a educação potencialmente com um dos meios para humanizar o homem; contudo, não se pode perder de vista as determinações, o caráter restrito da ação individual e o vazio da categoria humanidade. Primeiramente não conseguiremos, de imediato, romper com a realidade inerente da “escola como preparação para o emprego”. Está no seio do estágio atual da história, o caráter “escola para o emprego” e não vai ser a educação ou a escola que hoje circularão fora da lógica do capital.
Sobre o caráter individualista das ações, é comum os liberais atribuírem ao marxismo a negação do indivíduo. Trata-se de um equívoco! A classe é em última instância interação de indivíduos, o que para Marx resulta em melhores condições de enfrentar problemas reais. O professor isolado individualmente dificilmente obterá grandes avanços na escola e na educação. Parece não ser algo fácil a articulação conjunta na prática de professores, mas é por aí que se abrem maiores possibilidades.
Contudo, acho que devemos prestar atenção aos nossos objetivos e pretensões, sobretudo no sentido de análise abstrata da humanidade, que assim como a liberdade, a democracia e a felicidade não estão postas na sociedade para serem aproveitadas (progresso técnico e a natureza). São categorias vagas, que adquirem conteúdo justamente com o avançar histórico e com a crítica negativa dessas categorias. Há, porém, uma humanidade abstrata estabelecida, mas não aquela que almejamos, nem vamos à escola construir a humanidade que desejamos! Isso seria forçar a barra da história.
Trata-se, portanto, num caráter concreto, da humanidade possível dentro da realidade dada. Por isso, Althusser desenvolve que o discurso baseado na humanidade abstrata não passa de discurso inflamado, que comove as massas, porém não é real, não é visível. Há um fosso entre o discurso político da humanidade e a humanidade concreta, com suas falhas, seus problemas e suas mazelas. Isso ocorre do mesmo modo na felicidade, na liberdade e na democracia.
Nesse sentido, não vejo um sentido linear para a história da humanidade, não vejo a educação como proposta para construção única de uma sociedade para o futuro. Também não entendo, como nos marxistas de outrora, “que viam uma educação para o mundo do não trabalho”. Ora! Educação é trabalho. Resta que hoje parte deste trabalho também é apropriação privada. A questão seria trabalhar para uma educação voltada para o real social concreto no presente, no viés de contribuir para o progresso, pois é somente no sentido da construção progressiva da sociedade que a humanidade vai se afirmando. Não vejo como um trabalho simples. Poderemos não ver nossos resultados.
Está aí, portanto, uma grande questão das ciências humanas baseadas no materialismo, que é atribuir nas costas dos homens o compromisso de “transformar”, “construir” e tomar consciência da sua sociedade. Quando assumimos esse compromisso – partir do que temos para transformar – esperamos “viver” nossas construções. Isso parece ser a carga de um pesado fardo, ou seja, a eterna construção de castelos de areia.
Referências
ALTHUSSER, L. Ler O Capital. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
ENGELS, F. A Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
KONDER, L. Marx: Vida e Obra. Paz e Terra, 7ª ed., 2011.
MARX, K. O Capital. Editora Abril, 1986.
MARX, K. A Ideologia Alemã. Boitempo editorial, 2011.
MARX, K. Critica ao Programa de Gotha. Boitempo editorial, 2012.
Nota sobre o autor
Mestre em Geografia. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela UFSC, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico (CNPQ).
“Apesar das determinações, um dos pontos cruciais no materialismo é a possibilidade da transformação da sociedade através do homem consciente.”
Seria aqui o materialismo a instrumentalizar uma humanidade hipostasiada a fim de atingir seus próprios objetivos lógicos-conceituais?
Fica a impressão de que “conciência” passa a significar “utilidade”, que a razão tem uma parada final e corre suave por sobre os trilhos.
Realmente Lucas, como autor do texto, concordo com você que o ATRAVÉS está muito mal colocado. Ali pode designar a consciência como instrumento, como útil ou meio para fins. Foi um equívoco. Apesar de entender que no capitalismo o homem é utilizado como meio para fins, justamente com sua a “consciência fetichizada da realidade”. Em determinados ciclos e fases de acumulação o capital suavemente transita pelos seus trilhos.
Contudo, corrigindo o equívoco, o que quero dizer, é que para o materialismo o homem consciente é potencial transformador da sua realidade, apesar das determinações. Potencial, por não ser efetivo no imediato! (para o materialismo).
Paulo,
eu devo confessar que não entendi exatamente o argumento do teu artigo. Com o espírito mais malicioso eu até diria que você não usou uma base materialista para analisar a educação, mas sim utilizou o tema da educação para falar sobre o materialismo.
Acho que trazer, por exemplo, a questão do que é a felicidade para Marx é de uma irrelevância enorme, um conceito filosófico que quase nada acrescenta à obra do autor e que quase não é desenvolvida por ele. Uma curiosidade apenas.
Ao falar sobre educação e trabalho, acho que o debate poderia seguir ou a respeito das relações de trabalho inerentes à educação (professores, organização burocrática, etc); ou tematizar a pedagogia (conteúdos, relação professores-alunos, etc), que me parece ser por onde você preferiu abordar, inclusive levando em conta que muito do pensamento “de esquerda” não-marxista (foucaultiano principalmente) incide justamente aí. Mas me pareceu também que o seu argumento termina indicando a proposta de forma demasiado conceitual (“progresso”), em dar um mínimo de detalhamento a respeito de como seria essa pedagogia, como ela se relacionaria com a educação como trabalho (trabalho na escola ou mercado de trabalho? ensino técnico ou ensino crítico? etc).
Por fim, com relação à consciência. Não creio que Marx estaria em desacordo com os fenomenologistas no que diz respeito a ser a consciência sempre consciência de ALGO. Ao hipostasiarmos a consciência em uma qualidade absoluta do homem não estamos tão distantes de algum tipo de budismo. Esse é o risco de um discurso que vê consciência apenas naqueles que estão de acordo com suas premissas.
Também não entendi. A impressão que me passou é de que no texto o mundo material é visto como a prisão do espírito (um neo-neo-platonismo?).
Não sou marxista, mas reconheço que a grande sacada de Marx foi perceber: que a consciência é sempre o ser consciente (ver Ideologia Alemã – Cap I); que o ser (a matéria) é atividade, praxis, processo real de vida (ver Ideologia Alemã); que a idéia de uma “vanguarda educadora” é ilusória e reproduz catastroficamente a sociedade de classes (ver Teses sobre Feuerbach, tese 3); que as ilusões são de condições materiais que necessitam de ilusões e que, portanto, a verdadeira libertação é a transformação dessas condições materiais pelos próprios “iludidos” (ver Teses sobre Feuerbach, A Sagrada Família e Ideologia Alemã), e não pelo ativismo de pretensos “iluminados” (idem).
Também não entendi a referência ao utilitarismo de Jeremy Bentham (o princípio quantitativo de felicidade, que busca legitimar a exploração/dominação defendendo que ela deve ser a mínima possível, ao invés de ser abolida) da fase liberal-burguesa do Jovem Marx.
Presados, cabem alguns esclarecimentos, sobretudo no sentido de algumas coisas que eu não coloco no texto, p. ex.: Utilitarismo de Benthan; e debate sobre “felicidade”. A felicidade não é tratada no texto, pois adentra apenas como um detalhe do primeiro trabalho humanista de MARX; que no fim, deixa de ser humanista. Convenhamos que em O Capital não há humanismo.
Por outro lado, não venho propor uma nova educação. Muito pelo contrário, a escola por si, não vai libertar os indivíduos (E isso está no texto). Não acredito na escola nova, nem na escola crítica. Nem que apenas alterações de métodos de ensino solucionarão o problema da escola.
Já em: “matéria como prisão” e a “consciência para aqueles que estão de acordo com minhas premissas”, são problemas reais de algumas interpretações marxistas, mas não acho ser o caso aqui! Temos que saber também, fazer crítica ao mobilismo. Não é sempre movimento, movimento e movimento. A questão é dialética no sentido “prisão pela matéria (relações sociais)” X “movimento”. Por isso possibilidades e impossibilidades da ação real concreta.
Sobre o progresso, nos Grundrisse e no Capital é claro o posicionamento de Marx, pela superação do capitalismo através dos avanços da sociedade. Pelos avanços materiais, sociais e culturais da sociedade vamos aprendendo a solucionar nossos problemas. Não solucionar do jeito que eu quero e acho que deve ser, são múltiplas as possibilidades. Assim, vejo que não é no atraso que estará a solução para os problemas de hoje, mas no progresso, no aperfeiçoamento da nossas interpretações e visões de mundo!!!!
A princípio entendo assim! E entendo como importante as colocações dos colegas!
Foi, efetivamente, um pesado fardo ler o seu breve texto. Nem as exclamações que compareceram no decorrer do artigo conseguiram acordar aos estudantes das fotos e aos que tiveram a coragem de encarar o seu escrito.
Um artigo que ignora a questão da produção de novas gerações de trabalhadores – o principal papel atribuído a educação pelo sistema capitalista – e que foge dos dados como o diabo da cruz – já que é “teórico”, apenas e tão só, não conseguindo arranhar nenhum aspecto de uma experiência cotidiana que abarca hoje três milhões de professores no Brasil e milhões mais ainda de estudantes – deveria provocar indignação. Mas não. Sono, talvez, é o efeito mais direto.
Pátios, corredores, ruas das cidades, lans houses e celulares conectados à internet – e outras formas várias de treinamento para máquinas laborais. Além, é claro, das tentativas de conhecimento, de socialização, de disciplinarização e de domesticação dos corpos e mentes nas salas de aula. Por aí, quem sabe, deve passar hoje uma análise um pouco mais próxima do que testemunhamos hoje na educação.
Acho, caro Exílio Mondrian, que deves continuar desconsiderando o que eu escrevi e dedicar tempo seguindo suas próprias recomendações, elaborando você aquela análise. Você desaprova o texto com boas sugestões, aponta o que eu deveria ter feito, mas que não constavam em meus objetivos. Desse modo, apesar de boas sugestões, não há nada de concreto escrito NO COMENTÁRIO.
Paulo, li e gostei do seu esforço. Acontece que, há pouco tempo, caiu-me nas mãos o livro “Psicologia pedagógica” de L.S. Vigotski. O livro foi publicado em 1926. Nele, Vigotski construiu uma vigorosa resposta que contempla as questões iniciais que você se propôs.