Por Grouxo Marxista e Fagner Enrique
Goiânia enfrenta uma situação inédita na luta pelo transporte público, neste ano de 2014. De um lado, a quase totalidade do empresariado se posiciona publicamente contra o aumento da tarifa. De outro, a Prefeitura e o governo do estado permanecem irredutíveis, até agora, na manutenção do reajuste. Do lado de baixo, novas movimentações: dezenas de manifestações autônomas em bairros e terminais e, a última novidade, uma proposta de realização de atos simultâneos contra o aumento da tarifa em vários pontos da cidade no dia 15 de abril. Procuraremos aqui dar uma notícia dessas novidades do lado de baixo e refletir sobre as manobras dos gestores diante desse momento novo.
Dia de lutas contra o aumento da tarifa – uma aposta interessante
O significado político desses “dia de lutas” em Goiânia é distinto dos inúmeros “dias de lutas” que vários movimentos sociais burocratizados convocam em torno de suas pautas. Enquanto nestes se faz um teste da força de mobilização para “mostrar representatividade”, no “dia de lutas contra o aumento da tarifa”, que estamos discutindo, a proposta representa a tentativa de um avanço na luta autônoma e concreta de estudantes e trabalhadores. Em que sentidos? Pensamos que em dois:
1) A ampliação do envolvimento das pessoas na organização das mobilizações amplia também a força de mobilização dos protestos e um envolvimento a nível local possibilita também que essa organização se torne mais acessível para as pessoas que vivem na periferia. A experiência de organização ali no bairro, no terminal, na escola, rompe com os modelos de participação dominantes – especialmente por demandar não a filiação a um partido, corrente, grupo político etc., mas a uma pauta concreta e a uma proposta de atuação.
2) A polícia vem usando uma tática recorrente para conter os protestos: a concentração do máximo de efetivo policial no local do protesto com o objetivo de intimidar os participantes e inviabilizar qualquer ação mais ousada ou imprevista. As manifestações simultâneas criam uma nova situação para a repressão (e para os manifestantes!) e dificultam o trabalho de controle das multidões.
O processo de construção dessas manifestações também apresenta outro aspecto bastante interessante. Não se tratou de um caso em que os militantes de uma organização centralizada se dividiram para convocar atos seguindo uma diretiva já dada. Estabeleceu-se uma proposta de dia de lutas e a partir daí foram convocadas reuniões locais. A mobilização para essas reuniões está sendo feita por meio de mecanismos que só eram utilizados durante mobilizações para manifestações: visitas às escolas, passagens nas salas de aula, panfletagens etc. Depois, nessas reuniões, dividiram-se as tarefas e as deliberações: a estratégia do ato, o local de concentração, o trajeto, a redação dos panfletos e dos flyers, a elaboração de pautas de reivindicação locais. Dessa maneira, muitas pessoas que não têm condições de comparecer às reuniões que ocorrem na universidade ou nos setores centrais da cidade – ou o costume de fazê-lo – passam não só a ter estas condições como também a ter o costume de construir o seu protagonismo na luta, passam a ter a experiência de elaborar reivindicações, estratégias, táticas e procedimentos – passam, enfim, a ter uma prática revolucionária efetiva. A possibilidade de exercer o poder sobre o transporte do seu bairro pode facilitar a superação de alguns fetiches estabelecidos na extrema esquerda em Goiânia, como a ideia de que a queima de pneus ou de qualquer outra coisa por si só torna uma luta revolucionária. Além disso, há um esforço de construção conjunta de várias organizações para além do fórum único que havia se estabelecido ano passado, a reunião da Frente de Luta Pelo Transporte. Até o momento da escrita do texto, havia seis manifestações marcadas na Região Metropolitana: uma no Centro da cidade às 8h da manhã; quatro simultâneas por volta do meio dia no Jardim Novo Mundo (Região Leste), Vila Itatiaia (Região Norte), Terminal Bandeiras (Região Sudoeste) e Aparecida de Goiânia, um município importante que faz parte da região metropolitana. Finalmente, está marcado um protesto às 17h no Terminal Parque Oeste (Região Oeste). Em todos esses lugares houve a elaboração de um panfleto próprio e algum tipo de organização própria para constituir o protesto. Que tipo de organização, ainda é difícil dizer, mas o fato dessa organização estar ocorrendo localmente já é uma diferença qualitativa.
Essa tentativa não surge de um voluntarismo dos militantes da Frente de Luta pelo Transporte Público e das organizações que vêm compondo esse esforço. Ele surge no bojo de uma onda de manifestações “espontâneas” em bairros e terminais. Desde fevereiro, foram mais de 25 manifestações, com cerca de 08 (oito) paralisações de terminais. Esse fervilhar de experiências iniciou milhares de usuários do transporte de várias regiões da cidade na luta aberta e coletiva contra as empresas de transporte e contra o poder público – contra a superlotação e atraso dos ônibus e contra a polícia. Estimulou-se na cidade o debate da situação do transporte e o debate também em torno de estratégias e táticas para conseguir melhorá-la. Há uma percepção de que é possível fazer manifestações, não é coisa de outro mundo, só que às vezes elas dão os resultados pretendidos, outras vezes não. Um exemplo de “sucesso” é a manifestação do dia 17/03 no Terminal da Bíblia em que os usuários pediram três ônibus na linha 582 e ficaram lá até conseguir os três ônibus (leia aqui). Por outro lado, em outra manifestação no Terminal Novo Mundo, os usuários conseguiram paralisar o terminal por algumas horas, mas não conseguiram impedir a superlotação dos ônibus ao fim da manifestação, como pode ser visto aqui. Em ambos os casos envolveram-se algumas centenas de trabalhadores no processo de luta, houve certa repercussão na imprensa e além desta a repercussão pelo boca a boca, em conversas nos ônibus e terminais. Essa diversidade de experiências vem fomentando efetivamente uma cultura de contestação e de reflexão crítica entre os trabalhadores e trabalhadoras da cidade.
A proposta de realização de atos simultâneos contra o aumento da tarifa em vários pontos da cidade vem potencializar as lutas autônomas que têm se desenvolvido nos bairros e nos terminais. Agora, para além de manifestações espontâneas, voltadas para a resolução pontual de problemas pontuais – o atraso da linha x, a superlotação no terminal y – é possível que os usuários do transporte de Goiânia construam núcleos permanentes de luta pelo transporte público nos seus locais de moradia. Resta saber se conseguiremos todos fazer com que haja uma coordenação efetiva entre os núcleos que não se configure como uma burocracia coordenadora e também se será possível superar de fato os tradicionais sectarismos de bairro, de gerações, de grupos políticos. Resta também ver se a mobilização para esse ato conseguirá ser efetiva. É algo em que estamos apostando. Outra aposta é que as formas de organização mais horizontais e autônomas poderão se firmar como alternativa a partir dessa experiência de organização popular e demonstrar capacidade de resistência às inevitáveis tentativas de cooptação e burocratização.
Desde cima, o roteiro também é outro
O ineditismo da situação não se encontra apenas do lado de baixo, como já dissemos. Do lado de cima à esquerda, por assim dizer, temos o SETRANSP (Sindicato das Empresas de Transporte) e o Fórum Empresarial (entidade que congrega associações empresariais de diferentes setores econômicos). A proposta apresentada pelo Fórum Empresarial pode ser vista aqui e o posicionamento do SETRANSP, aqui. Resumo da ópera: propõe-se ao invés de aumento esse ano, subsídio mensal de todas as chamadas gratuidades (passe livre para idosos, deficientes e crianças, e a meia-passagem dos estudantes), o que daria cerca de R$9 milhões mensais para as empresas de transporte. De acordo com os cálculos do SINDCOLETIVO (Sindicato dos trabalhadores do transporte coletivo da Região Metropolitana), as empresas de transporte coletivo em Goiânia lucram em torno de R$10 milhões (a informação pode ser checada aqui). O SETRANSP também é bem específico: para não haver aumento esse ano, o subsídio bastaria. E ano que vem? Presume-se que haveria aumento e subsídio. Ambas estão defendendo, aparentemente, uma pauta de esquerda: investimentos públicos no transporte coletivo. O Fórum Empresarial, inclusive, coloca prazos claros para se cumprirem várias questões que possibilitariam uma fiscalização maior do usuário enquanto consumidor, e também para que as obrigações contratuais sejam cumpridas. Mas, como já elucidado nesse texto do Coletivo TarifaZero Goiânia, trata-se de mais uma manobra para excluir os trabalhadores e usuários da discussão sobre a política de transportes e garantir o funcionamento normal da exploração da cidade. Já acima e à direita, temos duas manobras: de um lado, o governo do estado de Marconi Perillo (PSDB), que por meio de João Balestra, presidente da Câmara Deliberativa de Transporte Coletivo (CDTC) dizia que o aumento é inevitável e, do outro, a Prefeitura de Paulo Garcia (PT) que também afirmava por meio de Patrícia Veras, presidente da CMTC, que o “aumento está previsto no contrato”. Ao mesmo tempo em que sinaliza que vai decretar aumento, o governo do estado acelera a votação do Programa Passe Livre Estudantil que estava parado desde o inicio do mês.
Uma complicação posterior se anuncia: um movimento reivindicativo dos motoristas do transporte coletivo para o fim de mês, com um sindicato pelego (o SINDTRANSPORTE) busca legitimar diante da força de trabalho o aumento da tarifa do ônibus como uma maneira de garantir o aumento salarial. E parece que a pressão empresarial está surtindo efeito, pois o governador de Goiás assumiu nessa quinta-feira o compromisso de custear 50% das gratuidades, como é possível verificar aqui e as prefeituras também discutem essa possibilidade. É evidente que uma promessa não significa aplicação, como já observamos com os meses e meses de espera pelo Passe Livre Estudantil e, como a própria reportagem afirma, a tarifa ainda pode subir. Mas teremos que ter muita imaginação tática e observar os acontecimentos com muita atenção para não termos nosso movimento esvaziado por apelos mais imediatistas e fáceis à luta, que não coloquem em questão com mais profundidade o sistema de transporte de Goiânia. Aos que afirmam que o “povo não entenderia”, sugerimos que conversem nos ônibus e terminais para terem uma ideia dos debates que estão sendo realizados por conta própria pelos trabalhadores. Essa esquerda não deveria tentar projetar sua preguiça mental aos lutadores que vêm tentando afirmar sua dignidade de forma exemplar diante da superlotação constante dos ônibus desde os últimos meses.
E então, o que fazer?
Mais uma vez, o movimento autônomo se vê diante de uma situação extremamente difícil: luta contra a aliança dos principais partidos políticos, contra a aliança dos principais setores empresariais da cidade, contra novas tentativas de desmobilização e terá também que se preparar para as novas manobras repressivas que vão ser inventadas para essa nova modalidade de manifestação de rua. Os estudantes irão se desmobilizar com a possível aprovação passe livre? Conseguiremos ir além desse primeiro protesto para tornar a luta mais cotidiana e mais profunda? Será possível uma articulação com os trabalhadores para além dos seus sindicatos burocratizados? Não podemos dar essas respostas, mas pedimos aos leitores para lerem com atenção a produção feita pelos lutadores envolvidos em cada região. Trata-se de uma elaboração mais explícita das demandas e das formas de luta que estão sendo postas nesse momento: disponível aqui. Esperamos que essas reflexões ajudem a armar os lutadores para esse novo período que se anuncia de luta pela cidade. Deixemos, então, a próxima palavra aos acontecimentos.
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.
Interessante experiência em Goiânia.
A posição tomada pelos empresários, e a do prefeito apesar disso, podem apontar tendências e possíveis caminhos que os gestores tomem para mudar as coisas em função da pressão popular, mas uma mudança em que saiam lucrando e continuem com o mesmo poder.
Mas interessante que prefeito e empresários divergindo pode significar um conflito de interesses entre eles. De longe fica parecendo que o prefeito não quer vincular receita municipal com transporte, para ter mais verba para dispor como quiser.
Caro Leo Vinicius,
essa hipótese que você levantou é muito válida, a nosso ver. E pode ser testada não somente em relação à Prefeitura de Goiânia mas também em relação a outras prefeituras da Região Metropolitana. O Prefeito Maguito Vilela, de Aparecida de Goiânia, por exemplo, é bem incisivo e permanece irredutível em sua oposição ao financiamento das gratuidades (para idosos, estudantes, deficientes etc.) também pelas prefeituras, alegando não haver mais espaço disponível no orçamento da cidade. No caso da prefeitura de Goiânia, no entanto, têm sido feitas menções recorrentes em reportagens a um suposto desequilíbrio nas contas do município: ela anunciou, por exemplo, um corte de mais de R$15 milhões em cargos comissionados (e outros) e vários cortes em benefícios de servidores públicos. É bem possível que tanto a prefeitura de Goiânia quanto as demais prefeituras estejam passando por uma situação orçamentária que inviabiliza o investimento no transporte público ou, pelo menos, inviabiliza a realização desse investimento e, ao mesmo tempo, a manutenção das clientelas tradicionais.
Nesse caso, de duas uma: ou as prefeituras entram em conflito com as empresas ou elas entram em conflito com os usuários do transporte coletivo. É uma possível saída pra essa sinuca de bico em que estamos colocados. Essa situação institucional é uma das questões que deveriam ser melhor estudadas pela extrema-esquerda goianiense, mas, ao que parece, boa parte dela não está nem aí para o estudo da realidade concreta, tomada que é pelos fetiches associados à noção de “combatividade” e pela devoção a ídolos do passado. Temos aí um grande problema.